A corrida aos armamentos
Agir pela Paz e o Desenvolvimento
Frederico Carvalho
Vídeoconferência promovida pela Universidade Popular do Porto
21 de Maio de 2020
RESUMO
Assiste-se nos nossos dias a um recrudescimento de uma corrida aos armamentos que se vem a acentuar desde o início do século. Se, por um lado, ela se traduz num progressivo e significativo aumento das despesas militares, por outro, envolve novas formas de fazer a guerra com recurso a avanços do conhecimento científico e a tecnologias de alcance ainda mal definido. Assim é nos domínios da biologia, informática, automação, e da chamada “inteligência artificial”. Mas também no aperfeiçoamento da arma nuclear e, de forma mais encoberta, em domínios das ciências sociais e humanas.
Onde o grande capital financeiro se apropria do Estado, a guerra mostra-se instrumento indispensável à sua sobrevivência, exigindo-se a permanente expansão dos chamados “complexos industrial-militares”. Vastos recursos da ciência e da tecnologia são postos ao seu serviço em detrimento do esforço necessário para combater ou minorar sérias e reais ameaças que a humanidade enfrenta, como o vasto complexo de questões ligadas às alterações climáticas e, ainda que estas não existissem, às precárias condições de vida e à própria subsistência de milhares de milhões de seres humanos.
Assim a todos nós, cidadãos comuns e muito especialmente às mulheres e homens de ciência, se coloca a eminente necessidade de defender a Paz, na ausência da qual é posto em causa o sucesso do combate às outras ameaças que pesam sobre os povos e sobre este nosso planeta.
◊◊◊◊◊◊
Caras amigas e caros amigos, a todas e a todos vós desejo saúde e serenidade para enfrentar com paciência este novo inimigo, a pandemia COVID-19 que hoje atinge quase todos os países do mundo.
Para lá dos efeitos do vírus na saúde e na vida das pessoas, a sua disseminação tem consequências económicas e sociais devastadoras. E importa dizer que essas consequências não são as mesmas em todos os lugares nem afectam de igual modo os vários estratos sociais: elas são mais dramáticas nos países mais pobres mas também, em qualquer país, para quem vive do seu trabalho ou não tem meios próprios de subsistência.
O vírus não pode ser democrático onde não existe democracia. Antes aparece como agente revelador das gritantes desigualdades sociais que todos conhecemos. Ao mesmo tempo, em muitos pontos do globo, persistem conflitos armados, guerras por procuração, a destruição desapiedada de vidas e bens, assim agravando tragicamente o sofrimento das populações atingidas. Mas mantêm-se também embargos e sanções económicas e financeiras, ilegítimas, de que são vítima diversos países como Cuba ou a Palestina, o Irão ou a Síria, a Venezuela, para citar apenas alguns. Embargos e sanções que são também uma forma de guerra fragilizam a sociedade face à pandemia e devem ser considerados actos criminosos.
Entretanto, nunca as despesas militares, os recursos investidos nas guerras e na sua preparação foram tão elevados como hoje. Quando traduzidos em números os EUA surgem como paradigma desta evolução.
De acordo com os dados disponíveis mais recentes a despesa militar total do globo atingiu em 2019 cerca de 2 milhões de milhões de US$ (dólares constantes de 2018). Este valor é aproximadamente duas vezes o valor da despesa total em 1996. Apesar de há mais de seis anos a despesa anual vir crescendo gradualmente, entre 2018 e 2019 registou-se o maior aumento de sempre num só ano (3,6%). Os cinco países com maiores despesas militares são nesta altura e por esta ordem, EUA, China, Índia, Rússia e Arábia Saudita. Se olharmos à despesa por país, separadamente, verifica-se que China e Rússia gastam, em conjunto, menos de metade da despesa militar dos Estados Unidos. A Federação Russa, menos de 10% e apenas ligeiramente mais do que a Arábia Saudita. A fonte de onde se podem retirar estes números é o Instituto de Investigação da Paz de Estocolmo — o bem conhecido Stockholm Peace Research Institute, SIPRI na sigla em língua inglesa. Importa referir que o valor indicado para as despesas militares norte-americanas é contestado por analistas fiscais que consideram não incluir todas as componentes da despesa real. Segundo eles o valor correcto é muito próximo de 1 milhão de milhões de dólares, valor que representa cerca de 1% do PIB mundial ou, se quisermos, 4 vezes o Produto Interno Bruto nacional de 2019.
A manutenção de bases militares em solo estrangeiro tem, naturalmente, um peso importante no montante das despesas militares. De acordo com diversas fontes, oficiais ou oficiosas, os EUA mantinham no estrangeiro cerca de 800 bases ou instalações militares, de importância diversa. Em conjunto, o Reino Unido, França, Rússia e China, dispunham de uma trintena. A imagem seguinte é elucidativa.
Os avanços da Ciência e da Técnica sempre se apresentaram como “arma de dois gumes”: ora contribuem, através da aplicação que lhes é dada, para melhorar a vida, combatendo a doença, a miséria e a fome e abrindo novos horizontes de bem-estar ora se transformam em instrumentos de morte e destruição de vidas e bens. Um ou outro destino depende dos interesses e quem se apropria desses avanços e decide olhá-los como bem privado ou como bem público. Mudar o mundo em que vivemos exigirá transformações sociais profundas, uma verdadeira revolução. Chamar cada uma e cada um de nós, a agir, na medida das suas forças, pela Paz e pelo Desenvolvimento poderá ser a contribuição possível para lá chegar.
……….………………………………………………………………………
Vamos agora dedicar alguns minutos à questão da utilização de agentes biológicos como arma de guerra.
