ÁGUA, ENERGIA ELÉCTRICA E TELECOMUNICAÇÕES
QUE GARANTIAS DE ACESSO EM PORTUGAL EM 2020?
João Bau
Investigador-Coordenador do LNEC (aposentado), Presidente da EPAL (Empresa Portuguesa das Águas Livres) nos períodos 1975-1980 e 1996-2000, Administrador da AdP-Águas de Portugal no período 1996-2002, Presidente da Associação Portuguesa dos Recursos Hídricos (APRH) no período 1990-1992, Presidente da Associação Portuguesa de Distribuição e Drenagem de Águas (APDA) no período 2000-2003, Membro do “Board” da IWRA no período 1986-1988, Membro do “Board” da EUREAU no período 2000-2003, Membro do Conselho Fiscal da OTC (Organização dos Trabalhadores Científicos)
A crise pandémica que atravessamos tornou ainda mais evidente para a vida dos cidadãos a importância de determinados serviços públicos (falo do abastecimento de água e saneamento, da energia eléctrica e das telecomunicações) no Portugal de hoje.
A água, elemento indispensável à vida desde sempre, passou a ser ainda mais importante, pois todos sabemos que temos de “lavar as mãos frequentemente ao longo do dia” e que a água é fundamental para a “desinfecção doméstica”.
No que respeita à saúde sabemos todos que, se tivermos sintomas que nos levem a suspeitar de que possamos estar contaminados, não devemos começar por ir a um hospital mas sim por contactar o SNS (Serviço Nacional de Saúde) via linha telefónica SNS24. E sabemos ainda que bem mais de 80% dos doentes com COVID19 permanecem no seu domicílio apoiados via chamadas telefónicas ou via videochamadas por pessoal especializado dos serviços de saúde. Até para doentes não-COVID o recurso à telemedicina tem vindo a ser utilizado pelo SNS e pelo sector privado. Dizem os especialistas que a telemedicina veio para ficar, não para dispensar a insubstituível ligação presencial médico/doente mas para ocupar um espaço que provavelmente vai crescer com o tempo. E portanto o acesso ao serviço telefónico, à internet e à energia eléctrica tornou-se crucial.
Também neste momento, e durante um período de tempo que não é possível estimar, o acesso à escola pública faz-se com recurso ao ensino à distância e passa de facto pela disponibilidade de acesso à internet ou, no mínimo no que respeita à “oferta educativa complementar” ministrada num dos canais da RTP, pelo acesso à televisão. E, no futuro, é bem possível que, sem prescindir da insubstituível ligação presencial professor/aluno, o recurso às tecnologias da informação seja cada vez mais utilizado pelas escolas, o que será até potenciado pela experiência que estamos a viver. Acresce que o Primeiro-ministro já apontou como objectivo garantir que no próximo ano lectivo todos os estudantes tenham ligação por via informática às suas escolas, o que exige que cada um deles disponha de um computador, mas também que todos eles disponham em suas casas de energia eléctrica e de ligação à internet.
Ora, durante este período de pandemia, considerou-se que o fornecimento de serviços de abastecimento de água e saneamento, de energia eléctrica e de telecomunicações não deviam deixar de ser prestado a quem, por razões económicas, não tivesse disponibilidade financeira para pagar os seus custos. De tal maneira que a Assembleia da República aprovou legislação que proibiu aos operadores o corte do fornecimento de qualquer desses serviços por falta de pagamento, durante o período de estado de emergência acrescido de um mês. Ora este período de tempo cessou em 2 de Junho passado. E a partir dessa data enfrentamos uma situação social preocupante, com muitos desempregados, parte dos quais não sairão dessa situação a curto ou médio prazo, e ainda com muitos trabalhadores em regime de lay-off, que não terão capacidade financeira para satisfazer os seus compromissos habituais acrescidos do pagamento (ainda que faseado) das importâncias correspondentes às facturas não pagas. Ora se durante o período de tempo atrás referido se considerou, e bem, que o fornecimento de serviços de abastecimento de água e saneamento, de energia eléctrica e de telecomunicações não deve deixar de ser prestado a quem, por razões económicas, não tem disponibilidade financeira para pagar os seus custos, será aceitável que se não aplique o mesmo princípio depois de 2 de Junho? Dever-se-á então considerar que existe “um direito” ao fornecimento desses serviços?
