Carvão, Petróleo, Gás e o futuro

 

 Sobre a proposta: “Congelar a extracção de combustíveis fósseis para travar crimes climáticos

(English version here)

“Freeze fossil fuel extraction to stop climate crimes”

Frederico Carvalho

Serão as conclusões da próxima Conferência das Nações Unidas sobre as Alterações Climáticas, COP 21, que terá lugar em Paris, dentro de um mês [1], de molde a dar resposta e aliviar a fundadas preocupações de um grande número dos nossos concidadãos, legitimamente preocupados com a sustentabilidade da vida nesta nossa casa comum ― o planeta Terra, ameaçado pelo esgotamento acelerado dos seus recursos naturais?

Alterações climáticas e o aquecimento global, estão no primeiro plano de tais preocupações. É hoje geralmente aceite que as emissões de origem antropogénica dos chamados gases de efeito estufa, são um factor determinante das alterações que, em termos estatísticos, se vêm verificando nas propriedades do sistema climático da Terra, ressentidas no período relativamente curto de um século e meio.

 

A emissão de grandes quantidades de dióxido de carbono para a atmosfera é um resultado inevitável da queima de combustíveis fósseis, seja carvão, petróleo ou gás. A magnitude dessa emissão, no presente, é tal que há razões para dizer que o CO2 é a principal causa do efeito de estufa observado.

Construímos uma sociedade organizada em moldes tais que não pode dispensar o consumo de grandes quantidades de combustíveis fósseis como fonte de energia, mas também como matéria-prima utilizada na indústria química e na metalurgia. Neste caso sendo utilizações que não envolvem a queima de combustíveis são, no entanto, fonte adicional de emissões de dióxido de carbono para a atmosfera, embora muito menos importantes do que as que estão associados à queima de combustíveis fósseis. Entretanto, são, no mundo de hoje, de suma importância em áreas como a produção de materiais sintéticos, medicamentos e adubos, e assim, indirectamente, na agricultura e na produção de alimentos.

A redução das emissões de CO2 para a atmosfera aparece como necessidade inquestionável para quantos que têm a peito a preservação da qualidade de vida, para não dizer, a sobrevivência das gerações futuras.

Recentemente, um grupo de cidadãos preocupados com a esta situação, onde se incluem intelectuais de renome, em diferentes áreas da cultura, tomaram posição pública através de um documento em que é preconizado “Congelar a extracção de combustíveis fósseis para travar crimes climáticos[2 . 

Como é geralmente reconhecido os combustíveis fósseis são um recurso natural não renovável, condenado ao esgotamento num futuro temporal que depende da taxa de extracção que é prosseguida. Ao ritmo actual uma estimativa plausível é de que os recursos disponíveis sejam consumidos em cerca de meio século, isto é, até por volta de 2070. Será imprudente, se não mesmo desastroso, manter a actual taxa de extracção e consumo de combustíveis fósseis, pelo menos, por duas boas razões: a necessidade de contrariar as alterações climáticas e o aquecimento global associados ao referido consumo, por um lado, e, por outro, a importância de manter durante um período de tempo tão longo quanto possível uma reserva de recursos dessa natureza para utilizações que não implicam a queima dos combustíveis.

Os autores do documento atrás mencionado explicam devidamente, em breves linhas, as razões que justificam a sua iniciativa, notando de forma crítica o facto de que “há mais de 20 anos, os governos têm vindo a reunir-se, mas as emissões de gases com efeito de estufa não diminuíram e o clima continua a alterar-se.” E acrescentam: “as forças de inércia e obstrução prevalecem, apesar das advertências científicas se tornarem cada vez mais sérias”.

Com base no que a experiência passada demonstra, afirmam, com justeza, que “corporações globais e governos não vão desistir dos lucros que obtêm pela exploração de reservas de carvão, gás e petróleo, e através de uma agricultura industrial, promovida a nível global, que assenta em combustíveis fósseis.” Essas considerações são inteiramente pertinentes como é a confiança demonstrada na capacidade da humanidade para “mudar tudo isso (…) abrindo caminho a um futuro mais sustentável”.

Nos parágrafos finais do manifesto a que nos vimos referindo, expressa-se a proposta de “manter os combustíveis fósseis no subsolo” e de “congelar a extracção de combustíveis fósseis, de forma a deixar intactas 80% de todas as reservas de combustíveis fósseis existentes”.

