RÓMULO DE CARVALHO
Lembrando o Professor no Dia Nacional da Cultura Científica
Ocorreu-nos lembrar neste 24 de Novembro, Dia Nacional da Cultura Científica, duas obras porventura menos conhecidas do seu patrono — se me é permitido o termo — o Professor Rómulo de Carvalho.
Distinguiu-se, o professor, na elaboração de compêndios e outros textos didácticos, destinados sobretudo ao então designado ensino liceal. Nem todos viram a luz do dia passando por vicissitudes diversas de algum modo ligadas ao sistema do chamado “livro único” que vigorou durante longos anos no período do salazarismo. A Física e, sobretudo, a Química foram os domínios de conhecimento, no que respeita ao ensino formal e à didáctica, em que Rómulo de Carvalho mais se aplicou. O “Compêndio de Química para o 3º ciclo” dos liceus, publicado em 1951, terá sido o mais destacado desse período pela forma como foi recebido e a utilização que lhe foi dada por aqueles a quem se destinava, durante pelo menos uma década. O “Compêndio” fora de facto publicado já um ano antes, em regime livre custeado pelo autor, com o título “Lições de Química para o 3º ciclo”. No regime do “livro único” o autor apresentava a obra a concurso aberto pelo Ministério da Educação. Assim aconteceu com o “Compêndio” admitindo o autor que a alteração do nome fosse resultado de uma a exigência do regulamento do concurso. Tem interesse citar o que nos diz Rómulo de Carvalho a propósito do “livro único”: “O sistema dos livros únicos foi, relativamente a certas disciplinas, uma premeditada violência do regime ditatorial que então se estabelecera entre nós.” E acrescenta: “O fundo da questão (…) era de natureza política. Visava-se, com a escolha do livro único, impor as doutrinas que convinham ao Estado por intermédio dos compêndios de certas disciplinas, particularmente, de História, de Filosofia, de Português e de Organização Política” [i].
No mesmo referido ano de 1950 publicara Rómulo de Carvalho um manual com o título “Trabalhos Práticos de Química”, destinado, como o compêndio de química, ao 3º ciclo do ensino liceal. Trata-se aqui, naturalmente, de uma obra de características distintas que terá sido, pensamos nós, fruto do constante e profundo desejo do autor de contribuir para o entendimento da natureza, dos métodos e da disciplina que se exige do trabalho científico mais do que do simples conhecimento de factos, tantas vezes apenas entrevistos, de leis ou equações simplesmente decoradas. Era, poderia dizer-se, no domínio das ciências da natureza a formação integral da jovem ou do jovem educando que procurava.
O “Guia de Trabalhos Práticos de Química” viria a ter, nas palavras do autor, “um longo futuro”, e teve-o realmente. Entre 1957 e 1974 foi reeditado 13 vezes, alcançando uma tiragem total de 80 mil exemplares, naturalmente, com as adaptações que as alterações dos programas oficiais foram exigindo. De notar que os manuais de trabalhos práticos, sujeitos embora no seu conteúdo aos programas oficiais, não eram abrangidos pelo sistema do “livro único”, dando assim uma outra margem de liberdade ao autor na elaboração da obra[ii].
O Guia está dividido em três partes. A abrir, encontramos informações gerais sobre interesse e sentido do trabalho prático no laboratório de Química, os utensílios e materiais usados e cuidados a ter no seu manuseamento. Seguem-se os capítulos em que cada um dos trabalhos a realizar é apresentado com o pormenor considerado necessário pelo autor. O primeiro diz respeito ao 6º ano de escolaridade, seguindo-se-lhe o que respeita ao 7º ano.
As imagens seguintes são a reprodução das páginas iniciais da “Introdução” que surge a abrir a primeira parte do “Guia de Trabalhos Práticos de Química” de Rómulo de Carvalho:
Em fins da década de 50, Rómulo de Carvalho dá a público uma outra obra menos conhecida que, em certo sentido, se insere na linha da anterior — o Guia de Trabalhos Práticos de Química — também de natureza distinta, embora com o mesmo universo de destinatários, daquela em que se insere a parte principal da sua vasta obra de livros didácticos destinados ao ensino formal, administrado nos então liceus (depois, escolas do Ensino Secundário), que se estende no tempo até ao início dos anos 80[iii]. Trata-se do livro “Problemas de Física para o 3º Ciclo do ensino liceal”, em dois volumes.
