Solidariedade e denúncia
A FMTC toma posição e chama as organizações filiadas a reagir
Recebemos da Federação Mundial dos Trabalhadores Científicos, na qual a OTC se encontra filiada, notícia de situações preocupantes e incidentes graves que vêm ocorrendo em Universidades brasileiras. A Federação Mundial decidiu tomar uma posição pública contra as agressões e atentados à liberdade de ensino e de expressão de que tem conhecimento. Trata-se de dar seguimento a uma resolução aprovada na Assembleia Geral de Dakar, uma vez recolhida informação adicional àquela de que se dispunha na altura (Dezembro de 2017) e consultadas organizações brasileiras de Trabalhadores Científicos com as quais a Federação está em contacto. Validado por estas o conteúdo da tomada de posição, vimos agora dela dar conhecimento aos nossos associados e à comunidade científica nacional bem como aos órgãos nacionais apropriados dos poderes legislativo e executivo e, ainda, aos órgãos dirigentes das instituições e unidades de ensino superior e investigação.
Por seu turno, a Presidência da Federação Mundial remeterá o documento a que deu o título “Solidarity with Brazilian universities” às instâncias supranacionais com as quais mantém relações, designadamente, a Organização das Nações Unidas e suas agências, onde se destaca a UNESCO, e ONGs científicas ou académicas.
Da mensagem que, no decurso do processo de construção do texto final aprovado, o Prof. Jean-Paul Lainé dirigiu aos colegas brasileiros destacamos a seguinte passagem da qual o Presidente deu também conhecimento às organizações filiadas:
” A inteligência, o conhecimento, o pensamento crítico e o pensamento autónomo, estão a ser particularmente atacados neste período da história da humanidade, onde tudo pode acontecer: o melhor ou o pior. Na fase actual do capitalismo, na era da globalização ao serviço das oligarquias das principais potências, só se consideram os conhecimentos técnicos e investigação que sirva grandes mercados e com novos proveitos/ lucros.
A Educação e, especialmente, a Educação superior são alvos preferidos sempre que esta concepção da ciência é desenvolvida, tal como acontece no vosso país desde o “golpe de Estado” que levou a destituição de Dilma Rousseff…Resistência e Solidariedade são necessárias”.
TOMADA DE POSIÇÃO DA FMTC: CARTA E ANEXO
Solidariedade com as universidades brasileiras
(vocativo conforme o destinatário)
Informações graves que nos chegam relativas a factos que ocorreram em diversas universidades do Brasil levam-nos a alertar-vos e a solicitar que da vossa parte sejam tomadas iniciativas apropriadas. Encontrarão abaixo referência a alguns casos exemplares.
Estes factos visam uma universidade pública sem dúvida considerada como insuportável foco de afirmação de liberdade e respeito pelos direitos humanos. O respeito pela soberania do Brasil e do seu governo não podem justificar indiferença e inacção face a uma tal situação.
Desejamos recordar textos internacionais fundamentais. Em primeiro lugar citamos a Declaração Universal dos Direitos do Homem, que afirma o direito de qualquer indivíduo, à vida, à segurança da sua pessoa e a “igual protecção” perante a lei.
Por outro lado, a 39ª Conferência Geral da UNESCO votou por unanimidade a “Recomendação sobre a Ciência e os investigadores científicos”. Esta recomendação implica, tanto no seu espírito geral e referências inseridas no seu preâmbulo, como em muitos dos seus artigos, um compromisso de todos os países em assegurar aos investigadores, protecção e condições de trabalho apropriadas ao exercício das suas responsabilidades, quer exerçam as suas actividades no sector privado ou no mundo académico.
Como organização atenta à situação dos cientistas e ao seu papel na sociedade, a FMTC considera ser seu dever lançar este alerta. De uma forma mais geral, a negação das regras que devem prevalecer em qualquer Estado de direito, independentemente das pessoas atingidas, deve mobilizar a reacção de quantos estão atentos à defesa e respeito dos direitos humanos.
Eis a razão pela qual a Federação Mundial dos Trabalhadores Científicos se vos dirige, para que façam uso de todos os meios ao vosso alcance com vista a levar o governo do Brasil a pôr fim às agressões e outras formas de perseguição de que são vítimas os investigadores desse país.
Dr Jean-Paul Lainé
Presidente da FMTC
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Exemplos de atentados às liberdades e agressões diversas (2017-2018)
Universidade de São Paulo: Em 23 de Agosto de 2017, um grupo invadiu o Campus para uma “operação de limpeza”, designadamente a remoção de todas as paredes da Universidade de materiais considerados “inaceitáveis”. A operação foi repelida.