Estas são propostas sugestivas que merecem algumas considerações.

Em primeiro lugar, há a questão da definição de “reservas” e da sua avaliação.

Os recursos são enormes, embora de muito diferente qualidade, e em quantidades grandes mas desconhecidas. As quantidades físicas dos recursos que são classificados como reservas, quando o recurso satisfaz os critérios para ser classificado como tal, tendo em conta as condições técnicas de acessibilidade e a viabilidade económica da sua exploração, não são exactamente conhecidas e as estimativas que são feitas têm oscilado no tempo. As reservas podem aumentar – de acordo com a existência de condições para incrementar a exploração, inovações técnicas e melhor organização social ― ou diminuir ― se essas condições não são satisfeitas ou como consequência do esgotamento gradual do reservatório planetário. Assim, não pode ser atribuído um valor certo ou um número determinado à quantidade total das reservas de um recurso específico (ou, se se quiser, a 80% dessa quantidade).

Diferentes entidades qualificadas para o efeito não apresentam exactamente os mesmos números como estimativa das reservas de um determinado recurso fóssil, porque trabalham com bases de dados diferentes, usam diferentes conceitos ou metodologias. Além disso, são apresentados valores diferentes que correspondem a diferentes graus de probabilidade. Finalmente, as estimativas do que resta no subsolo mudam à medida que o tempo passa, independentemente das quantidades entretanto extraídas.

A proposta de congelar a extracção de combustíveis fósseis “deixando intocadas 80% de todas as reservas de combustíveis fósseis existentes” não é, na prática, uma proposta operacional, uma vez que aponta para uma meta indefinido na medida em que o montante total do que seria permitido extrair é indeterminado.

O outro aspecto que não é clarificado é qual a taxa admissível de extracção e sua evolução no tempo. Por outras palavras: em quantos anos seria atingida a meta proposta de 80%. Vamos a seguir tentar esclarecer ideias tomando, para simplificar, apenas o caso do petróleo.

De acordo com os dados mais recentes disponíveis[3] , o total das reservas mundiais de petróleo, em 2014, era estimado em 1666 milhões de barris de petróleo (1,666 109 bbl). A produção (que é normalmente próxima do consumo) totalizou 93,1 milhões de barris por dia. O valor médio para os anos de 2010-14 foi de 90,2 milhões de barris por dia. O valor que se retira destes números para a taxa de esgotamento das reservas de petróleo em 2014 (definida como a taxa de produção anual em percentagem do que é deixado no solo), é de 2%. Se a produção anual total mundial permanecesse essencialmente estável, as reservas estimadas de petróleo em 2014, seriam esgotadas em 50 anos. Dentro de 10 anos, a meta de 80% das reservas intocadas de petróleo no subsolo seria alcançada[4] . Importa dizer que esta previsão deve ser olhada com cuidado e sentido crítico: novas reservas podem ainda ser encontrados e a estimativa das reservas deverá ser actualizada em conformidade; a taxa de extracção pode mudar, de modo que a taxa de esgotamento pode variar ou ser ajustada com o tempo.

Não obstante estas incertezas, deve-se ter em mente a posição geralmente assumida, de que as reservas ainda por encontrar não serão de monte a aumentar substancialmente o valor actual das reservas estimadas, técnica e economicamente acessíveis  [5. Acreditar que suspender a extracção de petróleo dentro de 10 ou mesmo 20 anos é uma opção viável, é algo que pertence ao reino da fantasia mais insensata. Mas, se em vez de se manter a taxa actual de produção, fosse a taxa de esgotamento a manter-se constante naquele valor de 2%, as reservas que ficariam no solo seriam ainda cerca de 50% das reservas estimadas em 2014, daqui a 35 anos. Esta seria uma hipótese muito mais aceitável do que suspender a extracção dentro de 10 anos.

Do ponto de vista do consumo de combustíveis fósseis, a seguir o caminho sugerido pelos apoiantes da proposta a que vimos fazendo referência, seríamos levados àquilo a que em linguagem figurada seria o equivalente a uma “aterragem de choque” (“crash landing”). Já seguir o caminho associado à manutenção de uma taxa de esgotamento constante poderia ser descrito como uma “aterragem suave” (“soft landing”).

