Padre António Vieira

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Padre António Vieira (1608-1697)

António Vieira, religioso jesuíta e grande mestre da Oratória, destacou-se como missionário em terras brasileiras, onde se ergeu em defesa dos direitos humanos dos povos indígenas condenando a sua exploração e escravização. Opôs-se à perseguição dos chamados “cristãos-novos” pela Inquisição, manifestou-se em defesa dos judeus e pela abolição da escravatura. Olhado com reserva pela Inquisição, cuja acção considerava nefasta ao equilíbrio da sociedade portuguesa, conseguiu o feito único de obter do Papa a suspensão da sua actividade em Portugal e no seu império durante sete anos (1675-81).

O “Sermão do bom ladrão” é um texto de crítica social e política que fustiga os comportamentos abusivos e predadores dos poderosos na sociedade portuguesa. Assim, como faz notar António Vieira, melhor se prestaria o Sermão a pregação na Capela Real vizinha do centro do poder do que na Misericórdia de Lisboa onde teve lugar nesse ano, já distante mas ao mesmo tempo tão próximo, de 1655.

Extracto de “Sermão do bom ladrão” (1655)

“Suponho finalmente que os ladrões de que falo não são aqueles miseráveis, a quem a pobreza e vileza de sua fortuna condenou a este género de vida, porque a mesma sua miséria, ou escusa, ou alivia o seu pecado, como diz Salomão: Non grandis est culpa, cum quis furatus fuerit: furatur enim ut esurientem impleat animam (*). O ladrão que furta para comer, não vai, nem leva ao inferno; os que não só vão, mas levam, de que eu trato, são outros ladrões, de maior calibre e de mais alta esfera, os quais debaixo do mesmo nome e do mesmo predicamento, distingue muito bem S. Basílio Magno: Non est intelligendum fures esse solum bursarum incisores, vel latrocinantes in balneis; sed et qui duces legionum statuti, vel qui commisso sibi regimine civitatum, aut gentium, hoc quidem furtim tollunt, hoc vero vi et publice exigunt: Não são só ladrões, diz o santo, os que cortam bolsas ou espreitam os que se vão banhar, para lhes colher a roupa: os ladrões que mais própria e dignamente merecem este título são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos e legiões, ou o governo das províncias, ou a administração das cidades, os quais já com manha, já com força, roubam e despojam os povos. — Os outros ladrões roubam um homem: estes roubam cidades e reinos; os outros furtam debaixo do seu risco: estes sem temor, nem perigo; os outros, se furtam, são enforcados: estes furtam e enforcam. Diógenes, que tudo via com mais aguda vista que os outros homens, viu que uma grande tropa de varas e ministros de justiça levavam a enforcar uns ladrões, e começou a bradar: — Lá vão os ladrões grandes a enforcar os pequenos. — Ditosa Grécia, que tinha tal pregador! E mais ditosas as outras nações, se nelas não padecera a justiça as mesmas afrontas! Quantas vezes se viu Roma ir a enforcar um ladrão, por ter furtado um carneiro, e no mesmo dia ser levado em triunfo um cônsul, ou ditador, por ter roubado uma província. E quantos ladrões teriam enforcado estes mesmos ladrões triunfantes? De um, chamado Seronato, disse com discreta contraposição Sidónio Apolinar: Nou cessat simul furta, vel punire, vel facere: Seronato está sempre ocupado em duas coisas: em castigar furtos, e em os fazer. — Isto não era zelo de justiça, senão inveja. Queria tirar os ladrões do mundo, para roubar ele só.”

(*) Não é grande furta quando algum furtar porque furtar para saciar a sua esfaimada alma (Prov.6,30).