Estratégia de Lisboa – 10 anos depois

Contribuição para um debate
Frederico Gama Carvalho
Vice-presidente, Federação Mundial dos Trabalhadores Científicos[1]

Resumo

Examinam-se os resultados globais da adopção, em 2000, da chamada “Estratégia de Lisboa” no que toca às actividades de investigação e desenvolvimento (I&D), tanto no que se refere à evolução dos meios financeiros como à evolução dos recursos humanos.

Assinalam-se certos factores que determinaram a incapacidade de atingir os objectivos propostos e levaram à necessidade de repensar as orientações contidas na referida estratégia, necessidade reflectida nas decisões e recomendações das autoridades europeias que surgem nos documentos relativos a uma aparente renovação estratégica, designada agora por “UE 2020”. Sublinha-se a necessidade de rever prioridades de trabalho e de aumentar significativamente os efectivos de pessoal investigador e técnico, pondo em relevo, por um lado, o indispensável papel da ciência e da investigação na procura das necessárias soluções impostas pela necessidade de enfrentar os desafios globais que se colocam no caminho de um futuro sustentável para a Humanidade, e, por outro lado, as actuais formidáveis distorções na aplicação dos recursos, humanos e financeiros existentes, designadamente, a sua subordinação a interesses económicos de curto prazo.

Refere-se o papel da Federação Mundial dos Trabalhadores Científicos, em defesa dos interesses das mulheres e homens que trabalham em Ciência, e do progresso da actividade científica. à luz das preocupações dominantes que informam a sua acção no plano internacional.

 

INTRODUÇÂO

Agradeço à Direcção da ABIC – Associação dos Bolseiros de Investigação Científica, o ter convidado a Federação Mundial dos Trabalhadores Científicos, para participar nesta vossa conferência Estou aqui em representação da Federação, na qualidade de Vice-presidente do seu Conselho Executivo, cargo para o qual fui eleito em 2004, na 19ª Assembleia Geral da Federação Mundial, por sinal, realizada em Lisboa. A ABIC é, desde 2006, uma das três associações portuguesas filiadas na Federação Mundial. Como tal pode dar um importante contributo para o indispensável fluxo de informação, troca de experiências e análise crítica de situações, que, embora diversificadas, se inserem numa mesma problemática: a dos caminhos futuros da investigação científica e tecnológica, dos meios e condições de trabalho e da estabilidade nas vidas pessoal e profissional dos seus agentes. Aí incluímos, os investigadores, em qualquer fase do respectivo percurso profissional, mas também os técnicos e restante pessoal de investigação, isto é, o universo constituído por aqueles que designamos por trabalhadores científicos, quer trabalhem no sector público ou no sector privado, empresarial ou sem fins lucrativos.

I&D e força de trabalho científico: os números da evolução verificada desde 2000

No início do século, há dez anos, portanto, a situação do sector da I&D na Europa a 25[2], tomando os índices habitualmente usados, poderia descrever-se assim[3]: despesa com I&D em % do PIB (intensidade de I&D), 1,89% (1,95% na Europa a 15), cabendo 1,2% do PIB ao subsector das empresas (1,27% na Europa a15).

Em 2000, com valores entre 0,7% e 1,2%, os mais atrasados eram a Grécia, Portugal, Espanha, Itália e Irlanda[4]. O Japão estava 1,1 pontos percentuais acima da média dos 25 e os EUA 0,8 pontos. Quanto à parte do subsector das empresas na despesa total com I&D, ela era em 2000, de 75% nos Estados Unidos, 71% no Japão e 63% na Europa a 25.

No que toca a recursos humanos, a situação em 2000 era a seguinte: pessoal de investigação em ETI, na UE-25, 1.94 milhões; o número de investigadores, em ETI, atingia 1,09 milhões.[5]

A despesa total média, anual, por investigador ETI, na UE-25, era de cerca de 160 milhares de euros[6].

Como se apresenta a situação, hoje, em 2010? Recorrendo aos dados mais recentes divulgados pela UE, e que se referem a 2007[7], procuremos esboçar um retrato da situação que não poderá, aliás, traduzir mais do que uma apreciação qualitativa, devido precisamente à ausência de números recentes. Comecemos por olhar para os números relativos a 2007.

Em 2007, a despesa com I&D em % do PIB (intensidade de I&D), atingiu, na UE a 27[8], 1,85%, cabendo 1,2% do PIB ao subsector das empresas, valor idêntico ao já apontado para 2000. A despesa total atingiu cerca de 230 mil milhões de euros.

O Japão estava 1,5 pontos percentuais acima da média dos 27 e os EUA mantinham 0,8 pontos de diferença. Quanto à parte do subsector das empresas na despesa total de execução de I&D, ela era em 2007, de 70% nos Estados Unidos, 76% no Japão e 64% na Europa a 27[9].

