ENSAIO

Frederico Carvalho

Contribuição para uma reflexão colectiva sobre cultura científica e responsabilidade social dos trabalhadores científicos

Introdução

Maria Lisboa foi o nome de baptismo da máquina gigantesca construída para brocar as entranhas da terra, usada que foi na abertura de túneis do metro da nossa cidade[1]. Imaginem o espanto e o temor com que os antepassados dos lisboetas que por aqui andaram há uns séculos atrás olhariam para um tal engenho. E que pensamentos suscitaria uma tal máquina a um Newton ou a um Galileu? Que diriam esses homens cuja inteligência abriu as portas a profundas transformações da sociedade e do mundo ao assistir ao espectáculo majestoso da descolagem de um Boeing 747? Ou da ascensão de um foguetão Ariane?

Que prodígios de organização e de coordenação de esforços e recursos materiais, envolvendo verdadeiros exércitos de trabalhadores, não estão por detrás dessas e de outras realizações humanas[2]. Realizações que se sucedem e se ultrapassam a si próprias num infindável processo de aperfeiçoamento e inovação, à medida que se acumula, conserva e transmite, de geração em geração, o conhecimento da Natureza, feito de múltiplos conhecimentos e da experiência da sua aplicação. Conhecimentos que se organizam como pedras de um grande edifício, em que tudo tem a ver com tudo: o edifício da ciência, em permanente construção, edifício cuja coesão decorre da argamassa especial que é o método científico.

Há na ciência (porque não chamar-lhe filosofia natural?) duas componentes: o conhecimento, por um lado, e, por outro, o percurso intelectual que a ele conduz. Por outras palavras: há um património de conhecimentos e há um processo de aferição e de descoberta de novas regularidades na Natureza. O processo é o método científico, método de aplicação geral à vida, e que envolve:

  • a observação e a interpretação de fenómenos naturais;
  • o estabelecimento de relações de causalidade;
  • a previsão e a verificação da previsão.

A descoberta do método científico e da experimentação como instrumento privilegiado para chegar ao conhecimento e a sua aceitação progressiva por parte das elites, é um passo de extraordinária importância na evolução da Humanidade, que se desenha gradualmente a partir da segunda metade do século 16. Entretanto, o homem culto de há cinco séculos e o homem culto dos nossos dias, não são efectivamente o mesmo homem — pensam de maneira diferente e vêm o mundo de maneira diferente. E, necessariamente, têm uma diferente relação com a Natureza. Com idêntica convicção mas consequências distintas, quer para o mundo natural quer para a própria sociedade humana:

” (…)
Onde Sancho vê moinhos
D. Quixote vê gigantes.

Vê moinhos? São moinhos.
Vê gigantes? São gigantes.”[3]

A interiorização do método científico é uma condição prévia do saber pensar, no sentido de pensar em conformidade com as leis da natureza. E saber pensar é indispensável para fazer progredir o património de conhecimentos da humanidade, enfrentar tanto os grandes desafios do futuro como os pequenos desafios do quotidiano.

Nesta época em que as forças produtivas atingiram um nível de desenvolvimento qualitativo e quantitativo tal que a acção humana de transformação da natureza é susceptível de alterar equilíbrios naturais à escala do planeta, redobra a importância do saber pensar correctamente e de que a capacidade de assim pensar se alargue progressivamente de modo a abranger as grandes massas. O papel da escola que pratique a aprendizagem científica e o método científico é, aqui, fundamental, mas importa lembrar que a eficácia da escola depende da existência de professores convenientemente formados e de um apoio social adequado.

