
SOBRE AS ARMAS QUÍMICAS
Frederico Gama Carvalho
Passou em Janeiro de 2013, o vigésimo aniversário da data em que foi aberta a assinatura a Convenção sobre a Proibição do Desenvolvimento, Produção, Armazenamento e Utilização de Armas Químicas e sobre a sua Destruição. Abreviadamente designada por Convenção sobre as Armas Químicas, a Convenção é fruto de um acordo intergovernamental, negociado no seio da chamada “Conferência para o Desarmamento”, organismo criado em 1984, exterior ao sistema das Nações Unidas mas reconhecido por esta. O texto da Convenção foi presente e aprovado pela Assembleia Geral da ONU, em 1992 (1). A entrada em vigor ocorreu em Abril de 1997, após assinatura e subsequente ratificação por 65 estados. Antes dessa data já muitos estados haviam assinado a Convenção mas o número mínimo de ratificações só foi atingido naquela data. Os estados, à altura, não signatários, puderam, a partir de então, fazer uso do instrumento dito de “acesso” com efeitos idênticos à ratificação, sem pressupor assinatura prévia.
Israel assinou a Convenção em Janeiro de 1993 mas até hoje não procedeu à ratificação pelo que não é considerado ser parte daquela. A República Árabe Síria acedeu à Convenção em 14 de Setembro último, comprometendo-se, ao mesmo tempo, a respeitar de imediato todas as obrigações previstas na Convenção, abdicando do prazo de trinta dias a contar do acesso, estipulado no texto da Convenção, para a entrada em vigor após o acesso.
Num número significativo de casos, a deposição dos instrumentos de assinatura, ratificação ou acesso, foi acompanhada por declarações que pretendiam salvaguardar interesses estratégicos ou posições específicas, relativos ao estado que aderia.
Assim, os EUA sujeitaram a adesão à condição “respeitante ao Anexo sobre Implementação e Verificação, de que nenhuma amostra colhida nos EUA em conformidade com a Convenção seja transferida para análise em qualquer laboratório fora do (seu) território”.
Os estados membros da União Europeia sujeitaram o cumprimento das obrigações decorrentes da Convenção, à sua compatibilidade com as normas fixadas nos tratados constitutivos da União “na medida em que essas regras sejam aplicáveis”.
A Síria, o estado que mais recentemente aderiu à Convenção, comprometeu-se a respeitar integralmente o estipulado na Convenção “de forma leal e sincera” e a aplicá-la já no período antecedendo a entrada em vigor efectiva, como se referiu acima. Sublinhou ainda, nessa sua declaração de adesão, que ela “não implicará de nenhum modo o reconhecimento de Israel”, nem envolverá qualquer obrigação de relacionamento com Israel nas questões reguladas pelas disposições da Convenção”.
Guantánamo, no caso de Cuba; Gibraltar, no caso de Espanha, as Malvinas no caso da Argentina, são algumas outras situações objecto de atenção nas declarações de adesão à Convenção por parte dos países interessados, no sentido de salvaguardar a sua soberania sobre esses territórios.
No momento actual, 190 estados são parte efectiva da Convenção (2). Estão ainda de fora Angola, Birmânia, Egipto, Coreia do Norte, Sudão do Sul e, como se referiu, Israel.
O emprego deliberado de compostos químicos tóxicos para eliminar vidas humanas ou provocar a morte de outros seres vivos, tem uma longa história e assumiu variadas formas. Tais compostos foram utilizados em teatros de guerra contra forças militares e contra populações civis; como instrumento de genocídio ou eliminação sistemática de grupos humanos diferenciados; no combate a dissidentes armados ou grupos terroristas. Nos tempos mais recentes e sobretudo a partir da segunda metade do século XIX, com o desenvolvimento da ciência e das tecnologias químicas, deu-se uma considerável evolução nos agentes utilizados para os diversos fins atrás citados. É preocupante o facto de essa evolução prosseguir nos nossos dias com recurso a meios técnicos e científicos cada vez mais sofisticados. Um domínio particularmente sensível é o dos agentes químicos ditos “não letais”, designados “incapacitantes”, alegadamente orientados para a “manutenção da ordem”.
Num estudo de 2007, da Associação Médica Britânica (British Medical Association), intitulado “O Uso de Drogas como Arma” (3), é afirmado correr-se o risco de “estarmos a mover-nos conscientemente numa direcção que conduz ao caminho escorregadio ao fim do qual está o espectro da “militarização” da biologia” incluindo “a manipulação intencional das emoções, memória, reacções de defesa imunológica e mesmo da fertilidade das pessoas”.
