CONTRADIÇÕES DO DESENVOLVIMENTO DA CIÊNCIA E DA TÉCNICA
Frederico Carvalho
O conhecimento dos fenómenos e processos naturais seja ele de raiz empírica ou fruto da aplicação do método científico — observação, experiência, construção teórica, previsão — conduziu ao longo dos séculos a profundas transformações económicas e sociais, mudou de forma mais ou menos marcada as condições de vida e de sobrevivência dos habitantes do planeta. O trabalho humano, os processos produtivos, a exploração e aproveitamento dos recursos naturais, experimentaram profundas alterações de qualidade e quantidade. A criação de riqueza, fruto do trabalho humano, cresceu a ritmos nunca antes alcançados, a partir sobretudo de meados do século XVIII com a chamada “revolução industrial”. Entretanto, no decurso da longa caminhada do homem sobre a Terra, nem tudo o que o conhecimento da natureza nos trás e nos trouxe é ou foi positivo. Longe disso.
Importa à partida distinguir no trabalho científico a investigação que procura o conhecimento dos mecanismos naturais sem outro objectivo que não a satisfação da curiosidade intelectual própria da nossa espécie, daquele que visa estabelecer, ou contribuir para estabelecer, as bases de uma aplicação concreta com impacto nas nossas vidas. A separação entre estas duas qualidades não é absoluta pois pode acontecer que os resultados da primeira, dita investigação fundamental, por vezes referida em inglês como “basic”, “curiosity driven” ou, ainda, “blue sky research”, venham, tarde ou cedo, a dar lugar, noutras mãos, ao desenvolvimento de novas e insuspeitas aplicações ou ao melhoramento de processos técnicos ou produtos já existentes. Tem interesse anotar que alguns decisores políticos e outros em posição de decidir orientações de política científica, se aperceberam das vantagens de dar livre curso ao processo criativo da investigação desinteressada ainda que seja incerto o partido que possa vir a ser tirado dos seus resultados no quadro das estruturas de poder dominantes e por estas. Fazem-no não por altruísmo mas porque entendem que tal poderá servir os seus interesses próprios. No entanto, porventura na maior parte dos casos, a tendência que hoje em dia prevalece é a da desvalorização da investigação fundamental face à investigação aplicada, da qual se esperam resultados com impacto económico e social que acrescentem valor no curto prazo a sectores da actividade económica e dos serviços. É uma política de navegação à vista, pouco inteligente, que servindo os interesses do grande capital multinacional não favorece a busca de soluções para os sérios problemas globais que condicionam o futuro do planeta e dos seus habitantes. Soluções que é certo exigirem um fortíssimo investimento em ciência fundamental, livre ou orientada, não condicionada pela necessidade da obtenção de resultados a curto prazo.
A investigação fundamental tem lugar sobretudo em universidades e outras instituições académicas [1] e também em centros ou agências de investigação não académicos, nacionais e internacionais, como o Centro Europeu de Investigação Nuclear (CERN), a Sociedade Max Planck, na Alemanha, ou ainda os National Institutes of Health, dos Estados Unidos da América, a maior instituição mundial de investigação biomédica. Entretanto é cada vez mais frequente o estabelecimento de parcerias ou a contratação de instituições ou grupos vocacionados para a investigação fundamental por entidades empresariais dos sectores civil e militar bem como por organismos públicos, designadamente, organismos ligados aos sectores da defesa e segurança interna. Assim esses organismos ou empresas passam por essa via a ter acesso a resultados de trabalho de investigação fundamental e ao seu aproveitamento e exploração para os seus fins próprios.