Também aqui se destaca o mesmo empenho em dar aos jovens a oportunidade de ganhar consciência da natureza específica do conhecimento científico, do sentido, neste caso, das leis da Física, do significado das grandezas físicas e de como se deve trabalhar com a sua expressão numérica.
Estes “Problemas de Física” têm também um capítulo introdutório extenso (são 45 páginas) de extraordinário mérito no plano didáctico, a nosso ver, que mereceria atenta leitura de quem se propusesse utilizar a obra para se desembaraçar na resolução dos problemas que se seguem e que, neste primeiro volume, que temos nas mãos, são em número de 617. O problema é enunciado e a resposta dada no fim (em regra um valor numérico seguido da unidade física). O problema não é resolvido no livro. Deixa-se esse trabalho à ou ao estudante que o utiliza.
O autor, é claro, resolveu todos os problemas e não terá sido leve o esforço que a tarefa implicou.
O parágrafo que encerra esse capítulo introdutório da obra deixa-o entender, apontando ao mesmo tempo para a possível existência de erros a corrigir no futuro: “Redigir o enunciado de seiscentas e tantas questões e resolver quase outros tantos problemas, é uma ocupação excessivamente enfadonha e própria para conduzir a erros. O professor (falamos em nome pessoal, é claro) é capaz de cometer erros tão inesperados como qualquer aluno e dizer três vezes seguidas que nove vezes sete são cincoenta e oito. O uso deste livro, paulatinamente, durante um ano lectivo, e o auxílio de todas as pessoas que virem neste trabalho algum mérito, permitirão que, numa edição futura, se corrijam os defeitos desta.”
No referido capítulo introdutório a que o autor deu o título “Acerca da resolução de problemas de física”, chama a atenção para os inconvenientes de orientar predominantemente a formação que é dada à ou ao estudante, no sentido de que venha a ser bem sucedido no exame que terá à sua frente. Diz Rómulo de Carvalho:
“É sabido que, a despeito da teimosia de uma heróica falange de idealistas que procura valorizar a intenção formativa do ensino liceal, há uma tendência, cada vez mais acentuada, para que toda a actividade mental suscitada, nos estudantes, durante aquele grau de ensino, seja dirigida para o fim único, e último, de se ficar aprovado num exame. No que respeita à Física, uma das preocupações mais agudas para se conseguir aquele êxito é a de os alunos se prepararem para a resolução de problemas, pois é certo e sabido que os pontos escritos que sairão no exame hão-de trazer alguns para resolver”.
Trata-se de um erro do qual, salvo melhor opinião, se padecerá ainda hoje. Mais à frente diz-nos o Professor:
“Com o fim louvável de contribuir para a almejada vitória dos exames já se têm publicado livros de problemas de Física exactamente elaborados dentro deste espirito, nos quais se apresentam, como modelos, os enunciados de problemas sobre os assuntos mais correntes, seguidos de meia dúzia de outros que se catalogam como pertencentes ao modelo número tal, e que diferem dele nos dados numéricos ou nas grandezas cujos valores servem de incógnita.
Existem até curiosas mnemónicas, que fulguram na bagagem académica dos rapazes do ensino liceal, e que mereciam ficar perpetuadas na historia do ensino da Física, beneméritos auxílios para o êxito das provas escritas, como, por exemplo, a força é má, para que os alunos se recordem que F = ma; o trabalho é fé, para que se recordem que W = Fe, ou então a famigerada fórmula da pevide para lembrar, alias incorrectamente, que P = vd ”.
Rómulo de Carvalho sublinha o seu entendimento de que o sucesso em Física não depende da insistência na resolução “automática” de problemas-tipo que leva à substituição de letras ou números por outros números ou letras, assente na realização de operações matemáticas: “Do que depende é do conhecimento teórico do assunto a que se refere o problema. O estudante só tem um caminho a seguir para saber resolver problemas de Física: é estudar o texto teórico, estudá-lo conscienciosamente, discuti-lo, compreendê-lo, senti-lo. O resto virá por acréscimo. Se tiver capacidade para entender o assunto e para o especular teoricamente, tem o seu caso resolvido. Se não possuir essa capacidade nem tiver possibilidades de a criar ou desenvolver, tudo então será inútil.”