As armas químicas são particularmente perversas já que os seus efeitos e consequências perduram no tempo e estendem-se no espaço, de forma dificilmente controlável. As vítimas fatais directas são uma pequena fracção daqueles que, sobrevivendo, são portadores de sequelas físicas e mentais resultantes da sua utilização.
Nuvens de cloro numa frente de combate na guerra de 1914/18
No decurso da guerra de 14-18, estima-se em 1 milhão 250 mil as vítimas da utilização dos gases tóxicos pelas potências beligerantes, entre os quais cerca de 90 mil mortos. Destes, mais de metade ocorreram na frente russa (4). Estes números não têm em conta as mortes resultantes da exposição aos gases que se foram dando ao longo de anos, após o fim da guerra, nem os casos de invalidez grave de militares desmobilizados que tendo sobrevivido não mais puderam trabalhar (5). Os gases tóxicos utilizados na guerra de 14-18 foram, em primeiro lugar, o cloro mas também o fosgénio e o gás mostarda. Com o andar do tempo foram surgindo novos compostos considerados utilizáveis par fins militares.
“Gaseados” de John Sargent (1918)
A Alemanha nazi teve, no período entre as duas guerras mundiais, um papel predominante no desenvolvimento científico e na produção de agentes químicos tóxicos e nos meios para a sua disseminação. O químico Gerhard Schrader, empregado do consórcio industrial alemão IG Farben, descobriu o agente neurotóxico sarin que revolucionou a guerra química. A IG Farben, na Alemanha nazi, foi o principal produtor de gases tóxicos, durante a segunda guerra mundial e já nos anos que imediatamente a antecederam. Entretanto, segundo se pensa, não terão sido utilizadas armas químicas na guerra de 39-45. Os dirigentes nazis terão renunciado ao uso das armas de que dispunham, provavelmente por admitir que o campo adversário também disporia de tais armas e por recear possíveis represálias. O gás Zyklon B, também descoberto e produzido industrialmente pelos alemães, foi usado, como se sabe, nas acções de extermínio praticadas pelo regime nazi nos campos de concentração, fábricas da morte, tristemente célebres.
No decurso do século XX, cerca de 70 compostos químicos com efeitos tóxicos foram produzidos, armazenados, por vezes em grandes quantidades, e, em certos casos, utilizados, por numerosos estados ou potências de maior ou menor dimensão. Destacam-se a Alemanha nazi, que fez uso eles na frente ocidental e na frente russa, o Reino Unido, o Exército Imperial Japonês, na China, a Itália fascista, na Etiópia. Entre as duas grandes guerras, os ingleses terão usado agentes tóxicos na Mesopotâmia; forças francesas e espanholas, no norte de África, na chamada guerra do Rife; o Exército Vermelho, no período da guerra civil russa, no controlo da chamada Revolta camponesa de Tambov. Na guerra Irão-Iraque de 1980-88, as forças iraquianas usaram vários agentes químicos tóxicos incluindo gás mostarda, gás sarin e o VX, contra combatentes iranianos e no combate aos levantamentos regionais ocorridos no Iraque em 1991. No conflito interno em curso na Síria, crê-se terem sido utilizadas armas químicas. Sobre a natureza e a quantidade dos agentes químicos usados não há informações seguras e a atribuição de responsabilidades pela sua utilização é objecto de polémica. No que respeita a Israel, diversas fontes parecem não ter dúvidas de que possui um importante arsenal de armas químicas (6). Entretanto, o Estado judaico prossegue, neste domínio como noutros, designadamente no das armas nucleares, uma política de ocultação caracterizada no plano diplomático pela não negação e não afirmação da posse de armas de destruição massiva.
As armas químicas são consideradas armas de destruição massiva (7). Distinguem-se actualmente dois tipos: armas químicas binárias e armas químicas unitárias. Nas primeiras, são usados dois compostos químicos que só dão origem a um produto letal quando misturados, por reacção entre si. A mistura e a reacção são provocadas imediatamente antes da utilização da arma. Nos arsenais químicos, predominam as munições ditas unitárias, que contêm um gás letal “pronto a usar”.