O uso de agentes biológicos como meio para enfraquecer ou destruir um inimigo num conflito é provavelmente tão antigo quanto a Humanidade. Há vários exemplos da sua utilização ao longo da história. Desde as formas mais primitivas, como a utilização de corpos de soldados ou animais mortos para contaminar poços e fontes, ou catapultando cadáveres para o interior de cidades citiadas,[i] o que mostra que os chefes militares da Idade Média reconheciam que as vítimas de doenças infecciosas podiam elas próprias transformar-se em armas. Às formas mais “sofisticadas”, como a distribuição de mantas infectadas com varíola na América do Norte para dizimar as tribos índias hostis aos britânicos (1763).
Os nativos que nunca tinham sido expostos à doença e não tinham imunidade foram dizimados em grande escala.
Também os ingleses o usaram contra os americanos durante a Guerra Revolucionária Americana (1775-83).
Entre o final da Grande Guerra e o início da Segunda Guerra Mundial, diversas nações “desenvolvidas” iniciaram programas de investigação para o desenvolvimento de armas biológicas; o programa japonês merece uma referência especial pela vastidão dos meios envolvidos, que incluíram a criação de um centro de investigação, conhecido como Unidade 731, onde trabalharam mais de 3000 operacionais, incluindo pessoal investigador e especialistas de várias áreas, sobretudo médicos e biólogos.
©Akiyoshi Matsuoka, Creative Commons Attribution-Share Alike 3.0 Unported
Foram feitas experiências para ensaiar os efeitos de diversos agentes biológicos, usando como cobaias, civis e prisioneiros de guerra, na sua maioria chineses e russos, mas também coreanos e um número reduzido de prisioneiros de guerra de países ocidentais. Existem indicações de que vários milhares de prisioneiros terão morrido em resultado das experiências levadas a cabo sobre eles. Tendo em conta os vários programas postos em prática no terreno pelos militares da Unidade 731, algumas estimativas apontam para um número de meio milhão de vítimas. No Ocidente relatos de sobreviventes foram ignorados ou postos de lado como “propaganda comunista”.
Friedrich Frischknecht, reputado investigador, que escreveu sobre a história da guerra biológica, diz-nos o seguinte:
“Após a guerra, os soviéticos condenaram por crimes de guerra alguns dos investigadores japoneses envolvidos na guerra biológica, mas os EUA concederam liberdade a todos os investigadores em troca de informações sobre as suas experiências com seres humanos. Assim, criminosos de guerra voltaram a ser cidadãos respeitados e alguns fundaram empresas farmacêuticas. O sucessor de Ishii, Masaji Kitano, chegou a publicar artigos de investigação no pós-guerra sobre experiências com seres humanos, substituindo ‘humano’ por ‘macaco’ quando se referia às experiências na China nos tempos de guerra.”
“A exibição das provas dos crimes da Unidade 731 é a demonstração pública de factos e crimes da guerra biológica japonesa e da unidade 731. O propósito de trazer a público em toda a sua extensão esses crimes de guerra, as responsabilidades e os danos causados já no pós-guerra, que lhes estão associados, tem por objectivo levar a conhecer e a recordar a história, da qual podem ser tiradas lições e a uma reflexão profunda que deve ser feita sobre a relação existente entre guerra e ciências médicas, guerra e consciência moral, bem como sobre guerra e paz. A partir daí deveremos também aprender como respeitar os direitos humanos e a Liberdade em defesa da Paz e de um mundo civilizado. O sítio da Unidade 731 é de longe o sítio histórico mais importante de guerra biológica na história da guerra no mundo. É também um testemunho histórico do sofrimento humano, um legado e memória única de uma guerra brutal. Ao associar estas duas finalidades particulares — a da preservação de um sítio histórico e a revelação de provas de factos reais — assumimos a responsabilidade de ser fiéis à realidade histórica. Com a clara consciência do dever de defender a Paz e impedir que este capítulo trágico da história se repita.”
Para que a Unidade 731, hoje descrita, por vezes, como o AUSCHWITZ do Oriente, não seja esquecida.
As razões imperiais que levaram o Japão a construir e a sustentar sem regatear apoios o complexo laboratorial instalado na China, em Harbin, entre 1934 e 1945, podiam ser sido adoptadas hoje com fundamentos eventualmente semelhantes. Vejamos quais foram.
“Uma vez que o Japão não dispõe de recursos minerais metálicos e outras matérias primas necessárias ao fabrico de armamentos, o Japão tem que procurar armas novas. E a arma biológica é uma delas.
Fabricar armas biológicas não só poupa dinheiro e matérias primas como também a sua letalidade é imensa, o que são excelentes notícias já que permitem ao Império Japonês, a atravessar uma crise económica e com falta de aço, matar dois coelhos de uma só cajadada.”
E adiantam-se outros argumentos a favor das armas biológicas.
“Os tempos em que a guerra apenas dependia da força acabou. Uma vez que inventámos, com a ajuda da ciência, um grande número de poderosas armas que podem matar sem provocar destruições materiais, o nosso Império deve imediatamente construir o centro experimental na área onde não há habitações.” (referência à futura Unidade 731)
“As guerras do futuro serão guerras científicas, e a guerra biológica é especialmente importante. No desenvolvimento científico não há fronteiras nacionais, mas é para a sua pátria-mãe que os investigadores devem activamente desenvolver a investigação.”
Recordemos que o desenvolvimento pelos EUA da chamada “bomba de neutrões” foi justificado com um argumento semelhante: matar seres humanos mantendo intactas estruturas materiais[ii].
Continuemos
Em 1942, o exército britânico testou na Ilha de Gruinard, na costa da Escócia, bombas contendo esporos de uma bactéria que provoca a infecção designada por carbúnculo (ou antraz[iii]),. A ilha ficou contaminada e inabitável até 1990, altura em que foram realizados extensos trabalhos de descontaminação.[iv]
(Situação semelhante veio a ocorrer anos mais tarde devido à contaminação radioactiva de vastas áreas em resultado da deflagração de explosivos nucleares mas também, ainda que em moldes distintos, com a utilização de munições de urânio empobrecido, nomeadamente, na campanha da OTAN contra a ex-Jugoslávia mas também em outros teatros de guerra. Uma forma diferente de “contaminação” é a que resulta da utilização de minas terrestres em vários territórios, designadamente, em África e na Ásia.)