Uma reflexão sobre a importância da cultura científica das massas e sobre as formas de a desenvolver é hoje uma necessidade num mundo em acelerada transformação, determinada pelos impactes da revolução científica e técnica que marcou o século passado, e a sua gestão pelo capitalismo desenvolvido. A compreensão do que está ou pode estar em jogo nas aplicações tecnológicas e nos diferentes comportamentos sociais, dificilmente pode ser atingida sem o desenvolvimento da cultura científica. Essa compreensão é também mais difícil nas sociedades menos activas do ponto de vista da criação científica e da inovação tecnológica, designadamente naquelas que, no fundamental, se limitam a importar os novos produtos tecnológicos por falta de experiência de trabalho científico e de meios para o realizar. Assim, a par do desenvolvimento da cultura científica e do ensino das ciências, importa desenvolver as capacidades de investigação científica e de desenvolvimento tecnológico e os centros onde podem ser praticados.

Os impactes da aplicação de tecnologias novas ou da aplicação de tecnologias já conhecidas mas em muito maior escala do que anteriormente, de forma impensada e com manutenção, nas novas condições, de comportamentos sociais estabelecidos, marcam o dia-a-dia das sociedades humanas sem que, em muitos casos, as massas se apercebam verdadeiramente das origens e consequências desses impactes e das condições que os determinam.

Há questões que, embora na ordem do dia, são, ainda, para muitos, longínquas ou misteriosas, ou ambas as coisas, e, por esse motivo, não determinam um esforço de análise nem alterações de comportamentos, fazendo recear que a consciência da sua importância e a sua correcta compreensão possam acabar por chegar com perigoso atraso.

Alterações climáticas; empobrecimento da camada de ozono protector; as fontes de energia utilizadas e utilizáveis e as perspectivas de evolução do consumo energético mundial; a poluição global e acelerada do planeta, incluindo a contaminação da água, dos solos, da atmosfera e da biosfera; os problemas da desflorestação, do abastecimento de água às populações e da diminuição das terras aráveis; a desertificação do mundo rural e o crescimento urbano incontrolado, designadamente, nos países mais pobres; a disseminação de alimentos geneticamente modificados; os progressos na sequenciação do genoma humano; o registo de patentes de organismos vivos, genes e organismos geneticamente modificados; a perda de eficácia dos antibióticos e dos herbicidas; os problemas da sida e da droga.

Eis algumas das situações e problemas que, requerendo uma abordagem científica, simultaneamente específica e integrada, a ser feita por especialistas competentes, só poderão ter solução política e social, a encontrar pela via de uma tomada de consciência das massas, suficientemente informadas e preparadas no plano da cultura científica.

Informação e preparação que devem ser consideradas como um pressuposto do funcionamento da própria democracia, entendida como democracia participativa. A cultura científica não pode deixar de ser encarada como parte integrante e inalienável da cultura. Hoje serão mais sérias do que já foram as consequências da marginalização do conhecimento e do método científicos na formação dos cidadãos. Mais sérias, quando se coloca a necessidade de compreender não os mecanismos, por exemplo, de uma máquina a vapor mas os mecanismos da vida sobre a Terra.

Vale a pena recordar aqui Bento de Jesus Caraça, o militante da cultura e professor de matemática, exemplo extraordinário do que é o exercício persistente da responsabilidade social do Trabalhador Científico.

 “ (…) o cultivo e progresso da ciência, bem como a sua aplicação à vida corrente da sociedade, hão-de ser sempre obra de grupos especializados – prospectores e realizadores; chamemos-lhes elites, se assim o quiserem – existem e existirão, como existem e existirão as elites de outras profissões e actividades.

Mas o que não deve nem pode ser monopólio de uma elite, é a cultura; essa tem de reivindicar-se para a colectividade inteira, porque só com ela pode a humanidade tomar consciência de si própria, ditando a todo o momento a tonalidade geral da orientação às elites parciais.”

(inA cultura integral do indivíduo”)

(…) cultura e liberdade identificam-se – sem cultura não pode haver liberdade, sem liberdade não pode haver cultura.