 

No que toca a recursos humanos, a situação em 2007 era a seguinte: pessoal de investigação em ETI, na UE-27, 2,2 milhões (reporta-se a 2006, o ano mais próximo que encontramos); o número de investigadores, em ETI, estava próximo de 1,4 milhões (reporta-se a 2007).[10]

 

Fontes: European Commission, Directorate General for Research e EUROSTAT

A despesa total média, anual, por investigador ETI, na UE-27, era, em 2007, de cerca de 170 milhares de euros[11].

 

A “estratégia de Lisboa”

Se considerarmos os objectivos qualitativos que o Conselho Europeu de 2000 se propôs atingir, e a sua expressão numérica fixada em Barcelona em 2002[12], forçoso é concluir que a realidade que hoje se nos depara está muito longe do que se dizia pretender atingir. Tudo não terá passado de um exercício daquilo que em inglês se chama “wishful thinking”, sem efectiva correspondência com orientações e medidas de política que poderiam e deveriam ter sido adoptadas para caminhar no sentido em que se dizia querer caminhar.

Vale a pena lembrar que, em 2003 a Comissão Europeia afirmava que “O aumento do investimento na investigação (que implicaria a concretização da meta dos 3%) irá fazer crescer a procura de investigadores: para além da substituição prevista desta força de trabalho à medida que vai envelhecendo, estima-se que sejam necessários cerca de 1,2 milhões de pessoas adicionais no sector da investigação, incluindo 700 000 novos investigadores, para atingir o objectivo previsto (fim de citação)[13]. Reparemos em que estes números foram apontados em 2003 e são referidos à UE a 15. Após a adesão de 10 novos membros e tendo ainda em atenção que a intensidade da I&D se manteve estagnada entre 2000 e 2007 (de facto, até diminuiu um pouco) é razoável admitir que o défice de recursos humanos se mantenha hoje em valores semelhantes.

Na realidade a questão da carência de recursos humanos é tanto mais séria quanto é certo que entretanto se agravaram e agravam em cada adia que passa, as ameaças à sustentabilidade das condições de vida no planeta, nossa casa comum, colocando-se a necessidade imperiosa de procurar no progresso do conhecimento científico e no desenvolvimento tecnológico, as chaves para enfrentar com alguma probabilidade de sucesso os problemas que se colocam.

Já em 2004, André Jaeglé, então presidente da FMTS, deixava claro que as coisas não se estavam a passar como os Chefes de Estado tinham anunciado, em Lisboa, em 2000. “Em vez de aumentar, as despesas com a investigação, estagnavam. O objectivo de atingir, em 2010, uma despesa de 3% do produto interno bruto europeu com a investigação, não será atingido. O financiamento público da investigação fundamental é descuidado. Os jovens investigadores não encontram emprego estável e devidamente remunerado. Para além disso, a prática das regras de funcionamento do Espaço Europeu de Investigação, revela-se muito complexa e as regras mostram-se frequentemente inadaptadas às realidades da investigação científica”.

Entretanto foi criado o Conselho Europeu de Investigação que, neste último aspecto, tem procurado melhorar a situação. Mas o impacte da sua acção em relação às necessidades, é limitado, em termos qualitativos e quantitativos. Também interessa referir que o Parlamento Europeu se debruça actualmente sobre a simplificação das regras de operacionalidade do 7ºPQI&D. Entretanto, convém notar que a dotação do Programa em curso para os seus 7 anos de vigência (2007-2013) é de cerca de 52 mil milhões de euros, montante que corresponde a não mais do que cerca de 3,2% da DIDE da União a 27, por referência ao valor que atingiu em 2007.

Entretanto, e independentemente da sinceridade dos propósitos favoráveis ao desenvolvimento do sector da I&D, regularmente manifestados pelas autoridades europeias, a verdade é que os resultados das políticas efectivamente seguidas são desastrosos.

A estratégia “UE 2020” adoptada no início do corrente ano com o propósito de recuperar os atrasos da falhada estratégia de Lisboa, não é menos “neo-liberal” que aquela e é mesmo menos ambiciosa em aspectos cruciais como o acréscimo do número de investigadores.

É a mesma política neo-liberal que vem arrastando o mundo, no quadro da chamada “globalização”, para a degradação, em aspectos decisivos, da nossa vida colectiva, nos planos económico e social.

No que toca às universidades, acentua-se a tendência para que os programas de trabalho sejam definidos pelos interesses de curto prazo das grandes multinacionais em prejuízo da investigação livre. No Reino Unido, a prestigiada ONG Scientists for Global Responsibility vem alertando para o aprofundar do envolvimento das universidades na investigação militar[14]. È necessário uma alteração radical de prioridades nas políticas de I&D de forma a fazer face às necessidades de novo conhecimento C&T para enfrentar os desafios globais que desde já se colocam no que respeita a uma utilização sustentável dos recursos naturais do planeta.


Entretanto o acesso a uma formação superior e a um emprego estável e com direitos dos trabalhadores científicos, vem sendo restringido, na generalidade dos membros da UE quer por aumentos, por vezes brutais, de propinas (quase 3 vezes no Reino Unido) quer pela redução dos efectivos do pessoal permanente e a dificuldade sentidas pelas novas gerações de investigadores em aceder à chamada “tenure” em língua inglesa.