Um caso exemplar é o da agência norte-americana que dá pela sigla DARPA ou Defense Advanced Research Projects Agency. A DARPA que depende directamente do Departamento da Defesa (DoD-Department of Defense) — equivalente na administração norte-americana ao Ministério da Defesa — tem por missão acompanhar os progressos da investigação em domínios científicos de ponta convenientemente seleccionados, onde entende poderem surgir resultados susceptíveis de conduzir num futuro mais ou menos próximo, a aplicações tecnológicas “disruptivas” com interesse para a “defesa nacional”. A DARPA não faz investigação: estimula e financia investigação executada por outros, nomeadamente, em universidades e centros de investigação fundamental, mas também no sector empresarial privado. Não apenas as ciências ditas “exactas” mas também as ciências sociais são objecto de atenção da DARPA que se interessa por domínios tão diversos como o das ciências cognitivas; inteligência artificial; nano-robótica; computação ou engenharia genética. O seu orçamento anual aproxima-se dos 3 mil milhões de dólares o que é cerca de 2 vezes o montante de toda a despesa pública nacional com investigação científica e desenvolvimento experimental (I&DE).
IMPLANTES CEREBRAIS
Uma tecnologia avaliada como “disruptiva” — revolucionária, se se preferir — que tem interessado a DARPA explora a possibilidade de comandar comportamentos e inclusivamente alterar a personalidade de um ser humano através da implantação no cérebro de minúsculos circuitos electrónicos conhecidos por “chips”.
Se, por um lado, há a expectativa de que esta tecnologia permita à pessoa — e alguns resultados apontam nesse sentido — recuperar capacidades físicas ou mentais perdidas ou que não possuía à nascença (movimentar um membro paralisado ou um braço robótico, por exemplo; recuperar a visão ou a audição; tratar perda de memória ou outros sintomas cognitivos associados à doença de Alzheimer), por outro, pode abrir a porta a aplicações que levantam questões muito sensíveis do foro ético, como sejam a possibilidade de conferir ao ser humano “modificado” aptidões que o ser humano normal não possui, designadamente, novas capacidades sensoriais e cognitivas criando assim uma espécie de super-homem.
Alguns especialistas destacam entre essas novas aptidões o alargamento da percepção de imagens na gama do infravermelho e da radiação ultravioleta. Mas também a capacidade de memória e a capacidade de comunicarão invisível com outros através do que seria uma efectiva “transmissão de pensamento”. Não surpreende que aplicações militares de uma tecnologia desta natureza estejam naturalmente na primeira linha dos interesses dos seus promotores e financiadores. No que respeita aos Estados Unidos há notícia de que os investimentos que estão em causa são da ordem dos milhões de dólares e por detrás desse investimento sabe-se, sem surpresa, estar a DARPA, “braço armado” da investigação e desenvolvimento militares ao serviço do complexo militar-industrial norte-americano.
Transmissão digital de pensamento?
Há já alguns anos, Ellen McGee e G. Maguire, Jr, apresentaram no 20º Congresso Mundial de Filosofia, em Boston, Mass., uma comunicação intitulada “Avaliação Ética dos Implantes Electrónicos Cerebrais” [2]. No entender dos autores, cito, “(a) implicação mais assustadora desta tecnologia é a séria possibilidade de vir a facilitar um controlo totalitário dos seres humanos”. E colocam a questão de saber que consequências pode ter o eventual transplante do microcircuito electrónico de um cérebro para outro. Admitindo que o “chip” tenha recolhido a totalidade da experiência sensorial da primeira pessoa pergunta-se se, nessa eventualidade, será transferida com o “chip” a identidade pessoal no plano psicológico da pessoa? Poderá o receptor adquirir a identidade do outro?
A revista “National Geographics” publicou um extenso artigo que foca esta problemática. “Para lá do Humano”, é o título [3]. O autor D.T.Max faz notar que, “como outras espécies, somos o produto de milhões de anos de evolução. Agora estamos a tomá-la nas nossas próprias mãos”. No mesmo artigo o autor faz notar que não passou despercebido à DARPA, atrás referida, que “a ligação do cérebro humano a uma máquina faria surgir um combatente sem paralelo” no campo de batalha. E citando Annie Jacobsen que é uma jornalista americana de investigação internacionalmente muito considerada: “Tudo nesta área tem uma aplicação dual (…) Há que lembrar que o propósito da DARPA não é ajudar as pessoas. É criar ‘vastos sistemas de armamento para o futuro’ ”. Annie Jacobsen é autora de um livro de sucesso a que deu o título: “The Pentagon’s Brain: An Uncensored History of DARPA, America’s Top-Secret Military Research Agency”, em português: “O cérebro do Pentágono. Uma história não censurada da Agência americana ultra-secreta de investigação militar”.
