António Armando da Costa
No passado dia 2 de Abril, num artigo de Andrea Cunha Freitas o jornal Publico afirmava que a Ciência portuguesa se encontrava de boa saúde pois se encontraria em 11º lugar entre 27 países europeus. Na verdade, era dito, o número de publicações triplicou na última década, colocando Portugal entre o Reino Unido e a Alemanha na tabela das publicações por milhão de habitantes, segundo estatísticas agora divulgadas. Confrontando os dados com outros indicadores, concluía-se ainda que o país produz muita ciência e barata.
Depressa surgiram as vozes do costume a embandeirar em arco com esta situação magnífica. No mesmo jornal, a 5 de Abril, Carlos Fiolhais congratulava-se com estes factos dizendo que chegámos perto do grupo dos países da frente. Para CF isto era obra, claro,não só do esforço dos cientistas, mas também, e acima de tudo, de uma política que visava sair da posição lastimável em que nos encontrávamos, cujo principal protagonista teria sido José Mariano Gago que mobilizara governo e sociedade para que uma geração de jovens pudesse mostrar os seus talentos numa área que é hoje decisiva para o progresso das nações.E no mesmo dia, no jornal Diário de Notícias, Maria de Lurdes Rodrigues, ex-ministra da Educação de Sócrates, famosa pela sua política educativa de ter perdido os professores, mas ter ganho a opinião pública na eterna reconstrução do nosso Sistema Educativo, afinava pelo mesmo diapasão.
Todos parecem muito contentes, mas não os autores de tanto sucesso: os docentes/investigadores e os investigadores. A 11 de Abril os bolseiros de investigação enquadrados pela Associação dos Bolseiros de Investigação Científica (ABIC) lançou a campanha “Luto pela Ciência”. Os bolseiros exigem o combate contra a precariedade cujo fim as alterações feitas o ano passado não vieram concretizar, nem mesmo no caso dos doutorados. Apontam «a instabilidade laboral, o salário baixo para um trabalho que é altamente qualificado e a falta de perspectivas de ingresso na carreira de investigação» como as questões para as quais é necessária «solução célere». É necessário, afirmam, “a integração dos bolseiros no regime geral da Segurança Social e a revogação do Estatuto do Bolseiro de Investigação”. Eles querem que o rumo seguido nos últimos anos de «substituição de contratos de trabalho de diferentes níveis de investigação por bolsas» deve ser invertido e exigem «contratos para todos». Afinal o grande sucesso faz-se à custa dos produtores de Ciência, considerados descartáveis no fim dos projectos, e sem uma justa retribuição salarial, que ajuda a que a produção científica seja barata… Tudo isto num quadro aonde não existe verdadeira autonomia cientifica.
Em vez de embandeirar em arco com os sucessos baseados em trabalho sem direitos, reconheçamos que o Sistema Científico e Técnico Nacional está profundamente doente. O desrespeito pela negociação da actividade científica do Sistema Universitário/Politécnico (SU/P) com o Governo financiador, o subinvestimento crónico, a precariedade laboral e os baixos salários, são cancros que o afectam desde há mais de quatro décadas. E o ministro José Mariano Gago foi responsável pelo reforço deste estado de coisas, ao lançar as bases da privatização do SU/P, através do Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior (RJIES), promovendo: a total separação operacional entre o Ensino Superior e a Investigação, esquecendo que não há Ensino Superior sem Investigação própria associada; o desrespeito pelo trabalho intelectual sem direitos, com total subordinação dos investigadores às entidades que os contratam, descartáveis no fim dos projectos, e objecto duma avaliação punitiva, para eliminar dissidentes, e não para os fazer crescer como profissionais, desvalorizando total e completamente o trabalho em grupo; a cultura de projecto, onde o Governo financiador controla a investigação do SU/P através de projectos singulares, negando o exercício da sua Autonomia Científica. Na verdade, não há financiamento público para que o SU/P possa programar e executar as suas propostas sem subordinações externas, e.g. as que permitiam uma ligação dialéctica mais forte entre Ensino Superior e Investigação, garantindo que todos os docentes/investigadores de quadro façam Investigação, o que não sucede hoje, limitando-se as unidades do SU/P à liberdade de propor e depois de cumprir com a maior criatividade os projectos que os poderes públicos autorizam e financiam. Com objectivos programáticos limitados no tempo, e com financiamentos magros que acompanham esta limitação, o SU/P não pode assumir compromissos a prazo mais longo do que o dos projectos que subscreve. Só com actividade cientifica programada a médio e longo prazo pode o SU/P assumir responsabilidades de contratação de investigadores também a longo prazo, providenciar-lhes uma carreira no contexto do respectivo Estatuto, e dar-lhes vencimentos compatíveis com a dignidade do seu trabalho em comunhão com o Governo. Donde o fim da precariedade e a implementação da Autonomia Científica são duas faces da mesma moeda.
Uma investigação saudável passa: pela definição duma missão para o SU/P e para cada uma das suas unidades; pelo reforço da relação dialéctica entre Ensino Superior, Investigação e actividades de ligação com o exterior subsidiárias; pela negociação de um financiamento global que permita ao SU/P o exercício global da sua missão com autonomia, incorporando a defesa da liberdade académica, sem depender da aprovação do Estado financiador, com a regular prestação de contas e resultados de toda asua actividade; pela libertação do SU/P da subordinação a interesses privados conforme expressos no RJIES; e com rejeição da falsa autonomia do regime fundacional que só agrava a situação, pois tem como objectivo a prazo a privatização do SU/P, com uma ainda maior redução dos direitos laborais dos que nele trabalham. Tal garantirá que as respectivas instituições têm capacidade de assumir compromissos futuros de contratação de docentes/investigadores com direitos laborais, e.g. a pertença a uma carreira, vencimento compatíveis e inerentes à sua actividade intelectual, e assim tornar saudável a produção científica, cujo status actual nos deve envergonhar. Os cientistas têm direito a sentir-se parte das instituições aonde trabalham, o carácter permanente da actividade de Investigação é incompatível com a precariedade reinante, e assim é necessário pôr fim ao regime do cientista descartável e da Ciência barata, porque obtida à custa da sobre-exploração dos seus produtores e do público sub-investimento crónico.