(inAs Universidades populares e a Cultura”)

Nas sociedades onde o nível cultural científico é mais baixo e onde se verifica maior atraso nas estruturas e actividades de investigação científica e desenvolvimento tecnológico, é mais difícil percorrer com segurança o caminho que deve conduzir da necessária análise, no plano científico, das situações concretas a resolver, até à escolha, no plano político e social, das soluções mais adequadas, a praticar. O parecer de comissões científicas especializadas, em tais circunstâncias, arrisca-se a assentar unicamente em compilações de conhecimentos e descrições de experiências alheias, nem sempre facilmente interpretáveis e adaptáveis às condições locais específicas em que o problema se coloca, e sobre as quais é difícil fazer juízos críticos por falta de experiência própria de trabalho sobre os temas em análise. Ao mesmo tempo, por força da pequenez e deficiente organização da comunidade científica local, é quase impossível o debate contraditório interno a que os pareceres de tais comissões deveriam ser sujeitos.

      1. Ciência e Tecnologia

O conhecimento científico permite e muitas vezes tem apenas em vista, compreender o mundo[4], explicar o funcionamento da natureza. Compreensão e explicação que constituem o fundamento mais sólido de todo o esforço tendente a tirar partido dos fenómenos e mecanismos naturais, esforço que deve ser feito a favor da espécie e com a consciência cada vez mais clara de que, o que for feito a favor da espécie terá de favorecer também a manutenção dos equilíbrios naturais, e, assim, será também a favor da Natureza.

Se o conhecimento científico em si é descomprometido, e, nesse sentido é neutro – não é bom nem mau – já o percurso que leva até ele pode não o ser como não o são também as suas aplicações. Entretanto, o grau de comprometimento da tecnologia ou de um produto tecnológico é muito variável.[5]

Importa notar que os problemas éticos ligados às aplicações da ciência decorrem da circunstância de os seus efeitos serem resultado de uma actividade humana e não de processos naturais. Há, assim, a consciência de que não são inevitáveis mas antes o resultado de opções decididas por alguém ou por determinados grupos de interesses, necessariamente, com consequências mais ou menos profundas, no plano social, nomeadamente, sobre as condições materiais de vida, sobre o meio ambiente, etc.

Em determinados momentos e em determinados contextos, dependendo também da correlação de forças sociais, a investigação de determinados domínios científicos pode gerar efeitos perversos (por exemplo, no domínio da biologia, a sequenciação do genoma humano e sua interpretação).

A solução não passará com certeza pela tentativa de proibir o desenvolvimento de trabalho de investigação nesses domínios mas antes pela criação (certamente demorada mas incontornável) de mecanismos sociais que não permitam a aplicação do conhecimento científico em prejuízo do interesse geral[6]. Tais mecanismos surgirão naturalmente num contexto de democracia participativa com uma opinião pública devidamente formada e informada. Entretanto, há aqui um campo de acção importante para movimentos sociais conscientes da problemática envolvida – partidos políticos, sindicatos, grupos ecologistas, e outros.

    2. As condições da criação científica e do desenvolvimento tecnológico

As condições da criação científica e do desenvolvimento tecnológico evoluíram drasticamente no decurso do século 20 e essa evolução prossegue nos nossos dias.

Olhando para o passado, mais distante, pode afirmar-se que a tecnologia sem base científica precedeu a ciência. Mesmo no século passado, a tecnologia, com impacte no dia-a-dia das populações, avançou em vários domínios sem o suporte da ciência. Em épocas mais distantes, o desenvolvimento tecnológico e a inovação assentavam no conhecimento empírico, e progrediam por processos de tentativa e de erro (as grandes pirâmides; as catedrais medievais; a abóboda do Mosteiro da Batalha que Afonso Domingues conjurou; o aqueduto das águas livres; a máquina a vapor de James Watt; a lâmpada eléctrica de Thomas Edison). A ciência inspirava-se muito mais nas realizações técnicas, práticas, do que estas eram inspiradas por aquela.