ENGENHARIA GENÉTICA
Noutro domínio, o da biologia sintética, avança a passos largos uma tecnologia também ”disruptiva”, a da edição genética. Também aqui se perfilam no horizonte aplicações com interesse militar, nomeadamente, no desenvolvimento de armas biológicas. E igualmente questões éticas muito sérias já que se levanta a possibilidade de manipulações perigosas de material genético. Em particular, uma ferramenta molecular muito eficaz denominada CRISPR/Cas9, que permite alterar o genoma de seres vivos, no fundo, o Código da Vida.
Muitos estarão certamente recordados do recente anúncio do nascimento de um par de gémeos do sexo feminino cujo genoma teria sido alterado artificialmente por um cientista chinês com o propósito, segundo ele, de protecção efectiva contra o Vírus da Imunodeficiência Humana (VIH), em inglês HIV. O anúncio provocou fortes reacções da comunidade científica especializada e também das autoridades chinesas. A experiência levantou naturalmente particular celeuma por ter sido praticada sobre seres humanos numa fase em que o conhecimento científico de todas as consequências da manipulação genética praticada não assenta ainda em bases seguras [4]. Já no mundo vegetal, em aplicações que visam plantas, a ferramenta CRISPR/Cas9 tem sido usada sem grandes restrições. Um caso particularmente interessante do ponto de vista do propósito deste artigo é o do projecto de investigação financiado pela nossa já conhecida DARPA que recebeu o nome de “Insectos Aliados”.[5]
O programa de investigação “Insectos Aliados” destina-se explicitamente à edição genética de culturas alimentares, recorrendo a um sistema CRISPR que foi adaptado para ser parte integrante de um vírus. Os alvos serão genes específicos de plantas, cujos cromossomas serão modificados. Ao que parece, as culturas-alvo em consideração são culturas alimentares como o milho, o trigo e o arroz, alimentos de base em muitas partes do mundo.
Sabe-se que as plantas são capazes de receber informação genética de vírus através da chamada “transferência horizontal de genes”. Estas transferências envolvem DNA adquirido de organismos não-relacionados, enquanto nas transferências verticais de genes, o DNA é herdado de um organismo parental. O programa de investigação financiado pela DARPA tem como objectivo dispersar vírus infecciosos geneticamente modificados que foram alterados para editar os cromossomas das culturas directamente no campo.
Os agentes de dispersão que estão a ser considerado são insectos herbívoros, daí a designação de “insectos-aliados”. Blake Bextine, o gestor do programa da DARPA para os “Insectos Aliados”, sublinha que “Os insectos comem plantas e são os insectos que transmitem a maioria dos vírus que afectam as plantas. (…) A DARPA tenciona aproveitar as potencialidades deste sistema natural, manipulando genes dentro de vírus que afectam plantas e que podem ser transmitidos por insectos para conferirem características protectoras às plantas-alvo de que estes se alimentam.”[6] (sublinhado nosso).
Entretanto, os peritos fazem notar que “é muito mais fácil matar ou esterilizar uma planta usando edição de genes do que torná-la resistentes aos herbicidas ou aos insectos”. De resto, a necessária produção em massa de insectos-vectores que esta tecnologia exigiria requer planeamento antecipado o que aponta mais para a sua adopção em acções ofensivas do que de resposta defensiva a um qualquer ataque de um suposto inimigo. Mais uma vez nos deparamos aqui com um desenvolvimento tecnológico, de base científica, susceptível de aplicações seriamente nocivas, ou mesmo criminosas, nomeadamente na esfera militar [7].
INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL, ROBÓTICA E ARMAS AUTÓNOMAS
A Inteligência Artificial, área científica pluridisciplinar por excelência, em acelerado desenvolvimento, vem merecendo particular atenção dos sectores empresariais civil e militar. Os avanços do conhecimento científico nesta área e as suas actuais e prospectivas aplicações têm profundas implicações sociais — políticas, económicas e culturais.
Uma das aplicações, porventura a mais conhecida do público em geral, que incorpora conhecimento científico e avanços tecnológicos nos domínios da Inteligência Artificial e da Robótica, é a das aeronaves não tripuladas correntemente chamadas “drones”. Importa dizer que estes engenhos estão progressivamente a ser utilizados para fins úteis que interessam à sociedade, por exemplo, na distribuição de correio ou na entrega de encomendas a domicílio, na regulação do trânsito automóvel ou ainda como veículos de prestação de serviços de saúde urgentes. No entanto na grande maioria dos casos estas aeronaves são usadas pelos militares em teatro de guerra, e também, em menor escala, por forças de segurança em missões de controlo policial, em certos casos ao serviço de interesses que podem entrar em conflito com valores sociais fundamentais.
Aqui, uma vez mais, para nossa própria salvaguarda, é necessário e urgente distinguir as boas das más utilizações do progresso científico e tecnológico.
Há cerca de quatro anos, um grupo de investigadores e outros trabalhadores científicos da área da Inteligência Artificial, a que se juntaram humanistas e intelectuais de renome em várias áreas do conhecimento, deu a público uma “Carta Aberta” com o título “Armas Autónomas: Carta Aberta de Investigadores em Inteligência Artificial e Robótica”. A Carta, que apresentava na altura mais de um milhar de assinaturas, foi lida em Buenos Aires por ocasião da reunião nessa cidade da 24ª Conferência Internacional Conjunta sobre Inteligência Artificial [8]. Desde então a “Carta Aberta” de Buenos Aires mantem-se aberta a novos subscritores de forma que, de acordo com a informação mais recente, recolheu já, até hoje, mais de 31 000 assinaturas. Trinta e quatro subscritores são portugueses. Entre os primeiros subscritores contam-se nomes ilustres como o do físico teórico e cosmólogo britânico Stephen Hawkings, falecido em 2018, e o do linguista norte-americano Noam Chomsky. A Carta foi lançada por iniciativa do “Future of Life Institute” que é uma Organização Não-Governamental, com sede nos EUA [9]. No cimo da página internet em que publica a Carta [10], pode ler-se: “Muitos dos benefícios da civilização nascem da inteligência. Como poderemos então valorizar esses benefícios através da inteligência artificial sem que percamos os nossos empregos ou sejamos tornados inúteis?”. Esta forte chamada de atenção vai ao encontro de preocupações já hoje presentes na sociedade e repetidamente manifestadas: os impactos sociais das aplicações da Inteligência Artificial, designadamente na esfera do trabalho e das relações capital-trabalho serão necessariamente muito significativos e não necessariamente favoráveis à estabilidade das condições de vida e emprego dos trabalhadores.
Há cerca de dois anos, o professor e investigador Luís Moniz Pereira [11], colocou publicamente a questão desta maneira: “As grandes mudanças sociais desencadeadas pela nova automação, nomeadamente o software com capacidades cognitivas (ditas de Inteligência Artificial – IA), e também a sua articulação com sensores e manipuladores físicos (Robótica), requerem uma reflexão profunda sobre a relação capital/trabalho, e o desenho de novos modelos de contrato social que endereçam os enormes riscos de instabilidade social e descontentamento inerentes a tais mudanças. ”[12]
Entretanto os impactos já hoje mais preocupantes dos avanços do conhecimento científico nestes domínios e da sua tradução no plano das tecnologias têm a ver com o desenvolvimento de novas armas e a concepção de novas formas de fazer a guerra. É a esse aspecto que a Carta Aberta se dirige em primeira linha. Os sistemas de armas autónomas letais, designadas em inglês pela sigla LAWS ou Lethal Autonomous Weapons Systems, são assim caracterizados no “manifesto” de Buenos Aires:
“As armas autónomas identificam e atacam alvos sem intervenção humana. Aí se incluem, por exemplo, quadricópteros armados, capazes de procurar e abater pessoas que preencham determinados requisitos pré-definidos (…). As tecnologias de Inteligência Artificial atingiram um ponto em que o emprego de tais dispositivos autónomos é possível na prática ― mesmo sem suporte legal ― não dentro de décadas mas dentro de poucos anos, e a parada é alta: as armas autónomas têm sido referidas como a terceira revolução na arte da guerra, a seguir à pólvora e às armas nucleares.”
