Frederico Carvalho
Um contributo para o Grupo de Trabalho 1
“Paz, Desenvolvimento e Cooperação”
89ª Reunião do Conselho Executivo da Federação Mundial dos Trabalhadores Científicos
Paris, 29-30 Abril 2019
Introdução
O uso de agentes biológicos como meio para enfraquecer ou destruir um inimigo num conflito é provavelmente tão antigo quanto a humanidade. Existem diversos exemplos da sua utilização ao longo da história.
Desde as formas mais primitivas, como a utilização dos corpos de soldados ou animais mortos para contaminar poços e fontes, ou catapultando cadáveres para o interior de cidades citiadas,[1] numa demonstração de que os chefes militares da Idade Média reconheciam que as vítimas de doenças infecciosas podiam elas próprias transformar-se em armas. Às formas mais “sofisticadas”, como a distribuição de mantas infectadas com varíola na América do Norte para dizimar as tribos índias hostis aos britânicos (1763).
Entre o final da Grande Guerra e o início da Segunda Guerra Mundial, diversas nações “desenvolvidas” iniciaram programas de investigação para o desenvolvimento de armas biológicas; o programa japonês merece uma referência especial pela vastidão dos meios envolvidos, que incluíram a criação de um centro de investigação, conhecido como Unidade 731, com mais de 3000 cientistas, sobretudo microbiólogos. Foram realizadas experiências em prisioneiros de guerra, sobretudo soldados coreanos, chineses e russos, que foram usados para testar diversas armas biológicas. Existem indicações de que vários milhares de prisioneiros terão morrido em resultado das experiências levadas a cabo sobre eles.
Em 1942, o exército britânico testou bombas sujas com carbúnculo (ou antraz) na Ilha de Gruinard, na costa da Escócia. A ilha ficou contaminada e inabitável até 1990, quando foram realizados extensos trabalhos de descontaminação.[2]
Na segunda metade do século XX, e especialmente no seu último quartel, tanto a URSS como os EUA investiram em ambiciosos programas de investigação destinados a desenvolver e produzir armas biológicas.
Num certo sentido, as armas biológicas apresentam “vantagens” consideráveis sobre outros tipos de armamento, naturalmente do ponto de vista das partes em conflito. Uma é o seu muito baixo custo em comparação com outras armas convencionais ou não-convencionais: as armas biológicas são mais baratas quando o objectivo é eliminar vidas humanas numa determinada área de aplicação, por exemplo, num quilómetro quadrado de terreno habitado por civis. Em 1969, peritos dos EUA revelaram as seguintes estimativas do custo por quilómetro quadrado de um ataque contra populações civis usando diferentes tipos de armamento: 1 US$ com armas biológicas, 600 US$ com armas químicas, 800 US$ com armamento nuclear e 2,000 US$ com armamento convencional.[3] Estes números devem ser interpretados como referindo-se a perdas comparáveis de vidas mas não à destruição de bens materiais, edifícios e infraestruturas.
Quando se fala de armas biológicas, o antraz, uma doença provocada por um agente bacteriano que forma esporos e que foi desenvolvido na segunda metade do último século, merece uma referência especial. O antraz foi desenvolvido no âmbito de um programa mais vasto de armas biológicas levado a cabo em diversos países, incluindo os Estados Unidos e a União Soviética. Como referiu Md Radzi Johari,[4] nos seis anos entre 1989 e 1995, o número de nações que se acredita possuírem armas biológicas aumentou de 10 para 17.
O Dr. Stefan Riedel assinalou que “o número e identidade dos países que se envolveram em investigação sobre armas biológicas ofensivas é ainda, em grande medida, uma matéria classificada. Contudo, pode-se afirmar com segurança que o número de programas deste tipo patrocinados por estados aumentou significativamente nos últimos 30 anos”.[5]
O antraz pode ser facilmente produzido por actores não-estatais como aconteceu com a seita religiosa japonesa Aum Shinrikyo, que ficou conhecida por libertar gás sarin numa estação do metro de Tóquio.
Os peritos reconhecem, de um modo geral, que os agentes biológicos existentes ou em desenvolvimento podem ser usados indevidamente em programas ofensivos dirigidos contra populações civis mas também contra as culturas de alimentos básicos ou os animais domésticos de que dependem para a sua subsistência.