Os compostos químicos usados para fins militares e de agressão, têm efeitos e graus de letalidade muito diversos, desde os gases lacrimogéneos sobretudo usados contra manifestantes e levantamentos populares, até agentes altamente tóxicos como o gás sarin e o VX, ambos, com efeitos neurológicos que levam rapidamente à morte.
Justificar-se-ia que certos agentes que não são considerados armas químicas na Convenção de 1993, aí fossem incluídos pelos seus efeitos e utilização. Destaca-se o fósforo branco, o urânio empobrecido e o famigerado “agente laranja”, abundantemente utilizado no Vietnam pelas forças americanas como desfolhante. O fósforo branco foi usado por Israel, no Líbano, possivelmente, e, sem margem para dúvidas, na faixa de Gaza; foi usado pela Argentina, nas Malvinas; pelos EUA, no Iraque, e pela Nato, no Afeganistão. Cerca de 24 mil quilómetros quadrados do território do Vietnam do Sul foram sujeitos a ataques com o agente laranja, um poderoso herbicida, com o objectivo de destruir o coberto florestal e colheitas agrícolas. Tratou-se de um verdadeiro “ecocídio” levado a cabo no país mais bombardeado da História (8). O “agente laranja” continha, como impureza de fabrico, um composto do grupo das dioxinas, de elevada toxicidade, com efeitos mutagénicos e cancerígenos. Estima-se que mais de meio milhão de crianças tenham nascido com deformidades provocadas pela assimilação desta dioxina. O urânio empobrecido foi usado pelas FA americanas, designadamente, no Iraque, e pela NATO, na Europa, na região dos Balcãs.
De acordo com os dados do organismo que controla a aplicação da Convenção — a Organização para a Proibição das Armas Químicas (OPCW) (9), com sede na Haia — os stocks armazenados de armas, declarados pelos estados que são parte da Convenção, elevavam-se a cerca de 70 mil toneladas de agentes químicos tóxicos ou precursores (10), e a quase 7 milhões de munições químicas e contentores, abrangidos nos termos da Convenção.
Paletes de granadas de artilharia de 155 mm de gás mostarda
À data de 30 de Setembro de 2013, tinham sido destruídos, desactivados ou desmantelados, conforme o caso, sob controlo da OPCW, cerca de 82%, dos agentes químicos, e cerca de 52% daquelas munições e contentores (11). A Federação Russa, que declarou cerca de 40 mil toneladas (3/4 já destruídos) e os EUA com cerca de 32 mil toneladas, serão as partes que dispunham inicialmente dos arsenais mais poderosos de armas químicas. No caso dos EUA cerca de 90% dos agentes tóxicos mais perigosos já foram destruídos. De acordo com os inspectores da OPCW na Síria, esta disporia de um arsenal de armas químicas avaliado em cerca de mil e 300 toneladas, que já teriam sido destruídas.
O Japão deixou em território chinês quase 50 mil armas químicas após a derrota na segunda guerra mundial. Cerca de ¾ foram já destruídos sob controlo da OPCW. Os japoneses fizeram testes de armas químicas sobre prisioneiros vivos.
Vista do complexo JACADS para a destruição de munições químicas construído pelos EUA no atol Johnston. Cumpridos os seus objectivos, foi desactivada em 2000. Foram aqui eliminadas cerca de 400 mil munições químicas individuais
A destruição dos compostos químicos tóxicos, das munições operacionais e das próprias instalações de produção, põem sérios problemas de segurança, exigem tempo e avultados financiamentos. Daí o ter sido programado pela OPCW, com o acordo das partes, um calendário de execução alongado que não tem sido aliás respeitado em todos os casos. Daí, prever-se a necessidade de prolongar o processo de destruição e desmantelamento por mais alguns anos (12).