Na segunda metade do século XX, e especialmente no seu último quartel, tanto a URSS como os EUA investiram em ambiciosos programas de investigação destinados a desenvolver e produzir armas biológicas.
Há razões para isso e que não são apenas de hoje, entre elas as que se traduzem em preocupações de economia com contornos de algum humor negro. Assim, há quem sustente que, num certo sentido, as armas biológicas apresentam “vantagens” consideráveis sobre outros tipos de armamento, naturalmente, do ponto de vista das partes em conflito. Uma é o seu muito baixo custo em comparação com outras armas convencionais ou não-convencionais. As armas biológicas são mais baratas quando o objectivo é eliminar vidas humanas numa determinada área de aplicação. Tomemos, por exemplo, um quilómetro quadrado de terreno habitado por civis. Em 1969, peritos dos EUA revelaram as seguintes estimativas de custo, por quilómetro quadrado, de um ataque contra populações civis usando diferentes tipos de armamento: 1 US$ com armas biológicas, 600 US$ com armas químicas, 800 US$ com armamento nuclear e 2000 US$ com armamento convencional.[v] Estes números referem-se a perdas comparáveis de vidas; não incluem a destruição de bens materiais, edifícios e infraestruturas.
Entretanto, a oposição ao desenvolvimento, fabricação e armazenamento de armas biológicas vem de longe. Em 1925, no tempo da Sociedade das Nações, foi assinado em Genebra um Protocolo que proibia o uso de armas biológicas e também químicas [vi]. O acordo tinha no entanto um alcance limitado. Com efeito não proibia a posse, produção, armazenamento, transferência ou desenvolvimento dessas armas. Simplesmente proibia a sua utilização em conflitos armados internacionais. Além disso, vários países condicionaram a sua assinatura ao declarar que apenas considerariam as obrigações do não-uso dessas armas como aplicáveis às outras partes signatárias e que essas mesmas obrigações deixariam de aplicar-se se as armas proibidas fossem usadas contra os próprios.
O mundo entretanto evoluiu, e, quase 50 anos mais tarde, em 1972, é assinada a “Convenção sobre a Proibição do Desenvolvimento, Produção e Armazenamento de Armas Bacteriológicas (Biológicas) ou Tóxicas e a sua Destruição”, abreviadamente, Convenção sobre Armas Biológicas (BWC do inglês Biological Weapons Convention)[vii].
A Convenção entrou em vigor a 26 de Março de 1975. Hoje, 183 estados são Parte da Convenção, um conjunto que inclui todas as principais potências mundiais[viii]. Entre os quais os cinco Estados que são membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unida.
A CONVENÇÃO E O SEU DESRESPEITO
A Convenção sobre Armas Biológicas foi um considerável passo em frente, no sentido do desarmamento e da preservação da paz, e permanece em vigor até aos dias de hoje. No entanto, a sua eficácia, na prática, é consideravelmente reduzida pela falta de um mecanismo legal que permita verificar se as disposições do acordo são efectivamente respeitadas. Essa falha, sendo um motivo de preocupação, levou a que se desse início a um longo processo de negociações que permitisse supri-la. As negociações tiveram início em 1990, 15 anos depois da convenção ter sido assinada, e hoje, passados 30 anos sobre essa data e quase 50 sobre a assinatura da Convenção, não foi ainda alcançado nenhum acordo sobre um mecanismo de monitorização do cumprimento das disposições nela previstas. Isto diz bem do peso dos interesses em jogo.
Em 2001, quando ainda decorriam as conversações sobre o assunto, o então presidente americano George Bush entendeu que o esboço de acordo que na altura estava sobre a mesa, não servia os interesses nacionais dos Estados Unidos, decidiu rever a política norte-americana sobre armas biológicas, decisão que veio efectivamente condenar qualquer hipótese de se chegar finalmente a um acordo internacional abrangente sobre a questão central da verificação do cumprimento das disposições da Convenção sobre as Armas Biológicas de 1975. A única medida que subsiste neste contexto é o acordo inicialmente obtido da entrega voluntária às Nações Unidas de relatórios anuais pelas partes contratantes sobre as chamadas Medidas de Reforço de Confiança. Na verdade, apenas metade dos signatários da Convenção têm enviado esses relatórios anuais. Em 2021 haverá um novo encontro das partes signatárias da Convenção onde esta questão que continua pendente, voltará à mesa de negociações. Não parece, todavia, que no estado actual das relações entre as grandes potências, designadamente, os EUA e os seus inimigos de estimação, permita-se-me uma expressão brejeira — refiro-me à Federação Russa e à República Popular da China — as negociações possam vir a ser bem-sucedidas.
Mas, voltando, à existente Convenção sobre Armas Biológicas, vejamos o que se lê no seu artigo primeiro:
Artigo 1º da Convenção sobre Armas Biológicas
“Cada Estado Parte desta Convenção compromete-se a nunca, em nenhuma circunstância, desenvolver, produzir, armazenar ou adquirir ou reter:
(1) agentes microbianos ou outros agentes biológicos, ou toxinas, independentemente da sua origem ou método de produção, de tipos e quantidades que não tenham justificação para fins profilácticos, de protecção ou pacíficos;
(2) armas, equipamentos ou meios de entrega projectados para usar esses agentes ou toxinas para fins hostis ou em conflito armado “.
No correr dos anos, as disposições do Artigo 1º têm vindo a ser clarificadas em sucessivos encontros ditos Conferências de Revisão que têm tido lugar de 5 em 5 anos. A clarificação das disposições do artigo é necessária pelo facto de que ao longo do tempo há novos desenvolvimentos científicos e tecnológicos que importa ter em conta na formulação das disposições da Convenção. Essa clarificação é particularmente importante, se se tiver em vista o rápido desenvolvimento de técnicas e métodos que tiram partido de novos conhecimentos científicos, geralmente envolvendo diferentes disciplinas, técnicas que podem ser usadas para fins não-pacíficos, i.e. que podem ser aplicadas em armas.