Universidade Católica do Estado de Pernambuco: A 5 de Outubro de 2017, um grupo tentou impedir a realização de um colóquio sobre o centenário da Revolução Russa, organizado em conjunto pela associação de estudantes e docentes … que conseguiram gorar a tentativa.
A 25 de Outubro de 2017, um grupo de indivíduos envergando fardas militares invadiu a sala onde decorria um outro colóquio sobre o mesmo tema, desta vez organizado por investigadores da Universidade estatal do Rio de Janeiro. Os invasores filmam e insultam os participantes da conferência que é interrompida.
Aeroporto de São Paulo: a 12 de Novembro uma colega convidada a participar num colóquio de Filosofia é molestada e insultada.
Universidade Federal da Bahia: a 6 de Novembro de 2017, num contexto de agressões repetidas de grupos de extrema-direita, a Universidade tem que reforçar a segurança das instalações a quando da apresentação do trabalho de uma estudante-investigadora sobre “sexualidade e diversidade de género na educação infantil”. Há insultos verbais, ameaças de morte a professores-investigadores, intrusões difamatórias e falsas nos sítios internet onde falam dos seus projectos de investigação.
A 13 de Novembro de 2017 ocorre uma invasão do Campus por um grupo munido de armas de fogo e tacos de basebol. Pretendiam provocar um conflito. O Reitor teve que chamar a Segurança do Campus para desimpedir/desobstruir os locais. O próprio Reitor, que é um defensor da autonomia universitária, passou a ser o alvo pessoal desta violência, por ter defendido os docentes e o pessoal da universidade.
Universidade Federal de Ouro Preto, Estado de Minas Gerais: um magistrado do Ministério Público estadual dá início a um processo de inquérito sem qualquer motivo. O assunto diz respeito a um projecto de investigação sobre o tema “Ideologias”, projecto financiado desde 2009 pelo Conselho Nacional para o Desenvolvimento Científico e Tecnológico. O promotor decide suspender o projecto. O Professor responsável pelo projecto resiste à decisão e persiste no projecto.
Universidade Federal de Santa Catarina: a 14 de Setembro, às 6:30 da manhã, um antigo Reitor da Universidade é preso na sua casa no quadro de uma “investigação por corrupção”. Mesmo antes de ter tido tempo para perceber a razão da detenção e de poder contactar o seu advogado, é sujeito a um interrogatório. Após 5 horas de interrogatório, é obrigado a despir-se completamente e sujeito a uma revista das partes íntimas do corpo. Trinta horas mais tarde, humilhado e vestido com a roupa amarela regulamentar de prisioneiro, é enviado para a Penitenciária de Florianópolis, onde permanece 18 dias. Findo este tempo é libertado do mesmo modo como tinha sido preso, sem qualquer acusação e sem qualquer explicação, ficando proibido de entrar no Campus da Universidade. O Reitor suicidou-se, lançando-se do quarto andar de um centro comercial. Não foram até agora apresentadas quaisquer acusações contra ele, nem quaisquer provas de culpa.
Universidade de Brasília: em Maio-Junho de 2018 uma professora-investigadora é molestada, ameaçada de morte e forçada a deixar Brasília, muito provavelmente por ser uma activista da descriminalização do aborto. Nesta mesma universidade um estudante foi encontrado morto junto das residências universitárias; o assassínio deve-se provavelmente ao facto de este estudante ser, desde Abril, um dos ocupantes das instalações da Reitoria.
Universidade Federal da Bahia: ocorreram de novo nesta primavera, ameaças contra professores ―ameaça de morte, num caso ― em razão do conteúdo das suas investigações; um estudante de mestrado foi igualmente ameaçado antes da apresentação da sua tese.
Universidade Federal do ABC[1]: três professores são importunados, objecto de uma comissão de inquérito, pelo simples facto de terem publicado uma entrevista do anterior Presidente Lula da Silva.
Fim do documento da FMTC.
[1] A UFABC, fundada em 2005 por lei assinada pelo Presidente Lula da Silva, é uma universidade de investigação. Durante os anos de 2010 e 2011, foi a única universidade brasileira com factor de impacto médio em publicações científicas acima da média mundial segundo a SCImago Institutions Rankings. “ABC” é uma região tradicionalmente industrial do estado de São Paulo, parte da Região Metropolitana de São Paulo, porém com identidade própria. A sigla vem das três cidades que, originalmente, formavam a região. (nota OTC)