Entretanto, o conhecimento empírico, não teorizado, é de difícil conservação e de difícil reconstituição. É um conhecimento frágil por natureza, muito dependente dos homens que o assimilam, organizam e transportam, e, por isso mesmo, não propicia ritmos elevados de desenvolvimento do conhecimento.

A tecnologia sempre foi um auxiliar precioso e um factor de aceleração do progresso científico. Assim foi com a primeira luneta de Galileu que lhe chegou de artífices holandeses em 1609. Todavia, a relação de fertilização ia sobretudo no sentido tecnologia-ciência. No século passado, século e mais claramente desde os anos 50, a ciência aparece como suporte da tecnologia, a relação torna-se biunívoca e essa é uma característica da chamada revolução científica e técnica. A inovação e o desenvolvimento tecnológico impõem-se como principal motivação social do trabalho científico.

Do sábio, encerrado na sua oficina de ciência, passou-se à fábrica de conhecimentos. Do príncipe-mecenas que se queria ilustrar, à grande empresa multinacional, com milhares de investigadores assalariados a trabalhar no aperfeiçoamento e no desenvolvimento de novos produtos e processos para o sucesso quando não a sobrevivência económica da empresa.

As consequências sociais são imensas. Aumenta a especialização a ponto de os trabalhadores científicos por vezes não distinguirem a finalidade última do seu trabalho, de cujo produto são desapossados como acontece na maior parte das profissões produtivas. Os investimentos são colossais, o que torna difícil a quem está de fora, a recuperação de atrasos, e aumenta o risco de exclusão de pessoas e grupos sociais inteiros. A aquisição de novos conhecimentos processa-se a um ritmo crescente, assentando as novas descobertas em conhecimentos e capacidades anteriormente adquiridos. Há um impacte directo e cada vez mais imediato sobre a produção de riqueza, com a particularidade de o tempo de vida dos processos produtivos e dos objectos criados, diminuir constantemente. A modificação rápida dos processos produtivos e o aumento de volume da produção têm efeitos desestabilizadores sobre a sociedade e o meio ambiente[7], tornando cada vez mais imperiosa a necessidade de criar mecanismos e dispositivos sociais que previnam e se oponham àqueles efeitos mais do que os remedeiem. Ao mesmo tempo, a falta de recuo para a correcta avaliação das implicações das novas tecnologias, decorrente da rapidez das transformações dos processos produtivos, constitui uma dificuldade suplementar.

      3. A Ciência, os Cidadãos e o Poder

Tempos houve em que o conhecimento científico era visto com maus olhos pelos poderes estabelecidos que nele viam não um factor de consolidação do poder mas algo susceptível de o pôr em causa.

Durante muito tempo, assimilou-se inocência à ignorância e valorizou-se esta positivamente. Veja-se a condenação bíblica da ciência: Adão e Eva caem em desgraça quando, provado o fruto da Árvore da Ciência, abrem os olhos sobre o mundo e sobre si próprios. Efectivamente viam, mas não reparavam – “se podes olhar vê, se podes ver repara”.

Os detentores do poder sempre temeram que o acesso ao conhecimento por parte dos explorados e excluídos, pudesse pôr em causa esse poder. Entreabrem a porta do Saber permitindo que seja atingido, apenas, o grau de conhecimento indispensável ao bom desempenho das funções que atribuem aos trabalhadores ao seu serviço.

A este propósito, é elucidativo transcrever algumas passagens do livro “A História do Ensino em Portugal” de Rómulo de Carvalho, do capítulo “A política de ensino da Ditadura Nacional[8].