A Convenção sobre as Armas Biológicas
A Convenção sobre a Proibição do Desenvolvimento, da Produção e do Armazenamento de Armas Bacteriológicas (Biológicas) ou Tóxicas e sobre a sua Destruição (geralmente referida como a Convenção sobre as Armas Biológicas) foi o primeiro tratado de desarmamento multilateral a banir toda uma categoria de armas.[6]
Cinquenta anos antes, as armas biológicas foram banidas a nível internacional pela Convenção de Genebra de 1925. A Convenção tinha um alcance limitado e, na verdade, os estados prosseguiram e até expandiram os programas de desenvolvimento de armas biológicas durante a Segunda Guerra Mundial e a Guerra Fria. Em 1972, as principais potências puseram-se de acordo sobre o projecto de uma nova Convenção apresentado pelo Reino Unido. O novo texto foi aprovado e apresentado para assinatura a 10 de Abril desse ano. Entrou em vigor a 26 de Março de 1975, após a sua ratificação por 22 estados. Até Setembro de 2018, 182 estados tinham-se tornado partes da Convenção. Entre o pequeno número de estados desenvolvidos não-signatários destaca-se Israel.
O Artigo I da CAB tem a seguinte redacção:
“Cada Estado Parte na presente Convenção compromete-se a nunca, e em nenhuma circunstância, desenvolver, produzir, armazenar, nem por qualquer forma adquirir ou conservar:
- Agentes microbiológicos ou outros agentes biológicos, bem como toxinas, seja qual for a sua origem ou modo de produção, de tipos e em quantidades que não sejam destinados a fins profilácticos, de protecção ou outros de carácter pacífico.”
(…)
A Convenção proíbe, portanto, qualquer utilização indevida da biotecnologia em programas biológicos de carácter ofensivo dirigidos contra seres humanos, as suas culturas ou animais domésticos. Contudo, não estabelece limites à sua utilização em “programas biológicos de carácter defensivo”, o que deixa uma ampla margem para a interpretação do texto. Por outras palavras: o tratado proíbe a criação de arsenais biológicos e a investigação biológica de carácter ofensivo, mas a investigação defensiva é permitida.
O desenvolvimento das técnicas de manipulação genética e as suas implicações
Foi recentemente revelado que a DARPA, a Agência de Projectos de Investigação Avançada de Defesa, uma agência do Departamento de Defesa dos Estado Unidos,[7] iniciou há alguns anos um programa de investigação designado “Insectos Aliados (Insect Allies)”[8]. O programa, financiado pela DARPA, está em curso e destina-se a “desenvolver contra-medidas escaláveis, que possam ser prontamente mobilizadas e generalizadas, de resposta a ameaças potenciais, naturais e artificialmente desenvolvidas, aos recursos alimentares, com o objectivo de proteger o sistema de culturas dos EUA ”[9].
Estão envolvidas neste programa diversas instituições académicas que trabalham sob contrato para a DARPA.
Um aspecto-chave deste programa é o facto de ele se basear numa tecnologia emergente denominada “edição de genes” (gene editing) e naquilo que parece ser uma ferramenta de edição muito eficaz conhecida como CRISPR-Cas9. CRISPR-Cas9 é uma tecnologia que permite aos geneticistas e investigadores médicos editarem partes do genoma através da remoção, inclusão ou alteração de segmentos da sequência de DNA presente num gene. É uma tecnologia que permite reescrever aquilo a que podemos chamar uma frase no livro da vida genético. Trata-se de uma nova ferramenta considerada mais rápida, barata e precisa do que as anteriores técnicas de manipulação de DNA.[10]
Qualquer pessoa com um mínimo de conhecimentos científicos sabe que todos os organismos vivos contêm moléculas de DNA[11] que transportam informação genética. Os genes são os segmentos de DNA que contêm essa informação e que influenciam as propriedades de um organismo. São os genes que determinam o aspecto geral externo de um ser individual e, até certo ponto, o seu comportamento. Se dois organismos estiverem intimamente relacionados, o seu DNA será muito semelhante.
A alteração da informação genética de um organismo vivo tem consequências que não são necessariamente benéficas para esse organismo. Pode-se afirmar, sem grande margem de erro, que qualquer antiga ou nova tecnologia desenvolvida pelos seres humanos deve ser vista como uma espada de dois gumes. À medida que a ciência avança, a um ritmo cada vez mais veloz, cria as bases para o desenvolvimento de novas tecnologias que são mais poderosas e mais eficazes no modo como interferem com o mundo natural, de que a humanidade faz parte.
A edição de genes é uma dessas tecnologias emergentes.
O sistema CRISPR-Cas9 é uma estrutura atómica organizada em torno de duas moléculas fundamentais: uma é uma enzima (Cas9) que actua como uma tesoura molecular capaz de cortar as duas cadeias da hélice de DNA num local específico do genoma, permitindo a inclusão ou remoção de segmentos de DNA; a outra é uma molécula designada RNA-guia. Ao contrário do DNA, que é um polímero com duas cadeias, o RNA é uma molécula com uma única cadeia. O RNA-guia no sistema CRISPR contém no interior da estrutura molecular mais longa de RNA uma sequência pré-definida de bases de RNA que corresponde à sequência específica de bases no DNA-alvo do genoma. O RNA-guia apenas se liga à sequência-alvo e a mais nenhuma região do genoma.
