Escravos em Portugal

Chafariz d’el Rey, c. 1570-80, Anónimo, pintura flamenga. Óleo sobre madeira (reprodução parcial) The Berardo Collection, Lisbon, Portugal

“ Lisboa é grande cidade de muitas e desvairadas gentes” (Fernão Lopes, Século XV)

A obra de Arlindo Manuel Caldeira, “Escravos em Portugal. Das Origens ao século XIX” (Ed. A Esfera dos Livros, 1ª edição, Março de 2017), é de leitura obrigatória para quantos queiram conhecer e se reconhecer no Portugal dos nossos dias. Citando Rómulo de Carvalho, “em cada instante está presente o passado e o futuro de todas as coisas”. A longa e trágica história da escravidão naquele que é hoje o território nacional e naquelas parcelas espalhadas pelo mundo onde os portugueses assentaram raízes e governaram durante séculos, é contada ao leitor com simplicidade, de forma atraente, por vezes emocionante, sem cedências ao rigor que se deve manifestar em qualquer trabalho científico. O livro é fruto de um longo trabalho de pesquisa atestado por um manancial de notas devidamente organizado, indicação de fontes e bibliografia citadas no texto. São sessenta páginas inseridas no final do livro, que são outras tantas janelas abertas ao leitor interessado em ir mais longe na exploração das pistas que a obra sugere.

Um aspecto que deve salientar-se, aspecto que dá ao livro sabor e identidade próprios, decorre da intenção declarada do autor de não fazer nas páginas que nos oferece “uma história da escravidão em Portugal, mas sim uma história dos escravos”, procurando evitar “a impessoalidade do discurso historiográfico” antes procurando pôr no centro da análise ”a dimensão física das pessoas vivas, neste caso os próprios escravos e, inevitavelmente, os seus senhores”. O que necessariamente obrigou a um esforço suplementar de pesquisa “para os ver renascer (os escravos) como pessoas, com sentimentos e paixões, relacionando-se com pessoas, em lugares concretos”.

A obra está dividida em capítulos. A riqueza da informação e da análise neles contida, adivinha-se pelo simples enunciado de alguns dos seus títulos: a “Utilização da mão-de-obra escrava”; a “Relação senhor/escravo”; ”Família, sexualidade e fim de vida”; “Promessas de liberdade”. O leitor não familiarizado com o tema aprenderá a conhecer a variada proveniência e a natureza do estigma que marcava esses seres ― os homens, as mulheres e as crianças, comprados e vendidos como objectos inanimados ou animais domésticos. Saberá da existência dos escravos brancos e, entre esses, dos escravos mouriscos; dos escravos japões e dos escravos chinos; dos escravos índios (aliás “indianos”); e, sobretudo, dos escravos africanos, valiosa mercadoria de exportação para o Novo Mundo. O livro trata de forma exemplar o enquadramento histórico e a evolução ao longo dos séculos deste processo complexo que, no que diz respeito a Portugal e aos portugueses, teve particular incidência ao longo de quatro séculos ― do século XV ao século XVIII. Estima-se que nesse período de maior concentração de mão-de-obra não livre, “ao todo, tenha havido, no continente e ilhas, um milhão de pessoas sujeitas a cativeiro”.

Os factos históricos que chegam ao nosso conhecimento devem ser vistos, interpretados e avaliados no contexto das realidades e padrões de comportamento das sociedades em que tiveram lugar. Ao ler a obra de que aqui nos ocupamos, deparamo-nos todavia com memórias e vivências de tempos muito recentes e mesmo dos dias de hoje. Daí o dizermos que a leitura nos trás ensinamentos preciosos sobre a sociedade em que nos inserimos.

Duas ou três notas que ilustram esta percepção de realidades que muitos de nós vivem ou viveram.

A primeira norma que veio restringir a escravidão em Portugal, foi “o alvará em forma de lei” de 19 de Setembro de 1761, assinado por Sebastião José de Carvalho e Melo, à data, ainda só Conde de Oeiras. O alcance desta medida legislativa era limitado pois unicamente proibia a importação de novos escravos. Quem já não era livre e por cá andava, escravo continuaria. Entretanto em 1773, a pena do Marquês de Pombal, naturalmente com o beneplácito régio, determinava que descendente natural de escravo seria livre: foi a chamada “lei do ventre livre”. O alvará de 1761 suscitou uma oposição organizada dos proprietários alentejanos que viam os seus encargos aumentados pois o estatuto de homem ou mulher livre implicava a atribuição de um salário. O salário mínimo de tais trabalhadores que era zero (descontados gastos mínimos com as necessidades de subsistência para a reprodução da força de trabalho nas condições de escravidão) passava a obrigar a uma jorna num regime de concorrência. Muitos desapareciam ou procuravam outra actividade obrigando ao recrutamento de trabalhadores livres assalariados, o que nem sempre era fácil. Foi por essa altura que o notório Intendente Geral da Polícia Diogo Inácio de