Debrucemo-nos sobre a questão colocada. Ora, relativamente ao primeiro dos serviços referidos, a ONU já reconheceu em 2010 “o direito à água potável e ao saneamento como um direito fundamental para o pleno disfrute da vida e de todos os direitos humanos”, pelo que a garantia do seu acesso por parte de todos, independentemente da sua capacidade financeira, deve ser assegurada pelos Estados. Passados dez anos dessa decisão das Nações Unidas está na altura de introduzirmos no nosso ordenamento jurídico o reconhecimento do “direito à água” e de criarmos os mecanismos de que garantam, de facto, tal direito. Já quanto aos serviços de electricidade e de telecomunicações eles são de natureza bem diferente do serviço de abastecimento de água (a água é um bem diferente de todos os outros, essencial para a vida e saúde do Homem) e é muito duvidoso que possamos considerar o acesso a tais serviços como direitos humanos. Mas a realidade dos factos, aqui e agora, revela que o pleno acesso a dois pilares no nosso Estado Social, a escola pública e o SNS, exigem não só a disponibilidade de dispositivos como os telefones e os computadores como também o acesso aos serviços de fornecimento de electricidade e de telecomunicações. Ou seja, nestes tempos de hoje (e no futuro próximo) o acesso a tais serviços é cada vez mais necessário ao usufruto da escola pública e do SNS, que eles sim são garantia de direitos humanos (os direitos à saúde e à educação). Pelo que defendo que sejam estudados com urgência mecanismos de garantia do acesso universal a um “fornecimento suficiente” também dos serviços de electricidade e dos serviços de telecomunicações.
Se considerarmos que deve ser garantido o acesso a tais serviços qual será o seu conteúdo, qual será o “fornecimento suficiente”, quais serão os seus limites? Centrarei no essencial a minha resposta no abastecimento de água, pois é a área em que desenvolvi mais trabalho de estudo e reflexão. Tenho defendido que para países desenvolvidos como Portugal ele deve ser, no mínimo, de 50 litros per capita e por dia, o valor que a OMS considera garantir as necessidades básicas de higiene e consumo. E que, portanto, um 1º escalão do sistema tarifário que contemple este consumo vital deverá ser de 1,5 m3 por pessoa e por mês. Mas numa situação como a que vivemos, em que as autoridades de saúde recomendam aos cidadãos medidas excepcionais de higiene pessoal e doméstica que implicam consumos adicionais de água, recomendaria que se considerasse o referido consumo vital como sendo no mínimo de 2 m3 por pessoa e por mês. Seria útil que para os outros serviços públicos que referi, o de fornecimento de energia eléctrica e o de telecomunicações fosse feita, não por mim mas por quem tenha competência para tal, uma análise específica para cada um deles, que permitisse definir o que seria o “fornecimento suficiente” que, em Portugal e em 2020, se consideraria que seria necessário e razoável assegurar. No que toca ao serviço de telecomunicações talvez fosse interessante definir um “pacote mínimo TV+internet+voz” (em que o serviço mínimo de TV se limitasse aos 7 canais de acesso livre, que incluiria portanto o canal onde é ministrada a telescola).