Uma questão central é a de como assegurar que os fins a que se destina o agente biológico ou a toxina – substância venenosa produzida em células vivas ou organismos – têm justificação “para fins profilácticos, de protecção ou pacíficos”. E como determinar que as quantidades retidas são consistentes com os objectivos proclamados?
Por outro lado, é possível interpretar as disposições da Convenção como banindo a criação de arsenais biológicos e proibindo a investigação biológica de carácter ofensivo, mas, todavia, permitindo a investigação com fins defensivos.
Um caso bem documentado, que temos presente, é o do programa lançado em 2016 pela Agência de Projectos de Investigação Avançada para a Defesa (DARPA) que depende do Departamento da Defesa dos Estados Unidos. O Programa a que foi dado o curioso nome de “Insectos Amigos” (“Allied Insects”) foi descrito como tendo por objectivo o desenvolvimento de medidas de contra-ataque, podendo ser pronta e massivamente mobilizadas, “em resposta a ameaças potenciais ao abastecimento de produtos alimentares, naturais ou criadas artificialmente, com vista à protecção do sistema de culturas dos EUA”.
Um aspecto-chave deste programa é o facto de ele se basear numa tecnologia emergente denominada “edição de genes” (gene editing) e naquela que parece ser uma ferramenta de edição muito eficaz: a tecnologia CRISPR-Cas9. Trata-se de uma tecnologia que permite aos geneticistas e investigadores médicos editar (modificar) partes de um genoma através da remoção, inclusão ou alteração de segmentos da sequência de ADN presente num gene. É uma tecnologia que permite reescrever aquilo a que podemos chamar uma frase no livro da vida genético, de forma mais rápida, barata e precisa do que anteriores técnicas de manipulação de ADN[ix]. Vem a propósito referir que é esta nova ferramenta de trabalho que aparece referida num caso que recentemente alarmou a opinião pública: o caso do bébé chinês cujo genoma terá sido alterado por acção de um médico posteriormente julgado e condenado a pena de prisão. Também tem sido posta a correr uma teoria que carece de comprovação de que na origem da pandemia que actualmente nos aflige estaria uma operação de engenharia genética, utilizando a mesma ferramenta, efectuada sobre um vírus cujo hospedeiro natural seria uma espécie natural selvagem, possivelmente uma variedade de morcego que se encontra em certas regiões da Ásia. Qualquer certeza está nesta altura fora de questão.
Entretanto, o programa de investigação “Insectos Amigos” destina-se explicitamente à edição genética de culturas alimentares, recorrendo à tecnologia CRISPR.
Sabe-se que as plantas são capazes de receber informação genética de vírus através da chamada “transferência horizontal de genes”. Estas transferências envolvem DNA adquirido de organismos não-relacionados, enquanto nas transferências verticais de genes, o DNA é herdado de um organismo parental. O programa de investigação financiado pela DARPA tem como objectivo dispersar vírus infecciosos geneticamente modificados que foram alterados de forma a poderem editar cromossomas de culturas directamente nos campos[x].
O agente de dispersão que está a ser considerado são insectos — os aliados. Blake Bextine, o gestor do programa da DARPA para os Insectos Amigos, sublinha que “Os insectos alimentam-se de plantas e são insectos que transmitem a maioria dos vírus que afectam as plantas. (…) A DARPA tenciona aproveitar as potencialidades deste sistema natural, manipulando genes em vírus que afectam plantas e que podem ser transmitidos por insectos para conferirem características protectoras às plantas-alvo de que estes se alimentam.”
A referência na descrição dos objectivos do Programa da DARPA, a “ameaças criadas artificialmente ” alarga o âmbito de possíveis propósitos a acções defensivas contra “ameaças introduzidas por actores estatais ou não-estatais“. Esse seria um objectivo permitido. No entanto, o programa suscita entre os membros da comunidade científica internacional preocupações sobre o possível uso indevido para fins de guerra biológica. Na opinião do Dr. Guy Reeves, investigador do Instituto Max Planck de Biologia Evolutiva, na Alemanha, e um dos autores de um relatório crítico do Programa “Insectos Amigos”: “(…) com um pouco de imaginação, não há nada que não se possa imaginar que um vírus geneticamente modificado possa fazer, principalmente se esse vírus tiver a capacidade de identificar uma espécie no meio ambiente e que irá alterar geneticamente”.
Em artigo recente (Agosto de 2019) o jornal britânico Guardian[xi], estima entre 16 e 20 o número de Estados que têm programas de guerra biológica. Entretanto, seria superior a uma centena o número daqueles com capacidade para desenvolver programas de I&D com objectivos militares. E acrescenta “o segredo que envolve tais programas e o facto de ser mais fácil ocultar os meios materiais necessários para os desenvolver do que nos casos de armas químicas ou nucleares, torna difícil saber exatamente quantos estados possuem armas biológicas bem como identificar programas de bio-armamento.” Ao mesmo tempo dada a natureza dual[xii] de muitas instalações é difícil distinguir entre utilizações com fins defensivos e com fins ofensivos.
O mesmo jornal refere um relatório dum Centro especializado da Universidade de Cambridge que coloca a questão de saber em que medida os estados estão preparados para responder a futuras ameaças associadas a novas armas que combinem a manipulação genética com avanços da Inteligência Artificial. Armas que, no entender dos autores do relatório, seriam capazes de distinguir alvos com formas específicas de ADN próprias de determinada etnia[xiii].
É importante observar que a biossegurança, a todos os níveis, nacional ou global, pode ser posta em perigo não apenas pela guerra biológica e pelo bioterrorismo, mas também por acidentes em laboratórios com agentes patogénicos perigosos. Uma fonte de sérias preocupações é o facto de a síntese de agentes patogénicos mortais ser possível através de novos desenvolvimentos da biologia sintética. Uma vez que o campo da biologia sintética “inclui a arte e a ciência da construção de genomas virais”, será possível, por exemplo, criar em laboratório o vírus da varíola que foi erradicado da natureza[xiv]. As únicas amostras conhecidas do vírus, responsável por 300 milhões de mortes apenas no século XX, estão ou foram mantidas em duas instalações de alta-segurança, uma nos Estados Unidos e outra na Rússia.
