NOTA PRÉVIA
A OTC foi solicitada pelo Presidente da Comissão Parlamentar de Educação, Ciência, Juventude e Desporto da Assembleia da República, Deputado Firmino Marques, no sentido de se pronunciar sobre o conteúdo da Petição com o título “Por um investimento urgente em Ciência em Portugal”, em apreciação na referida comissão. A solicitação é feita ao abrigo do disposto na alínea c) do n.º 3 do artigo 17.º, conjugado com o artigo 20.º da Lei do Exercício do Direito de Petição, conforme texto republicado em anexo à Lei n.º 51/2017, de 13 de Julho, acrescentando-se que o cumprimento do solicitado deve ter lugar no prazo máximo de 20 dias. A solicitação, recebida a 22 de Fevereiro último, foi respondida em 9 do corrente mês de Março. O texto da Petição pode ser lido aqui e encontra-se também, tal como o texto do Parecer da OTC, na página internet do Parlamento.
(https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalhePeticao.aspx?BID=13547)
Parecer sobre a Petição Nº 179/XIV/2.ª
“Por um investimento urgente em Ciência em Portugal”
em apreciação na Comissão Parlamentar de Educação, Ciência, Juventude e Desporto
1. Entendemos as preocupações dos signatários da Petição em causa, comuns, de resto, a uma larga maioria dos membros da comunidade científica nacional, preocupações que, naturalmente, partilhamos. No que respeita ao investimento em ciência, reflectido nos números da chamada DIDE ou despesa em “investigação e desenvolvimento experimental” a comparação dos valores respeitantes a Portugal com os correspondentes valores em outros países da União Europeia ou com a média da UE a 27, é reveladora da situação que se vive entre nós. Um indicador particularmente significativo é dado pela despesa per capita de investigador ETI (Equivalente a Tempo Integral). Para Portugal, de acordo com os números oficiais disponíveis mais recentes, esse indicador, para o sector não-empresarial, é próximo de 46 mil euros por ano. Na média da UE a 27, o mesmo índice, é de 126 mil euros. Assim, para atingirmos, entre nós, valor igual ao daquela média no que respeita à despesa-investimento em I&DE por investigador em tempo integral, no sector não empresarial, haveria que aumentar desenvolvimento em cerca de 2500 milhões de euros. Ou seja quase triplicar o montante correntemente atribuído àquelas actividades.
Acresce que a situação traduzida pelo referido indicador tem vindo a degradar-se no decurso dos últimos 10 anos consequência natural do facto de as dotações orçamentais afectas ao sector da I&DE não terem acompanhado o crescimento dos efectivos de pessoal investigador.
De notar, ainda neste contexto, em que se atende à despesa per capita de investigador ETI, se se tomar a parcela da despesa correspondente a custos salariais (“labour costs”), o valor para Portugal, tomando dados de 2018, em Paridade de Poder de Compra, é, no sector não empresarial, inferior a metade do correspondente valor para a vizinha Espanha — 28,4 milhares de euros/ano contra 55,6 k€ — e quase um quarto do mesmo valor para a França onde esse valor é 97,3 k€/ano. Entendemos que este desequilíbrio não se deve tanto à desigualdade de remunerações do pessoal investigador como à enorme escassez de pessoal técnico de apoio à investigação que é uma das mais sérias deficiências do nosso Sistema Nacional de Ciência e Tecnologia.
De notar, finalmente, que quando se toma como indicador o valor da despesa em I&D em percentagem do PIB, importa não esquecer que em Portugal o produto interno bruto per capita referido à população é dos mais baixos da UE a 27 mas as exigências financeiras do sector da I&DE não se compadecem desse facto. Pode acontecer até que a quebra do PIB em consequência da actual situação sanitária que nos aflige leve a uma melhoria desse indicador se porventura o orçamento do Estado mantiver o nível de financiamento das actividades de I&DE.
OBS. Todos os números apresentados acima foram colhidos nas Bases de Dados do EUROSTAT
(https://ec.europa.eu/eurostat/web/science-technology-innovation/overview)
2. Está assim esboçada a descrição da frágil situação financeira e posição relativa do nosso país no quadro europeu, no que respeita ao investimento em actividades de I&DE em Portugal. A necessidade de considerável acréscimo dos meios financeiros atribuídos ao sector é indesmentível se se quiser tirar todo o partido possível dos recursos humanos de comprovada alta qualidade de que hoje o país dispõe.
Não é porém essa a única questão nem porventura a mais gravosa para a desejável melhoria do desempenho do Sistema Público de Ciência, Tecnologia e Inovação, instrumento indispensável e insubstituível de desenvolvimento do País, estímulo à economia e consequente melhoria das condições de vida e trabalho da população. A questão está nas políticas de gestão, sistémicas, a nosso ver erradas, que de há muito vêm sendo prosseguidas, ignorando outros caminhos que reúnem largo consenso no seio da comunidade científica.