A Convenção de que nos ocupamos é objecto de revisão quinquenal. A mais recente revisão teve lugar em Abril de 2013. Sem pôr em dúvida os consideráveis progressos registados, há, entretanto, vozes que apontam as suas limitações que, no essencial, se tornam hoje sobretudo evidentes por força da evolução dos conhecimentos científicos, não apenas no domínio da Química mas também no campo da Biologia. Importa referir aqui, a Convenção sobre as armas Biológicas e de Toxinas assinada em 1972 pelos EUA, Reino Unido e União Soviética que entrou em vigor em Março de 1975 e, também, o Protocolo de Genebra de 1925. Este abrangia armas químicas e armas biológicas, embora com a fragilidade decorrente do facto de se limitar a proibir o “primeiro uso”, isto é, não excluía acções de retaliação com utilização das mesmas armas. O Protocolo de Genebra conduziu, 70 anos mais tarde, à Convenção sobre as Armas Químicas, limitada a estas e que não proíbe o recurso aos chamados agentes químicos incapacitantes, utilizados sobretudo em caso de distúrbios e manifestações, espontâneas ou organizadas, de populações civis, podendo ter em certos casos efeitos letais ou ser causa de lesões graves permanentes. Por outro lado, é hoje possível, com recursos modestos, produzir certos tipos de toxinas que pela sua perigosidade são proibidos quer pela Convenção das Armas Químicas quer pela Convenção de 1972. Acrescente-se que esta última Convenção, tripartida, não autoriza acções de fiscalização ou verificação in loco, o que, obviamente lhe retira força. Finalmente interessa referir que é hoje possível fabricar agentes tóxicos proibidos, em pequenos reactores químicos, ditos “microreactores”, robustos e facilmente transportáveis de forma segura para os seus operadores. Tendo em conta estas situações justificar-se-ia tomar as medidas preventivas possíveis. Assim, conforme propõe o professor Sydnes (13), seria desejável rever e combinar em uma única as duas Convenções referidas neste texto: a Convenção contra as Armas Químicas e a Convenção contra as Armas Biológicas. Além disso é da maior importância debater estas questões no seio da comunidade científica, designadamente, entre químicos e biólogos, cuja responsabilidade social é particularmente posta à prova neste contexto. Seria também desejável, que elas fossem, com a devida ponderação e adaptação, contempladas em curricula universitários nas áreas de conhecimento em que a sua discussão se mostra pertinente, onde se inclui, naturalmente, a área das ciências sociais e humanas.
O presente trabalho “Sobre Armas Químicas” foi apresentado em versão resumida no Seminário que se seguiu à XXIV Assembleia da Paz, do Conselho Português para a Paz e a Cooperação, em Lisboa, em 7 de Dezembro de 2013
1 Ver Resolução A/RES/47/39, adoptada em 30 de Novembro de 1992, na 47ª sessão da Assembleia Geral da ONU, realizada em Nova Iorque.
2 Estes 190 estados representam 98% da população mundial actual.
3 Ver Malcolm Dando, “Biologists napping while work militarized”, Nature, 460, p.20, 20 Agosto 2009
4 No decurso da intervenção britânica na Guerra Civil Russa, em 1919, a Royal Air Force bombardeou as forças bolcheviques com gás tóxico contendo arsénico.
5 “Brief History of Chemical Weapons Use”, OPCW (http://www.opcw.org/about-chemical-weapons/history-of-cw-use/); “Poison Gas and World War One”, History Learning Site (http://www.historylearningsite.co.uk/poison_gas_and_world_war_one.htm )
6 De acordo com a revista “Foreign Policy”, existe um relatório da CIA datado de 1983 que indica que Israel possui de facto armas químicas. O relatório refere instalações de produção de gás tóxico situadas no deserto de Neguev, e menciona a produção de gases neurotóxicos, gás mostarda e agentes químicos para o controlo de multidões, bem como a posse de dispositivos de dispersão apropriados, nomeadamente, granadas. Ainda de acordo com a mesma fonte A CIA terá coligido informação sobre a existência de gás sarin em Israel.
(http://www.dw.de/israel-keeps-mum-on-its-chemical-weapons/a-17104647 )
7 As armas nucleares, as armas biológicas e as armas químicas são os três tipos de armas considerados “armas de destruição massiva”
8 Entre 1964 e 1975, mais de 7,5 megatoneladas de bombas e outros explosivos foram lançados sobre o Vietnam. Em comparação, durante toda a segunda guerra mundial o total de explosivos não excedeu 2,1 milhões de toneladas. (in “The Vietnam War” (http://www.livinghistoryfarm.org/farminginthe50s/life_08.html ) )
9 A OPCW recebeu o Prémio Nobel da Paz de 2014
10 “Precursores“ são compostos químicos que podem ser usados na preparação dos agentes tóxicos destinados à utilização militar.
11 http://www.opcw.org/news-publications/publications/facts-and-figures/#
12 Leiv K. Sydnes, “Update the Chemical Weapons Convention”, Nature, 496, p.25, Abril, 4, 2013
13 Idem, ibidem. Sydnes considera que, adicionalmente, seria útil criar nas universidades cursos sobre as armas químicas.