À tomada de posição formalizada na “ Carta Aberta” seguiram-se várias outras iniciativas nascidas no seio da comunidade científica e envolvendo também instituições de investigação e, significativamente, um certo número de empresas tecnológicas na área da Inteligência Artificial e da Robótica. Porventura a mais recente, data de Agosto de 2018, e tem a forma de um compromisso — o compromisso de não “participar nem apoiar o desenvolvimento, fabricação, comercialização ou utilização de armas autónomas letais”. À data de hoje o Compromisso conta com 247 organizações signatárias, entre as quais a OTC, e 3250 signatários individuais de cerca de uma centena de nacionalidades [13]. A importância do que está em causa levou à constituição de um fórum de debate no quadro da Organização das Nações Unidas, associado à Convenção sobre Armas Desumanas negociada nos anos 80 e que está em vigor mas não cobre os sistemas de armas autónomas letais[14]. Em 2016, foi constituído um Grupo de Peritos com o propósito de chegar a um acordo que regulamente o uso daquelas armas não excluindo a sua proibição [15]. A última reunião do Grupo teve lugar em Agosto de 2019, na sede das Nações Unidas em Genebra. Os trabalhos prosseguem.
UM MUNDO INSTÁVEL E PERIGOSO
Um observador atento e medianamente informado terá formado a opinião de que a Paz no mundo, a própria sobrevivência da espécie e a continuidade da vida sobre a Terra, enfrentam hoje sérias ameaças.
Poderá também ter formado a ideia de que tais ameaças estão em boa parte ligadas aos extraordinários avanços do conhecimento científico e ao desenvolvimento de uma multiplicidade de aplicações tecnológicas que aqueles proporcionam. Entendemos que, quer as ameaças — que são reais — quer os avanços da ciência e da técnica, têm uma mesma origem: a actividade humana. E esta pode ser bem ou mal dirigida. Daí o dizer-se que, no que toca à Ciência e à Técnica, temos nas mãos uma espada de dois gumes. Arma manuseada ao sabor de interesses poderosos que determinam os caminhos que seguem as sociedades humanas.
Importa estar consciente de que não só não é possível como não é desejável, travar (e menos ainda impedir) a procura de conhecimento novo que é o objecto da actividade de investigação científica: a investigação que faz avançar a Ciência ― seja sobre o mundo natural seja sobre os fenómenos sociais e a evolução das sociedades humanas. Entretanto, o que é possível e absolutamente vital é estar atento ao modo como são aplicados os conhecimentos novos. Quer dizer, por um lado, o avanço imparável da Ciência, pura ou fundamental, e, por outro, as suas aplicações tecnológicas com um impacte directo nas nossas vidas. Seja um telemóvel seja uma central nuclear.
É pois crucial saber distinguir, Ciência, factor de Paz e de desenvolvimento, de criação de riqueza e bem-estar, da Ciência, que alimenta guerras e a destruição, material e moral, do próprio Homem e da Natureza que o sustenta. Quem melhor do que os investigadores, os técnicos de investigação e outros trabalhadores científicos pode contribuir para levar junto dos seus concidadãos a informação necessária para que essa distinção seja feita? Eis uma questão decisiva dos nossos dias e que invoca a responsabilidade social dos trabalhadores científicos. Estes devem em todos os momentos ter presente a importância de contribuir para uma tomada de consciência das massas empurradas para um caminho de desastre por forças dominantes.
