A HIPOTENUSA

Pátio interior do Liceu Camões

“Leccionei no Liceu de Camões, em Lisboa, durante catorze anos, de 1934 a 1948, ou, mais rigorosamente, de Outubro de 1934 a Julho de 1948. Catorze anos lectivos completos. Admito que a memória me falhe mas creio que nunca faltei a nenhuma aula. Só o faria em caso de doença mas felizmente fui sempre um ser saudável, no decurso dessa época, sem contar com alguma leve constipação que só me dava o incómodo de ter de me assoar.

O edifício do liceu, que ainda sobrevive em muito bom estado na Praça José Fontana, era possivelmente, como edifício escolar o melhor de Lisboa e um dos melhores do país, com salas amplas, bons laboratórios, extensos pátios de recreio e tudo quanto se pode desejar para um estabelecimento de ensino com grande frequência de alunos. O corpo docente correspondia, em número, às necessidades dessa frequência.

Dei-me bem com todos os colegas mas a nenhum tomaria para exemplo. Mal começava a soar a campainha para a entrada das aulas, logo eu saía do lugar em que estava e me dirigia para a minha sala atravessando o pátio para além do qual ela se situava. Atravessava-o obliquamente, para encurtar o caminho e chegar à sala quando o toque terminasse.

Num dos primeiros dias em que exerci a minha profissão no Liceu de Camões, ia eu a atravessar o pátio no meu trajecto oblíquo quando alguém, a pouca distância, me chamou: “Ó colega!” Parei e por cortesia dirigi-me a quem me chamava. “Venha cá, venha cá.” E passou-me o braço pela cintura, amigavelmente. Era o professor Costa Torres, de Filosofia, homem de quem me tornei amigo e admirador pelo seu saber e inteligência. “Venha cá, venha cá. O meu amigo ainda está novo nestas coisas. Tem que aprender. Fique sabendo que para ir para as aulas se segue pelos catetos e quando se sai é que se caminha pela hipotenusa.”

Este foi o meu baptismo profissional mas nunca ninguém me desviou do caminho que a consciência me impunha: o da hipotenusa”.

Rómulo de Carvalho

In “Memórias”, pp 203, Fundação Calouste Gulbenkian, 2ª Ed, Lisboa 2011

Desenhos de Eduardo Salavisa, gentilmente cedidos pelo autor para ilustrar esta página.