No entanto, a uma taxa de esgotamento constante de 2%, as emissões de dióxido de carbono para a atmosfera manter-se-iam nos próximos anos, em valores que podem revelar-se ainda incompatíveis com o objectivo de contrariar no grau desejado as alterações climáticas e o aquecimento global.

Se assim for, terão de ser tomadas medidas eficazes que levem a uma redução significativa da taxa de emissão de gases de efeito estufa para a atmosfera. Durante várias décadas ainda, não será viável abandonar a extracção de combustíveis fósseis, mas será possível reduzir progressivamente as quantidades extraídas, reduzindo assim significativamente a taxa de esgotamento das reservas. Para tanto, serão necessários pesados investimentos no desenvolvimento de fontes de energia não-carbonadas (incluindo, no curto e médio prazo, a energia nuclear num percurso de transição para as energias renováveis). Ao mesmo tempo, as economias de energia devem ser encorajadas e promovidas, em todos os ramos da economia e actividade social. A este respeito, o ordenamento do território, incluindo o uso da terra, o planeamento urbano, regional, dos transportes e o planeamento ambiental, são de suma importância.

Credit: green-blog.org (http://www.green-blog.org/media/images/uploads/2012/11/hurricane-sandy-effect-630×420.jpg)

A conferência de Paris, a COP21, é uma oportunidade para uma nova avaliação da situação por parte dos especialistas do clima, criar condições para incentivar a difusão junto dos cidadãos do conhecimento dos problemas que se colocam, aprofundar a consciência dos desafios que as sociedades humanas têm hoje pela frente, e chegar a acordos, a aceitar por todos, sobre os caminhos a seguir para a resolução desses problemas.

É necessário compreender e ter em mente que esta não será uma tarefa fácil. Dificilmente será possível ter sucesso sem convulsões sociais e políticas que encontrarão grande hostilidade por parte do grande capital, de poderosas corporações multinacionais, bem como do complexo industrial-militar, cujos interesses estarão em jogo. Será necessário criar condições para que a paz e a segurança prevaleçam no planeta. No seio das organizações internacionais e supranacionais será necessário chegar a um amplo consenso sobre a necessidade de implementar programas adequadamente projectados e calendarizados de substituição de fontes de energia carbonadas, desenvolvendo ao mesmo as poupanças de energia em todos os domínios de actividade social. Provavelmente será mais difícil reduzir o consumo de combustíveis fósseis para utilizações que não envolvem a queima. Esse é no entanto uma parte menor do consumo total.

É necessário lançar um pacote projectos concretos, que sejam económica e tecnicamente viáveis e tenham a concordância dos círculos políticos dirigentes, pacote que especifique a atribuição de tarefas a serem realizadas por instituições ou grupos de instituições a nível nacional ou internacional. Exige-se ainda uma reformulação substancial de políticas nas áreas da ciência e tecnologia, que não exclua a investigação livre, dita “blue-sky research“, e o aumento substancial dos recursos humanos e financeiros atribuídos à investigação, desenvolvimento experimental e inovação.

O autor está grato ao Prof. Rui Namorado Rosa pelas esclarecedoras discussões sobre o tema da extracção de recursos minerais energéticos e da sua eventual taxa de esgotamento no futuro. Rui Namorado Rosa é físico, professor catedrático jubilado da Universidade de Évora, Portugal. É membro da ASPO ― Association for the Study of Peak Oil.

30 de Outubro de 2015

Frederico Carvalho é físico. Possui o grau de doutor em Física de Neutrões e Engenharia Nuclear, pela Universidade de Karlsruhe, Alemanha. É Vice-presidente do Conselho Executivo da Federação Mundial dos Trabalhadores Científicos (Paris) e preside à Direcção da OTC ― Organização dos Trabalhadores Científicos, Portugal



[4] Note-se que no caso da produção anual se manter estável, a taxa de esgotamento irá crescendo com o tempo

[5]  Neste contexto, não deverá esquecer-se o facto de que à extracção dos combustíveis fósseis está associada um dispêndio de energia a considerar quando é feito o balanço energético global do processo

―ver também “The Depletion Protocol”, in: “The Truth about Oil and the Looming Energy Crisis”, Colin Campbell (Eagle Print, Ireland, 2004)