Incêndios: um apelo à inquietação cívica
Victor Louro
A sociedade portuguesa atravessa um difícil período de ataque à solução governativa adoptada na sequência das eleições de 2015, de que a mais recente expressão está ligada aos incêndios florestais. As dimensões que assumiram neste Verão e suas consequências trágicas incomparáveis com desastres anteriores conferem-lhes um carácter essencialmente diferente do que até agora se apresentava. A dimensão humana da tragédia é assustadora. E a dimensão territorial também.
Isto tornou finalmente inadiável um conjunto de medidas visando os espaços florestais em geral, e a defesa contra incêndios, em especial. E trouxe à praça pública numerosas opiniões – quantas vezes emitidas por pessoas que já têm sido designadas como “tudólogos”, e raramente por profissionais ligados às questões florestais. De qualquer modo, discussões (mesmo que muitas vezes envenenadas e pouco sérias) que vieram dar à Opinião Pública uma força que nunca teve neste domínio.
O Governo apresentou um conjunto de projectos de diplomas que colocou à discussão pública (pela primeira vez com bastante tempo de discussão!). Mas, segundo as acusações feitas por múltiplas entidades que se empenharam nessa discussão e apresentaram propostas, ignorou a maior parte delas e aprovou os diplomas finais como entendeu. Esta é a primeira grande crítica devida à actuação do Governo, que consubstanciou uma inadmissível atitude de desrespeito pela participação cívica, essencial em Democracia.
E esses diplomas têm importância diversa (talvez nenhum deles muito importante), mas deixam por tocar questões essenciais (a título de exemplo, as relacionadas com as características dos mercados de bens florestais – totalmente “imperfeitos” – com miríades de produtores e pouquíssimos consumidores fabris, em especial no ramo das celuloses e das cortiças).
Tenhamos consciência de que confluíram 2 fenómenos: um, o habitual abandono, etc., que temos de resolver; outro, o climatológico, que se agravará e para o qual temos de nos preparar para melhor resistir.
A intensificação provocada pela catástrofe deste fim-de-semana levou o problema florestal para níveis de Política nunca antes atingidos. E colocou uma pressão inaudita, especialmente sobre o Governo e o Parlamento. E é neste contexto que interessa chamar a atenção para alguns erros que não devem ser cometidos, porque as cadelas apressadas parem os filhos cegos…
A pressa acarretará precipitações. A opinião pública está marcada por uma mais do que compreensível indignação – que forças bem determinadas se encarregam de virar contra o Governo, porque verdadeiramente é o Governo que querem derrubar, para condenarem a solução governamental-parlamentar, cuja matriz europeia e democrática não conseguem aceitar. E o terreno fica propício a fenómenos de populismo que cada vez mais se vão manifestando.
Neste quadro assumem destaque os dirigentes do PSD e do CDS. Jogam com aquilo que julgam ser o desconhecimento dos portugueses. Mas é preciso lembrar mais uma vez que o estado a que se chegou não foi precipitado de um dia para o outro: são décadas de políticas de desinvestimento na floresta e no Estado, que assumiram o auge (?) no tempo do governo desses dois partidos articulados com a Troika. Sinteticamente lembre-se a transferência das competências de combate dos incêndios florestais para as corporações de bombeiros e o Serviço Nacional de Bombeiros, que deixou as próprias Matas Nacionais privadas dos meios que detinham para defesa dos recursos que o Estado administrava (1980/81, PPD/CDS); o desmantelamento do Instituto Florestal e retirada do corpo de mestres e guardas florestais da gestão das matas (1996, PS); o desligamento das tarefas de gestão florestal desse corpo afecto à gestão e vigilância directa das matas nacionais e perímetros florestais, passando a integrar o Corpo Nacional de Guarda-florestal com funções quase exclusivas de fiscalização das leis em todo o território; novamente a verticalização dos Serviços Florestais do Estado em 2003/4 (PSD), já sem conseguir recuperar dos estragos provocados pela “reforma” anterior (por exemplo, não existe reforço e rejuvenescimento do corpo técnico de gestão florestal desde 1994/95); transferida para a GNR a gestão da Rede Nacional de Postos de Vigia, mesmo dos que se situam no interior das Matas Nacionais e perímetros florestais e nela integrado o Corpo Nacional da Guarda Florestal (2006, PS); o impedimento pelo Ministro das Finanças Bagão Félix (2004, PSD/CDS) da adopção dos incentivos fiscais indispensáveis à transformação da floresta que hoje ele próprio reclama; o fortalecimento da prevalência do Combate em detrimento da Prevenção, pelas mãos do Ministro da Administração Interna Miguel Macedo (2011, PSD/CDS).
É confrangedor e inadmissível que muitos dos que ontem tiveram posições activas e decisivas impedindo modificações essenciais (como aconteceu também por responsabilidade de dirigentes da ANMP, que ameaçaram o Ministro da Agricultura do seu próprio governo PSD (2004), venham hoje fazer coro contra as medidas que este governo não tomou!