Neste contexto, é apropriado citar o aviso do bioquímico do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, Kevin Esvelt, de que “técnicas avançadas de assemblagem de ADN e o conhecimento das suas capacidades tornaram possíveis vírus pandémicos amplamente acessíveis a actores não-estatais” [xv].
A manipulação de agentes biológicos é realizada em instalações de alta segurança, das quais um número significativo é operado por militares ou por agências de segurança nacional. De acordo com uma publicação de Jeremy Patterson no site da Arms Control Association, o Centro Nacional de Análises e Contramedidas de Biodefesa do Departamento de Segurança Interna dos EUA “conduziria investigação de avaliação de ameaças, um tipo controverso de investigação biológica em que novos tipos de armas biológicas são produzidos por investigadores para determinar a sua potencial viabilidade e como será possível defender-se contra elas”. Segundo o autor, alguns especialistas externos afirmam que à luz das disposições da Convenção sobre Armas Biológicas este tipo de investigação é de legalidade duvidosa [xvi].
Nos EUA, o número dos Laboratórios de Biossegurança de Nível 4 que é o nível mais alto, o BSL-4, em meia dúzia de anos, entre 2001 e 2007, aumentou de 5 para 15. Actualmente, em todo o mundo, o número total de laboratórios de BSL-4 cuja existência é declarada é 53. Várias fontes dão a entender que o número real é maior.
Alguns anos atrás, declarações de autoridades de alto nível da Federação Russa acusaram os EUA de “cercar a Rússia de laboratórios de armas biológicas”“[xvii] localizados secretamente. Uma referência especial foi feita a um “laboratório clandestino de armas biológicas na Geórgia, supostamente desrespeitando as convenções internacionais e representando uma ameaça directa à segurança da Rússia” [xviii]. Estas acusações foram repudiadas pelas autoridades americanas [xix].
Recordando a posição do presidente George W. Bush, de 2001, de recusar o proposto protocolo de verificação internacionalmente vinculativo da Convenção sobre Armas Biológicas, atrás referida, o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergey Lavrov, numa sessão da Conferência das Nações Unidas sobre Desarmamento, em Genebra, acusou os EUA de “continuarem a bloquear todos os esforços para criar um mecanismo de verificação para a Convenção sobre Armas Biológicas de 1972, que entrou em vigor em 1975, enquanto criam o seu próprio mecanismo de segurança para a guerra biológica” [xx] .
No caso dos EUA, segundo várias fontes, o interesse nas aplicações militares de agentes biológicos e químicos tem uma longa história de consequências trágicas. Larry Romanoff [xxi] num artigo recente escreve que “o governo dos EUA e as suas muitas agências e instituições de ensino e saúde conduzem, há muitas décadas, intenso trabalho de investigação sobre guerra biológica, em muitos casos fortemente focado em agentes patogénicos de especificidade étnica“.
No ano 2000, num relatório produzido para o “Projecto para o Novo Século Americano” intitulado “Reconstruindo as defesas da América”, os autores declararam: “Formas avançadas de guerra biológica em que são ‘visados’ genótipos específicos podem transformar a guerra biológica… numa ferramenta politicamente útil “ [xxii].
Recentemente recolhemos a informação, graficamente exposta na imagem seguinte, sobre a distribuição pelo mundo de laboratórios biológicos da alta segurança estrategicamente distribuídos em regiões sensíveis do globo[xxiii].
Estes laboratórios são financiados por uma entidade norte-americana ligada ao Departamento de Defesa designada por Defense Threat Reduction Agency (DTRA) no quadro do programa CBEP-Cooperative Biological Engagement Program, dotado na altura (2018) com cerca de 2000 milhões de dólares.
Em 17 de Abril passado O Ministério dos Negócios Estrangeiros da Federação Russa, através da sua porta-voz, chamou a atenção para o incremento da presença de meios biológicos norte-americanos fora das suas fronteiras, em particular nas antigas repúblicas soviéticas, afirmando que Moscovo não pode ignorar o facto de que uma infra-estrutura com um potencial biológico perigoso está a ser montada pelos americanos na directa vizinhança das fronteiras russas.
Hoje, laboratórios operacionais modernizados com fundos americanos, localizados na Ucrânia, Geórgia, Arménia e Cazaquistão desenvolvem investigação no domínio da biologia, no estudo de vírus e estirpes de vírus.
Fontes diversas, indicam que em regra o pessoal que trabalha nesses laboratórios, incluindo pessoal de empresas contratadas, goza de imunidade diplomática.
Falemos agora da arma nuclear.
A AMEAÇA NUCLEAR
Guerras e conflitos de vária natureza e origens marcaram a História desde os seus primórdios. Com pedras, paus, lanças ou machados, até ao advento da pólvora, todos os meios foram usados para o ataque e a defesa por grupos humanos organizados opostos entre si.
Na nossa era, todavia, pela primeira vez na longa sucessão das gerações que nos precederam, temos nas mãos meios que tornam possível extinguir a vida na Terra. E tornam possível fazê-lo num muito curto espaço de tempo.
A primeira e até hoje única vez em que o mundo assistiu à utilização da arma nuclear como arma de guerra foi, todos sabemos, o bombardeamento atómico das cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki, em Agosto de 1945. Muitos pensam, como eu, que a razão de ser da decisão que motivou o lançamento das bombas sobre aquelas cidades foi avaliar os seus efeitos em condições operacionais que não podiam ser reunidas em qualquer ensaio de outro tipo. O mesmo é dizer que se tratou de uma experiência de recolha de dados da qual as populações daquelas cidades japonesas terão sido cobaias.[xxiv]
O ensaio permitiu passar ao projecto e fabricação de explosivos sucessivamente mais potentes, tecnicamente mais evoluídos e de maior poder destruidor.