“Merecedora de apreciação é a maneira como passou a ser discutido o caso do analfabetismo nacional logo após o 28 de Maio. A velha questão, mais uma vez equacionada, enquadrar-se-ia agora num ponto de vista eminentemente elitista. Na óptica dos defensores de um Estado autoritário mantido por grupos privilegiados, tornava-se legítimo perguntar antes de se admitir qualquer solução para o problema do analfabetismo, se, realmente, interessaria extingui-lo, ou se não seria preferível manter o povo na ignorância pois dela decorrem a sua docilidade, a sua modéstia, a sua paciência, a sua resignação. Em 1927 a escritora Virgínia de Castro e Almeida, considerando que existiam então em Portugal 75% de analfabetos, dizia, no jornal O Século, que “A parte mais linda, mais forte e mais saudável da alma portuguesa reside nesses 75% de analfabetos“. Em alusão aos rurais que aprenderam as primeiras letras, pergunta a escritora, e responde: “Que vantagens foram buscar à escola? Nenhumas. Nada ganharam. Perderam tudo. Felizes os que esquecem as letras e voltam à enxada[9]João Ameal, escritor e historiador muito cotado na época, deixou escrito: “Portugal não necessita de escolas, (…) Ensinar a ler é corromper o atavismo da raça (…) “” Alfredo Pimenta, investigador da História de Portugal, declarava, pela mesma altura, no jornal A Voz, que “Ensinar o povo português a ler e a escrever para tomar conhecimento das doutrinas corrosivas de panfletários sem escrúpulos (…) é inadmissível.

A alternativa a manter o povo totalmente afastado da escola era ensinar a ler, sim, “mas só (…) deixar ler aquilo que o Estado achasse conveniente, não apenas como crianças na escola, mas depois como adultos, pela vida fora, até à hora da morte[10]. Foi esta via, a da censura omnipresente e da tentativa de controlo dos espíritos que Salazar seguiu.

Afastadas estas posições retrógradas por força do próprio desenvolvimento dos processos produtivos, elas aparecem substituídas por outras que pretendem conciliar a exploração dos trabalhadores com as exigências culturais indispensáveis ao bom desempenho das suas funções. O objectivo é dispor da ciência e dos cientistas, comprovadamente úteis e mesmo indispensáveis ao desenvolvimento do sistema de exploração, ao sabor dos interesses dos centros de poder económico, aplicando-lhes uma canga leve mas eficaz.

      4. Responsabilidade social dos cientistas

Nos nossos dias há certamente sentimentos diversos das pessoas em relação aos cientistas e outros especialistas. Mas parece certo que mesmo em países menos desenvolvidos, existe respeito pela capacidade técnica e científica desses profissionais e consciência da sua importância social. Isto parece indubitável no que respeita a professores, médicos, engenheiros e a muitos outros. Outra coisa é a forma como é visto o comportamento social desses profissionais ou de parte deles, nomeadamente quando se manifestam tendências corporativas que a opinião pública considera ilegítimas.

Por outro lado, também não parece que a opinião pública seja favorável e muito menos coloque como orientação a seguir pelo Estado, a redução dos recursos afectos às actividades de ciência e tecnologia. Seria interessante promover uma sondagem em Portugal para averiguar o que as pessoas pensam sobre a ciência e sobre a necessidade de aumentar os recursos que lhe são dedicados.

No que respeita às actividades de ciência e tecnologia, como em outros domínios, as restrições à afectação de recursos públicos, nomeadamente, financeiros, provêm normalmente do interior dos Governos e não da pressão da opinião pública. Quanto aos grupos que representam interesses privados, a pressão, nos países desenvolvidos, tanto pode ir num sentido como no outro, em função da natureza dos conhecimentos a adquirir pelo trabalho científico, natureza de que dependem as modalidades da respectiva apropriação, pública ou privada. E, mesmo assim, o que está aí em causa não é tanto o montante dos fundos investidos mas os domínios em que são investidos.

Entretanto, os recursos e, em particular, os recursos públicos, afectos às actividades de investigação e desenvolvimento tecnológico, representam, mesmo nos países desenvolvidos, uma fracção muito reduzida da despesa pública total, pelo que há que olhar para esses recursos não como potencial fonte de poupança, que nunca seria significativa ainda que fossem reduzidos a zero, mas antes como um investimento de alta produtividade social.