O conhecimento seguro da teoria do assunto a que se refere o problema, diz-nos, é uma, mas uma apenas, “segundo a nossa maneira de ver”, das habilitações necessárias para bem resolver um problema de Física. Outra condição fundamental a que dá relevo diz respeito ao “conhecimento seguro dos sistemas de unidades físicas”. A este respeito diz-nos o seguinte: “
“A definição das unidades físicas é, realmente, a pedra de toque do valor do estudante de Física. Um estudante que saiba definir, com consciência — o que logo se percebe — umas tantas unidades físicas e que saiba estabelecer as suas relações numericamente, pode não saber mais nada, desconhecer por completo todo o programa, mas isso é o bastante para poder ser considerado como um bom estudante de Física. Demonstra que, quando se dispuser a isso, saberá tudo o mais com igual consciência. Tal é a excepcional importância do conhecimento das unidades em Física.”
Como sabemos, as relações entre a Matemática e a Física são íntimas. Ao nível do ensino liceal a importância dessas relações, da Física, “filha dilecta da Matemática”, como Rómulo de Carvalho um dia escreveu, assume particular relevo. Entre as habilitações necessárias para bem resolver um problema de Física, está — diz-nos o Professor, nos seus “Problemas de Física”— “saber interpretar, fisicamente, o resultado final das operações numéricas” e chama a atenção para o seguinte:
“Efectuar uma operação numérica em Física não é o mesmo que efectuá-la em Matemática. É necessário, e urgente, que os estudantes de Física saibam isto, que saibam que a Matemática opera com números e que a Física opera com valores de grandezas. Esta simples restrição modifica, por completo, não só a atitude de espírito de quem efectua a operação como o próprio resultado numérico da operação. Em Física não se soma, não se subtrai, não se multiplica, não se divide da mesma maneira do que em Matemática. Os métodos usados têm as suas regras especiais, devidamente fundamentadas. A ignorância, ou o desprezo, destas regras conduz a disparatadíssimas consequências e inutiliza uma das possibilidades de maior valor educativo do ensino da Física”.
Os cuidados com a linguagem são outra das preocupações de Rómulo de Carvalho, em campo aliás bem mais vasto do que aquele aqui tratado na obra de que nos vimos ocupando. Sempre foi ao longo da vida uma das suas facetas marcantes no plano intelectual.
Aqui, tratava-se da Física e da sua aprendizagem, e a esse respeito diz-nos o seguinte:
“Não é esta a ocasião própria para desenvolvermos um outro assunto, no domínio do ensino da Física, a que damos grande relevo: o dos cuidados com a linguagem em que se exprimem os factos dessa Ciência. Há, entretanto, um mínimo a que faremos referencia neste momento.
No enunciado dos problemas deste livro encontram-se algumas incorrecções de expressão científica. Não nos parece próprio exigir dos estudantes do 3.° ciclo, logo no inicio do seu 6.° ano, uma compreensão dos fenómenos físicos e do espirito da Física tão bem construída que lhes seja possível, conscienciosamente, empregar uma linguagem cientifica definitiva. Podemos, certamente, fazê-los repetir frases a nosso gosto mas sem a consciência do seu conteúdo. Isso não deve interessar ao professor.
É pensando neste aspecto que escrevemos (e mal) frases como esta: «um corpo descreve uma circunferência», etc., quando é evidente que um corpo não pode descrever uma circunferência. Estas e outras frases, igualmente incorrectas, são também uma pequena concessão feita aos estudantes, em geral, e que, para os nossos próprios alunos, tem a sua oportuna compensação.”
Estas notas, que terminam aqui, foram escritas com o propósito de assinalar a existência de duas obras singulares de particular mérito didáctico, que cremos serem pouco conhecidas. Julgamos ser oportuno fazê-lo neste dia 24 de Novembro, “Dia Nacional da Cultura Científica”, em que passa o centésimo décimo quarto aniversário do nascimento de Rómulo de Carvalho, seu autor.
Frederico Carvalho
24 de Novembro de 2020
[i] Rómulo de Carvalho, “Memórias”, pp. 216 e 217, ed. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2010
[ii] Em tudo o que se segue, relativamente a este “Guia”, seguimos a edição de 1957 (ed. “Atlântida”, Coimbra)
[iii] Entre 1974 e 1980, já na situação de reforma, publicou em co-autoria com um grupo de seis colegas por si constituído, um compêndio de Física para o Curso Complementar de Ciências do ensino secundário, em três volumes, respeitantes ao 10º, ao 11º e ao 12º anos desse curso.