Resta abordar uma questão central que é a do financiamento da garantia do acesso aos serviços em causa. A solução não poderá continuar a ser a da mera proibição do corte do serviço pelos operadores, com o concomitante progressivo agravamento da dívida por parte dos consumidores sem capacidade financeira, dívida essa que tenderia a atingir valores que a tornariam de facto impagável. A solução poderá consistir na adopção de duas medidas. A primeira consistiria em fixar para consumos vitais ou básicos tarifas que as tornem economicamente mais acessíveis, por via de mecanismos de subsidiação cruzada (algo que já ocorre com os primeiros escalões dos tarifários de água, electricidade ou gás) e/ou da criação de “tarifários sociais”, aplicáveis apenas a cidadãos consumidores em situação de comprovada fragilidade económica. A segunda medida, que seria complementar da primeira, será a indispensável organização dos mecanismos de solidariedade que permitam financiar a garantia do direito ao acesso aos serviços atrás referidos (durante o período de tempo estritamente necessário) àqueles que comprovadamente não têm recursos para os pagar mesmo que facturados com tarifários sociais ou mais acessíveis. Foram construídos na Europa diversos mecanismos de solidariedade deste tipo. Uns, como em França, funcionaram a nível departamental e com base em transferências do orçamento social, ou seja, são financiados pelos contribuintes. Outros, como na Bélgica no caso da água, são suportados pelos consumidores. Soluções com financiamentos mistos são obviamente referidas.
Quanto à água e saneamento convém recordar que a prestação de tais serviços é da responsabilidade dos municípios, que os tarifários são progressivos e que em muitos deles são já praticados tarifários sociais com âmbito e conteúdos bastante diversificados. Passados dez anos do reconhecimento pela ONU do “direito à água e ao saneamento” como direito humano urge contudo dar conteúdo efectivo a tal direito e criar o tal “mecanismo de solidariedade” adicional por forma a garantir que, de facto, ninguém fica privado de acesso à água potável por razões financeiras. As soluções praticadas na Bélgica merecem ser analisadas. Seja a solução adoptada na Flandres, com o fornecimento gratuito a todos os cidadãos de um consumo vital anual de 15 m3 (que fica portanto fora da esfera mercantil), sejam as soluções adoptadas na Valónia ou em Bruxelas, que não contemplam o fornecimento universal de qualquer volume de água gratuito, mas o pagamento de um volume vital de água a quem não tiver condições para o suportar. É criado um Fundo de Solidariedade que é alimentado pela introdução, no sistema tarifário dos serviços de água, de uma pequena parcela solidária por m3 de água. Em Portugal outros mecanismos poderiam ser ainda criados, tais como, por exemplo, o estabelecimento de um imposto sobre a água mineral engarrafada.
Quanto à electricidade foi um importante passo em frente a existência de tarifas sociais de aplicação automática (com custos suportados pelos operadores) a cidadãos que beneficiem de determinadas prestações sociais com condição de recurso, ou seja, prestações cuja concessão vai sendo controlada por forma a garantir que o agregado familiar beneficiário vai satisfazendo o conjunto de condições estabelecidas para a sua atribuição. Passo em frente que faltaria complementar com a criação de um mecanismo de financiamento do “fornecimento suficiente” daqueles que durante um determinado período de tempo não têm condições financeiras para suportar total ou parcialmente os custos dos serviços, mesmo com a aplicação das tarifas sociais.
Quanto aos serviços de telecomunicações seria interessante definir um “Pacote mínimo” de serviços de TV+internet+voz e criar para ele uma tarifa social aplicável apenas a cidadãos consumidores em situação de comprovada fragilidade económica, de preferência em condições idênticas às actualmente vigentes para a electricidade, ou seja, com aplicação automática da tarifa social aos cidadãos que beneficiem de determinadas prestações sociais com condição de recurso (e com os respectivos custos a serem suportados pelos operadores). Em seguida complementar esta medida pela criação de um mecanismo de financiamento para aqueles que não têm condições financeiras para suportar (total ou parcialmente) os custos do serviço, mesmo com a aplicação da tarifa social.
A proposta que apresento tem como objectivo suscitar um debate necessário. Tem uma indiscutível dimensão social (assegurar que numa situação social difícil e complexa todos, independentemente da sua situação económica, tenham garantido o acesso a serviços básicos), o que por si só a justificaria. Mas tem também uma dimensão de salvaguarda da saúde pública, com a viabilização de medidas de combate à COVID recomendadas pela DGS, pois todos sabemos que enquanto houver pessoas doentes estamos todos em risco.
12 de Junho de 2020