Obrigado pela vossa atenção.

Frederico Carvalho

Vice-presidente do Conselho Executivo da Federação Mundial dos Trabalhadores Científicos

26 de Novembro de 2010

Algumas notas complementares

1-O ERC atribuiu en 2010, 247 bolsas de arranque independente (cerca de 2M€ por 5 anos). Seis (6) para Portugal. As 247 bolsas foram para o sector do ensino superior.

2-(Ref.2)

“R&D personnel data are broken down by institutional sector, i.e. by sector engaged in R&D. In this publication, five sectors are used to calculate indicators of R&D activity:

• the Business enterprise sector . BES,

• the Government sector . GOV,

• the Higher education sector . HES,

• the Private non-profit sector . PNP and

• all sectors, which corresponds to the sum of the four previous sectors.

However, given the minor role played by the Private Non Profit sector in all countries, except in Portugal, it has not been systematically included in all the analyses in this chapter.”

3- “The main reasons for the decline in EU-27 R&D intensity are an insufficient growth in business R&D expenditure and the fact that EU companies have invested more outside of Europe, in particular in emerging research-intensive countries, than non- European companies have invested in Europe. Tackling these issues will be important as we continue to pursue the strategy for growth and jobs in the years ahead.”

Janez Potočnik, in “A more research-intensive and integrated European Research Area”

Science, Technology and Competitiveness key figures report 2008/2009, Directorate-General for Research. (2008)


[1] World Federation of Scientific Workers-Fédération Mondiale des Travailleurs Scientifiques

FMTS-Case 404 -94514 Montreuil Cedex, fmts@fmts-wfsw.org , www.fmts-wfsw.org

[2] A União Europeia reúne, desde 2007, 27 estados (Bulgária e Roménia, tornaram-se, nesse ano, membros da União); em 2004, entraram 10 novos estados. Assim, até esse ano, e designadamente em 2000, o número de membros era apenas de 15.

[3] Fontes :

  • Towards a European Research Area – Science, Technology and Innovation – Key Figures 2002”

European Commission, Office for Publications of the European Communities (2002) ISBN 92-894-4205-0

  • “Statistics on Science and Technology in Europe”, Parts 1 and 2, Data 1991-2002, EUROSTAT, European Commission, ed. 2003 ref 2
  • “Key figures on Europe – Statistical pocketbook 2006”, Data 1995-2005”, EUROSTAT, European Commission ed.2006, ISBN 92-79-01849-3
  • EU-R&D-Key Figures 2003-2004 ref 3

[4] “In almost all EU Member States for which data are available, the share of affiliates under foreign control in total business sector R&D expenditure has substantially increased between 1995 and 2005. In Ireland this share exceeded 60 % in 2005” (facts&figures-european-commission-key-figures-2008-2009-en)

[5] A passagem destes números para “contagem de cabeças” leva-nos ao seguinte resultado, aproximado: pessoal total, 2,6 milhões; pessoal investigador, 1,5 milhões.

[6] Ver ref.3 da nota 3. O valor correspondente para Portugal era de cerca de 60 mil euros. Estes valores são os valores médios para o conjunto dos subsectores do sistema científico e técnico (privado incluído).

[7] “Key figures on Europe. 2010 edition”, EUROSTAT

[8] Em 2007, verificou-se a adesão da Bulgária e da Roménia: no entanto o valor médio da intensidade da I&D não é significativamente afectado quando comparado com o valor correspondente à UE a 25.

[9] Parte da despesa com a execução nas empresas de trabalho de I&D é financiada por fontes externas (cerca de 20% na Europa a 27).

[10] A passagem destes números para “contagem de cabeças” leva-nos ao seguinte resultado, aproximado: pessoal total, 3 milhões; pessoal investigador, 2 milhões.

[11] Ver ref.3 da nota 3. O valor correspondente para Portugal era, em 2007, de cerca de 68 mil euros. Estes valores são os valores médios para o conjunto dos subsectores do sistema científico e técnico (privado incluído).

[12] O objectivo estratégico de se tornar até 2010 “no espaço económico mais dinâmico e competitivo do mundo baseado no conhecimento e capaz de garantir um crescimento económico sustentável, com mais e melhores empregos, e com maior coesão social”, fazendo crescer o investimento global em I&D até “3% do PIB da União, sendo 2/3 do sector privado”.

[13] Cf. “Investir na investigação: um plano de acção para a Europa”, Comunicação da Comissão, Bruxelas, 4.6.2003, COM(2003) 226 final/2

[14] “More Soldiers in the Laboratory”, Report, Scientists for Global Responsibility (SGR), August 2007. ISBN 978-0-9549406-2-1 (http://www.sgr.org.uk/ ). A DIDE militar nos EUA terá atingido em 2007 cerca de US$78 mil milhões (ou seja, mais de 55 mil milhões de euros) montante que representa um aumento de quase 60% em comparação com o ano de 2001)