O equilíbrio de forças, no que respeita a meios nucleares ofensivos, nos explosivos em si, e, sobretudo, nos indispensáveis meios de transporte e lançamento, os chamados vectores, sem os quais a bomba pouco valeria, traduziu-se nos longos anos de “guerra fria”. Nesses anos, o mundo esteve por várias vezes à beira da catástrofe, por erros políticos ou deficiência técnica dos sistemas de alerta precoce. O caso conhecido como “crise dos mísseis de Cuba” foi um desses momentos em que se esteve perto do fim. Fim que seria a extinção da vida sobre a Terra.
Terminada a Guerra Fria na forma que foi conhecida, não será errado afirmar que se entra numa Guerra Fria 2.0, como hoje se costuma dizer. Há vários e sérios sinais de que assim é. Vejamos alguns.
O mais preocupante será o progressivo desmantelamento, para desgraça nossa, de um importante conjunto de acordos internacionais que de algum modo preveniam aquilo que se costuma chamar o “Holocausto Nuclear”. E a este propósito convém lembrar que uma das consequências do rebentamento de explosivos nucleares próximo do solo é a formação de importantes quantidades de cinzas que ascendem à estratosfera e se alastrarão de forma cobrir todo ou grande parte do globo terrestre impedindo a passagem dos raios solares. O chamado “inverno nuclear” é a consequência desse fenómeno que é acompanhado de uma importante diminuição da temperatura ao nível do solo e a consequente paragem da germinação de plantas. Agricultura e pecuária serão afectadas provocando fome generalizada.
O número actual estimado de explosivos nucleares ou ogivas nucleares portadoras de explosivos nucleares operacionais, prontas a disparar, é de cerca de 3700 das quais cerca de 3200 estão na posse, em partes iguais, dos EUA e da Rússia. Os arsenais da Índia e do Paquistão são idênticos, cada um contando com cerca de 150 ogivas, todas em armazém [xxv]. De acordo com os especialistas que se têm pronunciado sobre a questão, o rebentamento deste número reduzido de explosivos na posse da Índia e do Paquistão, a ocorrer, seria suficiente para provocar o efeito de “inverno nuclear” a que nos referimos. Se assim é, não se vê de facto razão que justifique a manutenção de arsenais nucleares com a dimensão dos que actualmente possuem as principais potências nucleares.
Voltando à questão actual do destino dos acordos e tratados entre Estados, os casos mais notáveis no domínio nuclear são, por ordem cronológica, a denúncia pelos EUA, no mandato presidencial de George W. Bush, em Junho de 2002 do tratado Anti Mísseis Balísticos (ABM) assinado 30 anos antes por Richard Nixon e Leonid Brezhnev. O Tratado proibia a construção de defesas contra mísseis balísticos estratégicos ou de longo alcance (ICBM e SLBM), mas permitia a construção de sistemas de defesa contra mísseis balísticos de curto e médio alcance. O abandono do tratado foi um primeiro prenúncio de um possível retorno da corrida aos armamentos nucleares.
O passo seguinte foi a denúncia, de novo pelos EUA, do Tratado sobre as Forças Nucleares de Alcance Intermédio (INF Treaty) assinado em 1987 por Mikhail Gorbachev e Ronald Reagan. Os Estados Unidos, sob a presidência de Donald Trump, retiraram-se formalmente do tratado em Agosto de 2019.
O Tratado INF proibia as duas potências signatárias de instalar em terra mísseis balísticos, mísseis de cruzeiro e sistemas lança-mísseis com alcance entre 500km e 5500 km. Ficavam de fora mísseis estratégicos e misseis lançados do ar ou do mar. Em 1991, ano da extinção da União Soviética, a assinatura do tratado tinha levado à eliminação pelas duas partes, no seu conjunto, de cerca de 2700 mísseis de diversos tipos! Desde aquela data e até 2001 (ano da curva perigosa na história recente que foi a tragédia da destruição do World Trade Center) foram realizadas inspecções de verificação do cumprimento do tratado.
Um e outro dos referidos tratados, ABM e INF, devem ser tidos como marcos de enorme importância no caminho da uma progressiva redução dos arsenais nucleares dos Estados Unidos e da Rússia.
Entretanto, desde então, muito coisa se alterou no relacionamento das duas maiores potências nucleares, cujo poderio militar se consolidara ao longo de cerca de 40 anos, num mundo em que uma terceira grande potência se veio gradualmente a impor, a República Popular da China.
A situação, hoje, no que respeita ao equilíbrio de forças é preocupante e erra quem pensa que a ameaça dum conflito nuclear generalizado – o holocausto nuclear- está afastada.
Ao longo de quase 50 anos, desde os anos 70 do século passado, sucederam-se tentativas de acordo entre a URSS, depois a Federação Russa, e os Estados Unidos da América, para a limitação, primeiro, a redução depois, dos arsenais nucleares estratégicos dos dois países. Em vários momentos foi possível chegar a posições comuns que levaram à assinatura de tratados com aqueles objectivos. O mais recente e único ainda em vigor é o Tratado dito New START, START de Strategic Arms Reduction Treaty, assinado em Praga, em 2010, pelos presidentes Barack Obama e Dmitry Medvedev [xxvi]. Um aspecto particularmente importante é o de serem permitidas operações de controlo e verificação in situ, do cumprimento dos limites estabelecidos no Tratado, em número de 18 inspecções anuais. O Tratado entrou em vigor em Fevereiro de 2011 após ratificação pelas duas partes. Não houve até hoje de qualquer das partes notícia de incumprimento das disposições do Tratado. Em Fevereiro de 2018, tinham sido atingidos por ambas as partes (e mesmo ultrapassados) os limites de redução dos respectivos arsenais que haviam sido acordados. A questão que hoje se coloca é a da eventual não renovação do Tratado que expira em 5 de Fevereiro de 2021, daqui a menos de um ano, portanto. A não renovação implicará que pela primeira vez, em muitas décadas, uma expansão dos arsenais nucleares dos EUA e da Federação Russa não ficará sujeita a qualquer limitação ou controlo. É compreensível que a Rússia se sinta particularmente vulnerável já que nos últimos anos vê o dispositivo militar estado-unidense apertar o cerco às suas fronteiras europeias, a ocidente, e no extremo oriente, onde enfrenta a ameaça da presença de submarinos nucleares equipados com mísseis estratégicos. Nos Estados Unidos, apesar do parecer favorável de altos dirigentes militares à renovação do acordo a posição da presidência permanece uma incógnita [xxvii]. O lado russo vem já há algum tempo manifestando o interesse na renovação.