Por vezes, a opinião pública pode exigir demais aos cientistas. Nomeadamente, pode confundir a competência para dar pareceres técnicos com a legitimidade para tomar decisões político-económicas (veja-se o caso da co-incineração). As decisões políticas são dos políticos, e é a eles que cabe optar entre soluções ou vias alternativas, uma vez devidamente informados. E isto é o mesmo que dizer que as decisões políticas cabem aos cidadãos – de novo, devidamente informados – agindo na sua capacidade de detentores últimos do poder no quadro democrático. De uma democracia que se deseja muito mais participativa do que é presentemente.

No que respeita a decisões políticas e à contribuição para a gestão social, os cientistas são cidadãos como os outros.

Como trabalhadores assalariados, não são responsáveis pela orientação nem têm controlo sobre a utilização dos resultados da ciência. A utilização da ciência é uma questão política e de organização social. A melhor garantia de defesa contra utilizações indevidas e perigosas é a construção de uma democracia participativa protagonizada por cidadãos cultos, informados e socialmente conscientes. E é com essa perspectiva e nesse sentido que os trabalhadores científicos devem intervir na sociedade, ao lado de outros cidadãos.

No geral, o cientista encontra-se em situação não muito diferente da dos seus concidadãos não cientistas, quando se trata de estabelecer grandes orientações do trabalho científico e determinar a aplicação dos resultados da ciência. Os cientistas, em regra, são apenas pontualmente competentes, isto é, competentes num domínio restrito de especialidade mas não em outros domínios nem no conjunto de especialidades que é sempre necessário abarcar quando se avaliam e tomam decisões sobre projectos concretos com impacte económico e social (a construção de uma barragem, ou de um aeroporto ou a instalação de um aterro sanitário). São os cidadãos que devem tomar posição, da melhor forma que souberem e puderem.

Vem a propósito referir uma nota de Bento de Jesus Caraça, a uma passagem da por nós já referida conferência “A cultura integral do indivíduo“, proferida em 1933. A nota intitula-se “o problema do maquinismo[11]. Diz Bento Caraça: “O processo da máquina e da sua acção na vida social contemporânea, tem sido feito, nos últimos anos, muitas vezes, e com diferentes orientações. Há quem a acuse dos maiores males de que actualmente enferma a civilização – o desemprego, a superprodução, o automatismo do homem, e há quem leve a delicadeza da sua sensibilidade ao ponto de se cobrir de suores frios à ideia do que seria um mundo regido péla máquina, estandardizado, frio e sem poesia. O tema é evidentemente daqueles que se prestam à fantasia…

Mas de um estudo sério dele ressaltam dois factos fundamentais:

1º- A existência da máquina na vida de hoje é um facto contra o qual não há que fantasiar nem lamuriar. Ela veio a introduzir-se lentamente, ganhando pouco a pouco novos campos e já agora não é concebível o desenvolvimento normal da vida dos povos sem ela; mais, ela está destinada a tomar nesse desenvolvimento uma parte cada vez maior.

2º- Os males não estão na máquina mas na desigualdade de distribuição dos benefícios que ela produz. O mal não está em que se reduza de 100 a 5 o número de horas necessário para a fabricação de dado produto, mas sim em que o benefício correspondente seja reservado a uma minoria, escravizando a essa má distribuição a maioria. Quer dizer, o problema fundamental é, não um problema de técnica, mas um problema de moral social. E não é aos técnicos que se pode entregar a sua resolução. É a homens.

Não é pois na qualidade de técnicos ou de cientistas mas na qualidade de cidadãos, que podem e devem intervir os homens e mulheres empenhados em resolver o problema de moral social que coloca a utilização do maquinismo.