Pina Manique “promoveu a vinda para o continente de famílias dos Açores que distribuiu sobretudo pelo Alentejo” em número que terá atingido alguns milhares de indivíduos. Citando o autor da obra de que nos ocupamos aqui, “logo depois do envio da primeira leva de famílias açorianas para Évora, o intendente regozijava-se pelo facto de as jornas dos ceifeiros, que estavam a 480 e 500 réis, terem baixado para 300 réis com a chegada dos ilhéus”. Eis um sinal de um fenómeno que hoje se acentua, daquilo a que poderemos chamar a “escravidão dos homens livres”.

A independência do Brasil, proclamada em 1822 e reconhecida por Lisboa três anos mais tarde, terá levado parte significativa das elites locais a regressar a Portugal procurando abrigo no continente e nas ilhas adjacentes. Muitos desses retornados eram senhores de escravos que procuraram trazer consigo, mantendo-os nessa condição, o que contrariava o regime legal vigente instituído por Pombal já passados mais de sessenta anos. Assim, durante os anos que se seguiram foram inúmeras as petições ao poder real no sentido de isentar os “escravos retornados” da norma estabelecida pelo alvará de 1761. Umas bem outras mal sucedidas. A questão foi finalmente encerrada já em 1830 por um parecer da Mesa de Desembargo do Paço, sancionado pelo poder real, exercido, na altura, curiosamente, por Miguel I, “O Absolutista”. Nos Açores e na Madeira a norma pombalina foi ignorada durante setenta e um anos até à intervenção de D. Pedro que instalara na Terceira um governo de regência em 1832, data a partir da qual o tráfico de escravos e a escravidão passaram a ser oficialmente proibidos nos dois arquipélagos portugueses. Eis um exemplo edificante de uma situação ― o incumprimento da lei― que vai perdurando entre nós.

A abolição da escravidão e do tráfico de escravos ― entenda-se, compra e venda de seres humanos ― foi marcado por uma longa série de avanços e recuos que se estendeu ao longo de todo o século XIX, e que é ainda uma realidade vivida nos nossos dias, em formas, naturalmente, adaptadas à evolução das condições sociais que entretanto se foi verificando.

Não fizemos, até aqui, referência a uma instituição que marcou profundamente a sociedade portuguesa durante quase três séculos (1536-1821). Referimo-nos à Inquisição, omnipresente polícia de costumes, tribunal e juiz sob cuja alçada caíram numerosas vítimas da escravidão, legalmente instituída, e de um modo geral bem aceite pelas elites. O livro é também profundamente esclarecedor no que a respeita às formas diversificadas de relacionamento entre inquisidores e vítimas da escravidão. Destes muitos conheceram os cárceres do Santo Ofício, sofreram penas diversas, mais leves ou mais pesadas, indo em alguns casos até à fogueira. O livro é enriquecido com abundantes referências a processos julgados nos Tribunais do Santo Ofício, sobretudo referentes à Inquisição de Lisboa e à de Évora, guardados no Arquivo Nacional da Torre do Tombo.

A fechar, parece ter interesse ir recolher do passado, não do nosso mas de outras latitudes, uma nota, para muitos, algo inesperada. Em 4 de Abril de 1861, Abraham Lincoln, no discurso inaugural que proferiu no acto de tomada de posse como 16º presidente dos Estados Unidos da América, afirmou o seguinte:

Não tenho a intenção de interferir, directa ou indirectamente, com o instituto da escravidão nos Estados onde ele existe. Acredito não ter legalmente o direito de o fazer, e não tenho inclinação para o fazer”.

De resto, ao contrário do que se pensa, não foi a libertação dos escravos negros nos Estados do Sul o factor determinante da chamada Guerra da Secessão, na América do Norte[*].

Frederico Carvalho

 


[*]Thomas J. Dilorenzo, “The Real Lincoln: A New Look at Abraham Lincoln, His Agenda, and an Unnecessary War”,Prima Lifestyles (Mar. 2002) (v. http://www.paulcraigroberts.org/2017/08/21/lincoln-myth-ideological-cornerstone-america-empire/ )