O sistema que está montado há quase trinta anos, para o financiamento das actividades de I&DE, assente quase exclusivamente na candidatura a concursos de projectos de investigação, não precisa de ser exercido mais energicamente, antes precisa de correcções no conceito e na prática. O reforço em meios é necessário, mas não pela multiplicação de bolsas ou projectos liderados a prazo (como as antigas bolsas e centros da Junta Nacional de Educação dos anos 30 em diante). Antes sim no reforço de meios para I&DE das instituições de acolhimento – Universidades, Laboratórios do Estado, Hospitais Escolares, Institutos com missões de conteúdo científico, …). Aí sim, o reforço de meios para melhor cumprimento das suas missões (que implicitamente definem uma política científica mal assumida), e reforço de meios para acolhimento de jovens investigadores e projectos consistentes com a missão daquelas instituições. Se queremos investigação espacial, por exemplo, não vamos financiar dezenas de projectos em concurso nesse domínio, mas sim uma instituição que tenha esse objectivo na sua missão. Tal como está, a Fundação para a Ciência e a Tecnologia (ou outra instituição equivalente com o mesmo ou com outro nome) gere meios para tudo mas não tem competência nem é reconhecida em nenhum domínio pelo qual pode até ser formalmente responsável.
A FCT que para muitos é uma entidade opaca, burocrática, distante da comunidade científica e propensa à tomada de decisões arbitrárias, carece de reforma. Não deve também excluir-se a sua substituição por uma ou várias agências públicas de financiamento dirigido a diferentes áreas científicas, como acontece, por exemplo, no Reino Unido onde vigora um sistema dual de financiamento da investigação com uma componente de financiamento de projectos específicos e uma componente de financiamento estrutural (“block grant funding”) que dá às instituições autonomia de decisão na escolha de linhas de investigação. Ao mesmo tempo, aos laboratórios públicos, equivalentes aos nossos Laboratórios do Estado, que actuam em diferentes áreas de conhecimento fundamental e aplicado, é atribuído financiamento estrutural diferenciado e autonomia de decisão sobre projectos de trabalho enquadrados nas missões que lhes estão atribuídas. Esta é também, por norma, a situação que se verifica na generalidade dos países da UE.
Não é demais sublinhar que o modelo actual de financiamento das actividades de I&DE, em Portugal, refém quase exclusivamente do sucesso na aprovação de projectos de investigação submetidos a concursos com regras inconstantes e regulamentação pouco transparente, é incompatível com um financiamento de unidades e centros de investigação, de acordo com critério sérios, no sentido de complementar projectos e recursos humanos. Projectos exploratórios ou outros, justificados, naturalmente, e enquadrados pelas equipas existentes e permitindo renovar infra-estruturas e mantê-las.
3. Não é possível ignorar, no contexto deste Parecer, a questão omnipresente nos múltiplos alertas e tomadas de posição com origem em sectores amplos e dinâmicos da comunidade científica nacional, que, ano após ano, vêm a público: a questão da precariedade laboral que, se é intrinsecamente má, o é ainda mais quando levada ao extremo que se implantou entre nós. Trata-se de uma chaga que afecta a produtividade do trabalho, a vida familiar e a saúde mental dos trabalhadores científicos que a vivem. Também neste plano, o do emprego, são tímidas e enganadoras as medidas legais que se afirma pretenderem combater a precariedade laboral. Não é este o momento nem o lugar certo para aprofundar a análise do problema. Diremos apenas que se levantam três tipos de obstáculos no caminho que poderia levar à solução do problema. Desde logo, um obstáculo de ordem financeira: tratar-se-ia de substituir mão-de-obra barata por outra devidamente remunerada. Em segundo lugar, a transformação de contratos a termo certo pela efectiva integração numa carreira, ainda que não necessariamente com custos adicionais, pelo menos, a médio prazo. Por último o horror às carreiras como reduto seguro de um funcionalismo público, atitude característica do posicionamento neoliberal do “estado mínimo”.
Seria, entretanto, desde já, um avanço, se as instituições e o Estado se comprometessem com os preceitos constantes da Carta Europeia do Investigador e do Código de Conduta para o Recrutamento de Investigadores adoptados pela União Europeia.
4. Os “pedidos” (reivindicações?) adiantados pelos peticionários na parte final do documento que subscrevem, prendem-se no essencial com a política ou regime dos concursos abertos pela FCT, a saber: CEEC-Concursos de Estímulo ao Emprego Científico; e Concursos de Projectos de IC&DT em todos os domínios científicos (Parágrafos finais nºs 1 e 2). Apontam para o reforço dos meios financeiros disponíveis para o efeito, o que é manifestamente correcto, mas sem qualquer sugestão ou proposta de alteração das políticas que lhes subjazem, o risco de que, no essencial, tudo fique na mesma é a mais segura das certezas. Propõem também uma alteração (quantificada) das quotas de aprovação para financiamento de contractos e projectos o que obviamente, vai encalhar na questão financeira. A ausência de qualquer crítica às políticas subjacentes que deveria ser a questão primordial a colocar para uma alteração da situação sofrida, vivida pela comunidade científica, torna esta questão da fixação de quotas pouco significativa, além de que o valor proposto é de algum modo aleatório.
O último ponto considerado (Parágrafo 3º) tem natureza diferente dos anteriores, já no fundo do que aí se pede ou reivindica, já no âmbito temporal da respectiva concretização. Sobre o conteúdo deste ponto, passível de variadas interpretações, interessa dizer que é certamente necessário “definir uma estratégia para a ciência” entendendo nós por isso, finalmente desenhar uma política científica nacional que tenha em conta as necessidades e recursos próprios do nosso país num quadro da indispensável cooperação e intercâmbio de pessoas e conhecimentos com o resto do mundo. Política que não terá, porventura, nunca sido realmente definida, muito menos com a participação da comunidade científica nacional, e que, podendo embora ter como meta a próxima década, deverá, a sua definição, ser para amanhã.
Lisboa, 7 de Março de 2021
A Direcção
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