O montante de recursos financeiros, humanos e materiais investidos nas guerras e nas infra-estruturas que as suportam desafiam a imaginação. São superiores ao que é investido na investigação científica, pura ou aplicada, para fins civis, na saúde ou na educação. Em 2018, o Produto Interno Bruto mundial foi estimado em cerca de 85 milhões de milhões de dólares americanos. No que toca às despesas militares, os números divulgados pelo Stockholm International Peace Research Institute (SIPRI) para 2018 apontam para uma despesa total de cerca de US $1,8 milhões de milhões [16]. Este montante representaria assim cerca de 2,1% do PIB mundial. Entretanto, de acordo com a economista norte-americana Kimberly Amadeo, especialista em análise orçamental, a despesa militar real dos Estados Unidos no presente ano fiscal aproxima-se de 1 milhão de milhões de dólares, despesa que é superior à soma das despesas militares dos nove países que se lhe seguem na escala descendente de valores da despesa militar por país [17]. Os dados do SIPRI confirmam estar em curso uma corrida aos armamentos que se traduz no crescimento regular das despesas militares para o que contribui um investimento crescente no desenvolvimento de novas tecnologias de base científica e novos sistemas de armas[18].
Com efeito, uma boa parte do investimento nas actividades de Investigação e Desenvolvimento Experimental (I&DE) é dirigida para novas armas e tecnologias militares emergentes ou “disruptivas”, para usar o termo caro à Agência DARPA, de que se falou acima[19]. Aí nos referimos a alguns casos que vêm despertando a atenção mas outros há não menos relevantes que poderíamos abordar: armas de energia dirigida, que assentam na utilização de lasers de alta potência; algoritmos de intrusão maliciosa — o chamado “hacking”— em sistemas informáticos, base da ciberguerra; ou, ainda, as novas versões, aperfeiçoadas, de explosivos nucleares e respectivos vectores de transporte, em que se destacam os mísseis e planadores hipersónicos. De novo, o conhecimento científico e técnico ao serviço da guerra. Guerra que tem as suas raízes mais fundas na natureza predadora do capitalismo selvagem. Na pilhagem dos recursos naturais, no domínio territorial que exige.
Acresce que são muitas as instituições e grupos de investigação que hoje dependem para sobreviver de contratos com os militares sujeitando-se assim, de facto, a ser deles feito refém.
Tudo isto se passa num contexto em que o planeta e os povos têm pela frente outras ameaças, ligadas entre si, como os riscos associados às alterações climáticas, a desertificação e a escassez de solos férteis, o acesso à água potável, ou as grandes fontes industriais de poluição. E outros poder-se-ia referir. Importa ter consciência deles e empenharmo-nos na sua resolução.
A Federação Mundial dos Trabalhadores Científicos (FMTC), na qual a OTC-Organização dos Trabalhadores Científicos está filiada, tem dedicado particular atenção a estas ameaças globais. No seu “APELO DE DAKAR”[20] lançado em Dezembro de 2017 a Federação Mundial afirma: “O Clima, a Biosfera, os Oceanos — o Planeta Terra ― está a entrar numa era desconhecida. As condições de vida de todos os seres vivos estão ameaçadas. A longo prazo, é a própria sobrevivência da espécie humana que está em jogo. As ameaças são globais. Requerem o envolvimento de todos e a mobilização de todas as nações, povos e sectores de actividade. A contribuição da investigação ― incluindo nas ciências sociais e humanas — é decisiva para mudar de rumo.”
A construção de um futuro sustentável depende de todos e de cada um de nós — do activismo cívico com a contribuição dos próprios trabalhadores científicos — mais do que das elites que governam para o curto prazo, promovem a pilhagem dos recursos naturais, ignorando ou fingindo ignorar que ao desprezar os equilíbrios naturais estão a cavar a sua própria sepultura.