A enzima Cas9 segue o RNA-guia até à mesma localização na sequência de DNA e corta ambas as cadeias desta molécula. Nessa altura, a célula reconhece que o DNA está danificado e tenta repará-lo.
Com efeito, as células desenvolveram um conjunto de mecanismos para detectarem e repararem os diferentes tipos de danos que podem ocorrer no DNA. Os mecanismos de reparação do DNA podem resultar na inclusão ou eliminação de segmentos de material genético, ou em alterações ao DNA mediante a substituição de um segmento existente por uma sequência pré-definida de DNA.
A chave do processo está no modo como a reparação é controlada. Uma vez cortado o gene-alvo, é necessário fornecer uma versão editada que possa ser usada pela célula como molde quando reparar o dano.
O programa de investigação “Insectos Aliados” destina-se explicitamente à edição genética de culturas de alimentos, recorrendo a um sistema CRISPR que foi adaptado para ser parte integrante de um vírus. Os alvos serão genes específicos de plantas, cujos cromossomas serão modificados.[12] Ao que parece, o milho será uma das principais culturas-alvo.[13]
Sabe-se que as plantas são capazes de receber informação genética de vírus através da chamada “transferência horizontal de genes”. Estas transferências envolvem DNA adquirido de organismos não-relacionados, enquanto que nas transferências verticais de genes, o DNA é herdado de um organismo parental. O programa de investigação financiado pela DARPA tem como objectivo dispersar vírus infecciosos geneticamente modificados que foram alterados para editarem os cromossomas das culturas directamente nos campos.[14]
O agente de dispersão que está a ser considerado são insectos[15]— os aliados. Blake Bextine, o gestor do programa da DARPA para os Insectos Aliados, sublinha que “Os insectos comem plantas e são os insectos que transmitem a maioria dos vírus que afectam as plantas. (…) A DARPA tenciona aproveitar as potencialidades deste sistema natural, manipulando genes dentro de vírus que afectam plantas e que podem ser transmitidos por insectos para conferirem características protectoras às plantas-alvo de que estes se alimentam.”[16]
No anúncio feito pela DARPA do seu novo programa, colocado no sítio web da agência em Outubro de 2016, pode-se ler o seguinte:
“Um dos métodos existentes mais eficazes para proteger plantas — a criação selectiva de resistência às doenças — implica, em geral, cinco a sete anos de trabalho para identificar os genes protectores relevantes e outros 10 anos ou mais para propagar as características desejadas nas populações da planta. O programa Insectos Aliados tem como objectivo obter a expressão das características desejadas numa única campanha. O desafio que se coloca aos participantes no programa é o desenvolvimento de sistemas compatíveis de vírus de plantas que ocorrem naturalmente, insectos herbívoros e culturas-alvo, e depois ajustar geneticamente esses sistemas para maximizar a transmissão e adopção das características desejadas na totalidade da população-alvo, com transmissão-zero a plantas não visadas.”
Uma citação do gestor do programa, nesse mesmo anúncio, diz o seguinte: “Historicamente, a modificação genética de plantas fez-se apenas em sementes nos laboratórios, usando culturas de tecidos. (…) A transformação maciça de plantas adultas seria uma realização extraordinária e abriria as portas a futuras inovações na agricultura.” [17]
Diversos autores têm manifestado a opinião de que a tecnologia envolvida no programa constitui um caso evidente de uma tecnologia de “dupla utilização”. Como tal, é imperioso que seja objecto de uma avaliação cuidadosa pela comunidade científica global e pelos cidadãos em geral, naturalmente interessados no seu desenvolvimento e futuras aplicações.
A apresentação pela DARPA dos objectivos do programa enfatiza os benefícios do mesmo para as práticas agrícolas comuns. As preocupações com a segurança nacional estão claramente expressas no comunicado de imprensa oficial da agência: “A segurança nacional pode ser posta em causa rapidamente por ameaças naturais ao sistema de culturas, incluindo através de agentes patogénicos, secas, inundações e gelo, mas especialmente por ameaças introduzidas por actores estatais ou não-estatais.” A referência a “ameaças introduzidas por actores estatais ou não-estatais” indica que as agressões por agentes estrangeiros também foram tidas em conta. A nova tecnologia seria, assim, usada para fins defensivos.