Além do mais, visto do lado americano, dir-se-ia ser este um mau momento. Os Estados Unidos estão apenas a iniciar a modernização das suas armas e infra-estruturas nucleares. Entretanto, a Rússia está a concluir o mais recente ciclo de modernização do seu arsenal após vários anos. Pareceria que seria contra os interesses dos Estados Unidos abandonar o tratado, deixando o caminho livre ao prosseguimento do reforço dos arsenais nucleares, num momento em que o relacionamento EUA-Rússia atravessa um período difícil e Moscovo parece dispor de armas nucleares mais modernas.
No caso dos Estados Unidos, o programa de modernização em curso do seu arsenal nuclear contempla o desenvolvimento e ensaio de bombas atómicas “mais inteligentes, de grande precisão, mais pequenas e furtivas”[xxviii] Tais bombas tenderão a reduzir perigosamente o chamado “limiar nuclear”, ou seja, as circunstâncias em que alguns poderão considerar “aceitável” usar armas nucleares num possível campo de batalha ou mesmo contra alvos não-militares. Esta abordagem voltada para a “miniaturização” conjugada com “excelência operacional” é bem acolhida em certos círculos políticos e militares nos EUA, onde se “pensa no impensável”. Isto é que uma guerra nuclear pode ser ganha justificando um ataque nuclear preventivo contra uma hipotética potência inimiga.
Nesta altura em que nos EUA a Casa Branca é ocupada por alguém com características singulares que, chamando as atenções e suscitando perplexidades, na prática, não se traduzem nem conduzem a mudanças significativas quer dos rumos políticos quer dos objectivos perseguidos pelos grupos dominantes na sociedade americana, tem interesse recordar as palavras de despedida de um outro presidente dirigidas ao povo americano no fim do segundo mandato para que fora eleito. Trata-se de Dwight Eisenhower e as palavras são estas:
“ (A) conjugação de um imenso poderio militar com uma grande indústria de armas é nova na experiência americana. A sua influência conjunta- económica, política e até espiritual – é sentida em todas as cidades, nas capitais de todos os estados, em todos as estruturas do governo federal. Reconhecemos a necessidade imperativa desse desenvolvimento. No entanto, não devemos deixar de compreender as suas graves implicações. O nosso trabalho, os nossos recursos e meios de subsistência estão todos envolvidos; e, assim, a própria estrutura da nossa sociedade.
Nos órgãos consultivos de governo, devemos proteger-nos contra a aquisição pelo complexo industrial militar de influência injustificada, propositada ou não. O potencial para um crescimento desastroso de extravio de poder existe e persistirá.
Nunca devemos deixar que o peso dessa combinação ponha em risco as nossas liberdades ou processos democráticos. Não devemos ter nada por garantido, só um cidadão avisado e conhecedor pode obrigar a fazer conviver de forma adequada as enormes máquinas industriais e militares de defesa com nossos métodos e objectivos pacíficos, para que segurança e liberdade possam prosperar em conjunto.”[xxix]
Este foi o pensamento premonitório de um homem que conhecia bem a sociedade em que se movia.
Cerca de meio século mais tarde um outro homem, distinto economista, professor e político norte-americano, hoje ostracizado pela comunicação social dominante, de seu nome Paul Craig Roberts, escreveu recentemente:
“ A América não pode viver sem um inimigo. Um inimigo é aquilo que leva a financiar a mais importante indústria americana — os gastos militares — e um inimigo é o esteio da segurança nacional que permite manter de pé a nossa torre de babel.”[xxx]
A fechar importa lembrar que em todas as épocas houve gente corajosa, intelectuais destacados, filósofos, pensadores, homens e mulheres de ciência que agiram em defesa da Paz. E houve também figuras da política que colocaram os interesses dos seus povos acima de outros interesses.
François Rabelais, humanista do Renascimento, disse: “Ciência sem consciência mais não é que ruína da alma”.
Frédéric Joliot-Curie que foi o primeiro Presidente do Conselho Mundial da Paz, ensinava em Paris, quando o exército de Hitler ocupava a cidade.
Na França ocupada, o laboratório do professor Joliot-Curie no Collège de France, em pleno centro de Paris, continuava a funcionar, para espanto de muitos. As portas estavam abertas, os alemães podiam entrar e sair, quando entendessem, e à vontade. O que eles não sabiam nem viriam a saber é que nesse mesmo local se preparava a trinitrocelulose, também conhecida por algodão-pólvora, destinada a fazer ir pelos ares os comboios militares alemães. E não estava só. Em mais de uma dezena e meia de outros centros de investigação universitários, em Paris, trabalhava-se no mesmo sentido[xxxi].
São exemplos que é bom ter presente e importará seguir.
_______________________________
[i] “Bioweapons and Bioterrorism: A Review of History and Biological Agents”, Orlando Cenciarelli, Silvia Rea, Mariachiara Carestia, Fabrizio D’Amico, Andrea Malizia, Carlo Bellecci, Pasquale Gaudio, Antonio Gucciardino, Roberto Fiorito, Defence S&T Tech. Bull., 6(2): 111-129, 2013
[ii] Variantes operacionais desta arma foram construídas e instaladas nas décadas de 70 a 90,do século passado. A arma foi abandonada durante a presidência de Donald Reagan em consequência da violenta oposição de movimentos anti-nucleares.