23 de Agosto de 2019 (revisto em 5 de Janeiro de 2020)
O presente artigo foi publicado originalmente com o título “Ciência e Sociedade” na revista “Seara Nova” nºs 1748-1749, Outono/Inverno 2019
[1] Nos países do leste europeu, nomeadamente, mantem-se ainda em larga medida, a estrutura herdada da antiga URSS, em que as Academias de Ciências eram os principais polos de execução das actividades de investigação científica fundamental
[2] in “The Proceedings of the Twentieth World Congress of Philosophy”, Boston, Massachusetts, 10-16 Agosto 1998
[3] D.T. Max, “How Humans Are Shaping Our Own Evolution”, National Geographic, Abril 2017
[4] David Cyranosk, “The CRISPR-baby scandal: what’s next for human gene-editing”, Nature, 26 Fevereiro 2019,
[5] Frederico Carvalho, “Um novo sistema de armas biológicas?”, Um contributo para o Grupo de Trabalho 1
“Paz, Desenvolvimento e Cooperação”, 89ª Reunião do Conselho Executivo da Federação Mundial dos Trabalhadores Científicos, Paris, 29-30 Abril 2019 (https://otc.pt/wp/2019/02/22/um-novo-sistema-de-armas-biologicas/)
[6] https://www.darpa.mil/news-events/2016-10-19
[7] “Agricultural research, or a new bioweapon system?”, R. G. Reeves , S. Voeneky , D. Caetano-Anollés , F. Beck , C. Boëte, Science 5 de Outubro de 2018, Vol. 362, Nº 6410, pp. 35-37
[8] 24th International Joint Conference on Artificial Intelligence, Buenos Aires, Julho 2015
[9] O “Instituto pelo Futuro da Vida” é uma organização de voluntários que conjuga a investigação e o activismo social e tem por objectivo contribuir para mitigar os riscos existenciais que hoje se colocam ao futuro das sociedades humanas sobre a Terra, em particular os riscos associados aos avanços da Inteligência Artificial. Na sua direcção e conselho consultivo têm assento cientistas, tecnólogos e outros intelectuais de várias nacionalidades.
[10] https://futureoflife.org/open-letter-autonomous-weapons/
[11] Luís Moniz Pereira, Professor Catedrático (Jubilado) da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, é um dos mais conceituados investigadores portugueses no domínio da Inteligência Artificial. A sua contribuição científica par a disciplina é reconhecida internacionalmente. Luís Moniz Pereira é membro dos Órgãos Sociais da OTC-Organização dos Trabalhadores Científicos.
[12] https://otc.pt/wp/2018/01/11/entrevista/
[13] “DECLARAÇÃO DE COMPROMISSO SOBRE ARMAS AUTÓNOMAS LETAIS”
https://otc.pt/wp/2018/08/01/declaracao-de-compromisso-sobre-armas-autonomas-letais/.
[14] Convention on Prohibitions or Restrictions on the Use of Certain Conventional Weapons Which May Be Deemed to Be Excessively Injurious or to Have Indiscriminate Effects
https://www.unog.ch/80256EE600585943/(httpPages)/4F0DEF093B4860B4C1257180004B1B30?OpenDocument
[15] Group of Governmental Experts on Lethal Autonomous Weapons Systems (LAWS)
https://www.unog.ch/80256EE600585943/(httpPages)/5535B644C2AE8F28C1258433002BBF14?OpenDocument
[16] https://www.sipri.org/media/press-release/2019/world-military-expenditure-grows-18-trillion-2018
[17] Kimberly Amadeo, “US Military Budget, Its Components, Challenges, and Growth”, 22 de Abril de 2019,
https://www.thebalance.com/u-s-military-budget-components-challenges-growth-3306320
[18] “New technologies drive military spending: SIPRI”, https://www.dw.com/en/new-technologies-drive-military-spending-sipri/a-48513951
[19] https://www.darpa.mil/about-us/about-darpa
[20] “Por um projecto global de investigação, urgente e excepcional. Actuemos enquanto ainda é tempo. Apelo à Acção.
Aos cientistas, aos governantes e aos cidadãos do mundo”, FMTC, Dakar, Dez 2017
https://otc.pt/wp/2018/06/26/apelo-a-accao-apelo-de-dakar/