Porém, tais declarações não devem ser tomadas à letra. Especialmente quando se tem em conta a natureza muito particular da DARPA. Citando Annie Jacobsen: “Tudo ali tem uma dupla utilização (…) não devemos esquecer que o objectivo da DARPA não é ajudar as pessoas. É criar os grandes sistemas de armas do futuro.” [18]
É um facto que a grande maioria das medidas de emergência de primeira linha para controlar as pragas de insectos, tanto na agricultura como do ponto de vista da saúde pública, continuam a basear-se em pulverizações, mesmo para pragas em relação às quais já foram desenvolvidas medidas de controlo baseadas na libertação de insectos vivos (por ex. machos estéreis).[19]
No caso de um ataque por “actores estatais ou não-estatais”, uma resposta eficaz dependeria da viabilidade de aumentar rapidamente a produção em massa de insectos, algo que pertence ao domínio da ficção.
Em contrapartida, a produção em massa de insectos-vectores pode ser planeada antecipadamente, no caso de ser decidida uma acção ofensiva. Seja como for, os peritos fazem notar que “é muito mais fácil matar ou esterilizar uma planta usando edição de genes do que torná-la resistentes aos herbicidas ou aos insectos”.[20]
Também não existe uma resposta clara sobre como se garantem os limites da área afectada pela dispersão dos insectos transportando o vírus, impedindo assim a contaminação dos campos vizinhos. Esta questão é relevante num contexto de utilização na agricultura, mas perde a sua relevância se a dispersão dos insectos tiver intenções ofensivas.
Dadas as circunstâncias, e como observou R. G. Reeves, “o programa pode ser entendido como um esforço para desenvolver agentes biológicos com finalidades hostis e os seus meios de lançamento. A ser verdade, tal constituiria uma violação da Convenção sobre as Armas Biológicas (CAB).”[21]
Frederico Gama Carvalho
2019, Fev. 2019
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[1] “Bioweapons and Bioterrorism: A Review of History and Biological Agents”, Orlando Cenciarelli, Silvia Rea, Mariachiara Carestia, Fabrizio D’Amico, Andrea Malizia, Carlo Bellecci, Pasquale Gaudio, Antonio Gucciardino, Roberto Fiorito, Defence S&T Tech. Bull., 6(2): 111-129, 2013
[2] Ibid.
[3] Ibid.
[4] “Anthrax – Biological Threat in the 21st Century”, Md Radzi Johari, Malays J Med Sci. 2002 Jan; 9(1): 1–2
[5] “Biological warfare and bioterrorism: a historical review”, Stefan Riedel, Proc (Bayl Univ Med Cent). 2004 Oct; 17(4): 400–406
[6] Ver “Convenção sobre as Armas Biológicas”, http://www.ministeriopublico.pt/instrumento/convencao-sobre-proibicao-do-desenvolvimento-da-producao-e-do-armazenamento-das-armas-0
[7] A Agência de Projectos de Investigação Avançada de Defesa (Defense Advanced Research Projects Agency, DARPA) é uma agência do Departamento de Defesa dos Estados Unidos responsável pelo desenvolvimento de tecnologias emergentes para utilização pelos militares. Originalmente designada Agência de Projectos de Investigação Avançada (Advanced Research Projects Agency, ARPA), a agência foi criada em Fevereiro de 1958 pelo Presidente Dwight D. Eisenhower em resposta ao lançamento pela União Soviética do Sputnik 1 em 1957. Através da sua colaboração com académicos, industriais e parceiros na Administração Pública, a DARPA concebe e executa projectos de investigação e desenvolvimento para expandir as fronteiras da tecnologia e ciência, frequentemente indo além das necessidades militares imediatas dos EUA (https://en.wikipedia.org/wiki/DARPA).
[8] https://www.darpa.mil/program/insect-allies/2018-11-09
[9] https://www.darpa.mil/program/insect-allies
[10] https://www.yourgenome.org/facts/what-is-crispr-cas9
[11] Com a possível excepção dos vírus que contêm RNA (https://en.wikipedia.org/wiki/RNA_virus ). Contudo, os vírus não são geralmente considerados verdadeiros organismos vivos.
[12] “Agricultural research, or a new bioweapon system?”, R. G. Reeves , S. Voeneky , D. Caetano-Anollés , F. Beck , C. Boëte, Science 5 de Outubro de 2018, Vol. 362, Nº 6410, pp. 35-37
[13] Milho, trigo e arroz são os principais alimentos de base em muitas partes do mundo.
[14] Ibid.
[15] As cigarras, moscas-brancas ou afídeos são exemplos que se pensa estarem incluídos.
[16] https://www.darpa.mil/news-events/2016-10-19
[17] Ver nota 12.
[18] Annie Jacobsen é uma jornalista de investigação americana, autora e finalista do Prémio Pulitzer de 2016 em história. Publicou o livro “The Pentagon’s Brain: An Uncensored History of DARPA, America’s Top-Secret Military Research Agency”, editafo em 22 de Setembro de 2015 por Little, Brown and Company
[19] Ver nota 12.
[20] Ibid.
[21] Ibid.