[iii] Imediatamente após os ataques terroristas de Nova Iorque em Setembro de 2001, cria-se uma situação de pânico na Amétrica com uma ameaça biológica. Fomentou-se uma histeria colectiva através do envio de cartas contendo poros de antraz. Isto passou-se cerca de uma semana depois dos ataques ao World Trade Center criando a ilusão de que existiria uma ligação entre os dois acontecimentos. Passados dez anos, em 2011, documentos libertados pelo FBI mostraram que os esporos de antraz tinham sido preparados no US Army Medical Research Institute of Infectious Diseases. (https://www.geopolitica.ru/en/article/pentagons-biological-laboratories-ukraine)
[iv] Ibid.
[v] Ibid.
[vi] Em Julho de 2019, 142 estados ratificaram, aderiram ou acederam ao Protocolo de Genebra, mais recentemente a Colômbia, em 24 de Novembro de 2015.
[vii] Cf. http://www.unog.ch/bwc
[viii] O Estado de Israel não é, notoriamente, parte da Convenção.
[ix] Para melhor esclarecimento veja-se o artigo publicado no site internet da OTC (https://otc.pt/wp/2019/02/22/um-novo-sistema-de-armas-biologicas/)
[x] Ibid.
[xi] https://guardian.ng/features/health/bioweapons-designed-to-kill-only-people-of-particular-race/
[xii] Quer dizer: passível de dupla aplicação
[xiii] O ácido desoxirribonucleico (ADN) é um composto orgânico cujas moléculas contêm as instruções genéticas que coordenam o desenvolvimento e funcionamento de todos os seres vivos e de alguns vírus, e que transmitem as características hereditárias de cada ser vivo.
[xiv] Em 2017, o virologista David Evans conquistou as manchetes quando usou a biologia sintética para recriar o extinto vírus da varíola equina, que está intimamente relacionado com o vírus que causa a varíola, uma doença erradicada em 1980. Cf. “A biotech firm made a smallpox-like virus on purpose. Nobody seems to care”, Gregory D. Koblentz, The Bulletin of Atomic Scientists , February 21, 2020
[xv] “Inoculating science against potential pandemics and information hazards”, Kevin M. Esvelt , PLOS, October 4, 2018 (https://doi.org/10.1371/journal.ppat.1007286)
[xvi] “Weapons Labs Biological Research Raises Concerns”, Jeremy Patterson, Arms Control Today, Vol.38, March 2008 (https://www.armscontrol.org/act/2008-03/weapons-labs-biological-research-raises-concerns)
[xvii] Declaração do Ministro dos Negócios Estrangeiros, RT-News, Jun 11 2015, (https://on.rt.com/g6nx37)
[xviii] Russian Defense Ministry Press Service Via Associated Press, citado no The Star Advertiser: “Russia claims U.S. running secret bioweapons lab in Europe”, Oct. 4, 2018
[xix] Cf. “The Russian disinformation attack that poses a biological danger”, Filippa Lentzos, The Bulletin of Atomic Scientists, November 19, 2018
[xx] RT-News, February 28, 2018 (https://on.rt.com/903c)
[xxi] https://www.osentinela.org/author/larry-romanoff/
[xxii] https://archive.org/stream/RebuildingAmericasDefenses/RebuildingAmericasDefenses_djvu.txt
[xxiii] “The Pentagon Bio-weapons”, Dilyana Gavtandzhieva, April 29, 2018 http://dilyana.bg/the-pentagon-bio-weapons/
[xxiv] Dresden e Tóquio foram alvo de bombardeamentos “convencionais”.
Tóquio foi alvo de bombas incendiárias e de fragmentação em 25 de Fevereiro de 1945, quando 174 aeronaves B-29 atacaram a alta atitude durante o dia e destruíram cerca de 260 hectares da cidade.
O bombardeamento de Dresden foi uma acção conjugada da Royal Air Force (Reino Unido) e da Força Aérea dos Estados Unidos. Em quatro ataques-surpresa, 1 300 bombardeiros pesados lançaram mais de 3 900 toneladas de dispositivos incendiários e bombas altamente explosivas na cidade capital do estado alemão de Saxónia. A tempestade de fogo resultante destruiu 39 km quadrados do centro da cidade.
[xxv] O facto de se encontrarem em armazém significa que não poderão ser utilizadas num espaço de tempo tão curto como as armas operacionais. No caso destas, quinze minutos serão suficientes para as accionar após um alerta confirmado.
[xxvi] O tratado limita o número de ogivas nucleares estratégicas operacionais a 1.550, o que representa quase dois terços do tratado START original, além de 10% abaixo do limite de ogivas estratégicas operacionais do Tratado de Moscovo de 2002. Também limita também o número de lançadores de mísseis balísticos intercontinentais (ICBM) operacionais e não operacionais, lançadores de mísseis balísticos a partir de submarinos (SLBM) e bombardeiros pesados equipados para transportar armamento nuclear a 800.
[xxvii] “What Happens If the Last Nuclear Arms Control Treaty Expires ?”, Pranay Vaddi, Nicholas Blanchette, Garrett Hinck, Carnegie Endowment for International Peace, September 05, 2019 (https://carnegieendowment.org/2019/09/05/what-happens-if-last-nuclear-arms-control-treaty-expires-pub-79782)
[xxviii] Furtivas: de difícil detecção em voo
[xxix] “Transcript of President Dwight D. Eisenhowers Farewell Address (1961)” (https://www.ourdocuments.gov/print_friendly.php?flash=false&page=transcript&doc=90&title=Transcript+of+President+Dwight+D.+Eisenhowers+Farewell+Address+%281961%29)
[xxx] https://www.paulcraigroberts.org/2020/05/17/china/
[xxxi] Cf. https://otc.pt/wp/2019/05/25/ciencia-e-liberdade/