
A necessidade da Ciência Aberta na era da pandemia
A pandemia de COVID19 lançou uma nova luz sobre a necessidade de cooperação científica para enfrentar os novos desafios e preparar o caminho para a recuperação. Cientistas partilharam conhecimentos sobre o coronavírus, começando com a descodificação do seu genoma por cientistas chineses que colocaram as suas descobertas à disposição da comunidade científica, seguidos pelos seus homólogos alemães e muitos outros.
A declaração do ICOLC (The International Coalition of Library Consortia) que trata do impacto da pandemia nos serviços e recursos das bibliotecas[i] foi outro passo em direcção à Ciência Aberta: incluiu um apelo aos editores para “colocar imediatamente no regime de Acesso Aberto (Open Access) todo o conteúdo relevante e conjuntos de dados, sobre COVID-19, Coronavírus […] vacinas, medicamentos antivirais, etc., que actualmente exigem assinaturas pagas” a fim de facilitar e acelerar a investigação. O “Apelo à acção Solidária” [ii] da OMS, lançado na sequência da Assembleia Geral da OMS, em 29 de Maio, incitou todas as partes interessadas relevantes, em primeiro lugar os governos, a “fazer da resposta ao COVID19 um bem público comum”, através da partilha de conhecimentos e dados, mas também, e mais importante, da propriedade intelectual e da tecnologia de saúde relevante. Esta convocatória teve como objectivo salientar a superior necessidade do acesso universal a tratamentos e vacinas, sublinhar o direito à saúde como um direito humano universal, e apontar “a falência das formas tradicionais de trabalhar quando está em causa a igualdade de acesso a tecnologias essenciais de saúde”.
Infelizmente, a emergência pandémica incentivou a competição e também a comunicação “star system” entre grandes empresas e cientistas alegadamente proeminentes. As empresas farmacêuticas multinacionais opuseram-se a abrir mão de dados e de propriedade intelectual, pretendendo que fazê-lo seria prejudicial à inovação. Comunicações “científicas” através de redes sociais como o YouTube, apoiadas por petições da “sociedade civil”, visaram contornar o processo de validação usual assente na revisão por pares e na reprodutibilidade. Nenhum país do G7 ou do G20 endossou o apelo da OMS. Além disso, o governo Trump decidiu cortar o financiamento americano da OMS, considerando que a organização estava a dar cobertura à responsabilidade chinesa pela disseminação do vírus. Ao mesmo tempo, os Estados Unidos procuraram obter direitos exclusivos sobre a vacina que viesse a surgir, antecipando-se a patentes, para evitar que outros tivessem acesso a investigação com ela relacionada.
Como cientistas e cidadãos comprometidos com a paz e a cooperação, denunciamos firmemente as acima mencionadas tentativas de minar a razão científica, comprometer o conhecimento e criar monopólios para maximizar lucros. A Ciência Aberta é a única maneira de repor a confiança entre a ciência e a sociedade: é de extrema importância para promover a literacia científica para todos e, assim, silenciar o obscurantismo, a anti ciência, bem como o controlo sobre o conhecimento e os resultados científicos em benefício dos interesses capitalistas no mercado global.
Apoiar a Ciência Aberta em teoria, não é garantia de compromisso com a sua implementação na prática. Exortamos os governos a endossar o apelo da OMS, aumentar de forma sustentada o financiamento público da investigação científica, promover a justiça, a confiabilidade, a integridade científica e os padrões éticos. É chegada a hora de nos juntarmos à UNESCO com vista a ganhar impulso e acelerar a preparação da recomendação sobre Ciência Aberta, cuja implementação deve ser obrigatória. Esta é a única maneira de a ciência, a sociedade e a democracia prosperarem no mundo vulnerável, pós-pandémico.
14 de Setembro de 2020
[i] https://icolc.net/statement/statement-global-covid-19-pandemic-and-its-impact-library-services-and-resources
[ii] https://www.who.int/emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019/global-research-on-novel-coronavirus-2019-ncov/covid-19-technology-access-pool/solidarity-call-to-action