Os cientistas partilham com os outros cidadãos obrigações sociais mas, entretanto, têm a responsabilidade especial que lhes advém do conhecimento especializado sobre o funcionamento da natureza, conhecimento a que a maioria não tem acesso. Têm o dever de dar conhecimento público das implicações do seu trabalho, nomeadamente, das respectivas aplicações tecnológicas e do seu grau de confiança (por exemplo, as consequências da disseminação de organismos geneticamente modificados ou do funcionamento das centrais nucleares). Isto nem sempre é fácil quando se quer alertar para situações lesivas do interesse geral associadas ou não a fenómenos de corrupção ou de fraude. Há lugar para decisões difíceis face a empregadores, incluindo o próprio Estado mas há que procurar não ser um mero instrumento acrítico desses empregadores.

Por outro lado, nem sempre as responsabilidades correntes dos cientistas e técnicos lhes permitem aceder à informação necessária para poder prever e pronunciar-se sobre as consequências do seu trabalho, sociais e outras. Por isso, importa colocar como reivindicação de carácter sindical a integração formal, em termos contratuais ou estatutários (estatuto do trabalhador científico), do direito às condições (designadamente de tempo) e aos meios necessários (designadamente, de acesso a documentação) para poder levar a efeito o estudo das consequências do trabalho em que se está envolvido. Assim se poderá mais facilmente ir além de afirmações de ordem geral bem-intencionadas mas insuficientemente fundamentadas para poderem servir de suporte eficaz a uma acção cívica.

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Eis um conjunto de reflexões que se apresentam como contribuição para um debate que é hoje urgente e que é difícil, pela complexidade e abrangência das questões que nele se colocam. Talvez mesmo vários debates, dirigidos a questões específicas abordadas na presente exposição, distintas embora interligadas, todas convergindo na mesma questão geral: “cultura científica e responsabilidade social dos trabalhadores científicos”.

No texto não é adoptado o Acordo Ortográfico de 1990

 N.B. Este artigo foi publicado na Revista “Vértice”, nº188, Julho-Setembro 2018, pp.115-127

[1] “1994-Início do percurso da tuneladora nominada “Maria Lisboa”, supertoupeira que perfura e consolida em simultâneo as terras deixando construídas as paredes e removendo, também, as terras. Foi considerada a grande estrela das obras do empreendimento da Baixa.” (https://www.metrolisboa.pt/institucional/1994/02/21/1994/)

[2] A propósito: a indústria, indústria pesada e indústria ligeira, que constrói as Marias Lisboa, os Boeing 747 e os foguetões Ariane — e os computadores e os telemóveis e os satélites de telecomunicações— é hoje e continuará a ser no futuro, necessariamente, um dos pilares da economia mundial. Na sociedade moderna, não haverá tecnologias da informação, não haverá abastecimento energético, não haverá investigação científica, sem suporte industrial.

[3] António Gedeão “Impressão digital” in Movimento Perpétuo (1956)

[4] Designadamente, o mundo físico, cujos limites não são por todos entendidos da mesma maneira

[5] Pense-se, por exemplo, no motor eléctrico e na bomba atómica

[6] A defesa do interesse geral não exclui, antes pressupõe, o acautelamento de interesses de diferentes minorias

[7]Basta lembrar, no plano social, os problemas da obsolescência da mão-de-obra e a exclusão social; no plano do meio ambiente, a quebra de equilíbrios naturais associados ao efeito de estufa, ao buraco do ozono ou aos efeitos da disseminação de OGM’s

[8] Rómulo de Carvalho, “História do Ensino em Portugal, desde a fundação da nacionalidade ao fim do regime de Salazar-Caetano”, Ed. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1986

[9] Citado da obra de Filomena Mónica, Educação e Sociedade no Portugal de Salazar, Lisboa, 1978

[10] Rómulo de Carvalho, op.cit.

[11] A nota surge na publicação, em 1939, do texto de “A cultura integral do indivíduo”, em segunda edição, em cadernos da “Seara Nova”