À parte os aspectos de inaceitável comportamento de agentes políticos (como acabei de exemplificar) é preciso ter consciência da profunda degradação a que tem estado sujeito o sector, basicamente em consequência do famigerado princípio do “menos Estado” que tem sido apresentado (até 2015) como solução incontornável para os problemas do País: acrescentaram negatividade à já muito negativa instabilidade das políticas adoptadas para o sector.
Este quadro ganha ainda mais expressão apresentando o caso emblemático do Pinhal de Leiria: na década de 1980 os seus mais de 11 000 hectares eram geridos através de 2 Administrações Florestais com 4 técnicos, 4 mestres florestais, 29 guardas florestais e 144 trabalhadores rurais; desde 2011 conta apenas com 1/3 (um terço) de técnico (porque o técnico tem a seu cargo outra mata nacional e os assuntos técnicos da unidade de gestão florestal) e 19 assistentes operacionais que também trabalham em mais 4 matas nacionais!
Com estas linhas pretendo desmistificar.
Os problemas são profundos e não se compadecem com pressas: custam muito dinheiro, repercutem-se por décadas, e respeitam a valores tão fundamentais como as Pessoas e o Território.
Desde domingo o País não é mais aquele que conhecíamos: o que sofreu a população, e a destruição dos valores naturais (solos, águas, vegetação, fauna) deram origem a uma entidade nova e profundamente afectada. O habitualmente chamado “Interior” veio até ao mar!
Não se pode errar mais nas medidas que visem a existência das pessoas especialmente no Interior: elas são a razão de ser de um país, têm direito a serem protegidas e a disporem de condições de vida e de trabalho dignas. Elas sabem o que precisam, não são meros destinatários das ideias inventadas nos gabinetes – têm de participar da definição dessas medidas, como está a fazer a Associação das Vítimas do Incêndio de Pedrógão Grande. Mais vale que demore mais, mas corresponda ao que as pessoas querem, do que se atirem medidas muito rapidamente que não tenham adesão à realidade.
Não é obra fácil revitalizar o que já estava desvitalizado – estado que agora se agravou (na dentição põe-se uma placa ou um implante…). Prudência, confiança e determinação são precisas!
No plano estritamente florestal, lembremo-nos de que as coisas têm de ter a participação efectiva dos profissionais: é preciso utilizar o Conhecimento que eles detêm (ninguém quereria ser submetido a uma cirurgia feita por um motorista ou por um farmacêutico…).
Refazer a floresta ardida não é substituí-la por novas plantas das espécies que arderam nos mesmos locais: é dar a racionalidade que faltava à distribuição dos espaços e das espécies. A opção necessária pela utilização em maior escala de espécies autóctones implica apoios financeiros que façam face às necessidades das pessoas que iam procurar satisfazer com os eucaliptos – os quais são absolutamente necessários a um ramo das indústrias de base florestal mais evoluído e economicamente mais forte. É o momento de pôr ordem na sua utilização, até agora tão desregrada. Como não há muitos marqueses de Pombal… é preciso sensatez, conhecimento e participação.
Impõe-se respeitar as disposições em vigor sobre utilização de sementes e qualidade das plantas de viveiro, sob pena de se avançar para floresta sem qualidade. Muitas das empresas sucumbiram ao continuado desinvestimento no sector e sucessivas alterações de políticas, especialmente na 1ª década do século – não escancaremos agora as portas aos estrangeiros que quererão socorrer-se da pretensa liberdade de mercado para nos impingirem os seus materiais florestais de reprodução (sementes e plantas). As sementes necessárias não se importam: têm de ser colhidas cá! O nosso pinhal bravo certificado para colheita de sementes é do melhor que há no mundo. As quantidades de sementes que vão ser necessárias e a diminuição drástica das áreas de recolha exigem a maior parcimónia e eficiência na utilização dos stocks.
As tarefas que a revitalização impõe são um fortíssimo incentivo ao emprego – bem necessário para substituir os empregos que foram destruídos. Mas emprego qualificado é preciso! A capacidade empresarial existe: precisa é de confiança!
Mas antes de tudo isso está o problema do uso das propriedades. Tornou-se evidente para toda a gente que quem não tenha condições para cumprir os planos ou directivas que venham a ser adoptadas, tem de resolver o seu problema (ou o problema que herdou) transferindo para outrem as suas obrigações: não precisa de vender (não faltariam abutres!), mas precisa de transferir, sem deixar de ser dono: arrendando, integrando-se numa ZIF, associando-se de qualquer modo – o que não pode mais acontecer é que toda a sociedade tenha de pagar os efeitos do abandono (justificado ou não).
Quando se reclama – bem e justamente – que isto não pode mais acontecer, é preciso ter a noção de que a responsabilidade das soluções não é só do Governo: é de todos, desde logo os proprietários das terras. E isto não se compadece com pressas… nem com delongas, nem com demagogias!
É indispensável que se tenha consciência de que as árvores não crescem como o milho: demoram anos (algumas, muitos anos) até poderem ser utilizadas nas fileiras industriais – é nelas que ganham valor. E até lá?
Esta hora de muita dor tem de ser a hora de construir a floresta de que o País precisa, capaz de contribuir seriamente para a melhoria das condições de vida das pessoas, para a melhoria do ambiente, para a economia, para o equilíbrio do território! Que a tragédia seja transformada em oportunidade ganhadora.
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