A Ciência e o 25 de Abril

A Ciência e o 25 de Abril
a propósito de Vasco Gonçalves

Rui Namorado Rosa

Até a década de 1960, o sistema científico português tinha dimensão e diversidade reduzidas. O sistema de ensino superior era débil quanto à oferta de formação e à realização de investigação científica. Havia alguns pontos fortes, mas escassos; e, enquanto algumas áreas do conhecimento tinham reconhecimento internacional, a maioria apenas sobrevivia, e algumas ainda eram ausentes. As três Universidades que então existiam tinham sofrido a perseguição política e demissão de alguns dos seus poucos professores; acolhiam raras unidades de investigação; e o acesso era inacessível a maioria da juventude.

Os polos da investigação científica e desenvolvimento experimental limitavam-se a alguns organismos do estado ― os laboratórios do estado criados entre 1946 e 1971, como o LNEC (1946), IBM (1951), LNIV (1957); INII (1959), LFEN (1961), INSA (1971); estações experimentais EAN, EZN e outras no âmbito das ciências agrárias; hospitais centrais e escolares no âmbito das ciências médicas ― ou organismos privados com destaque para o Instituto Gulbenkian de Ciência (1961).

Nas décadas de 60 e 70 (entre 1964 e 1978), a evolução no sistema C&T português registou um incremento da despesa total em Investigação e Desenvolvimento Experimental por um factor de 10 (crescimento a taxa 16%/ano); crescimento este concentrado no sector Ensino Superior (x30) e Estado (x10); débil no sector Empresas e IPs/FL (x5).

As décadas de 60 e 70 caracterizaram-se também por rápido crescimento do emprego público, inicialmente por maior intervenção social do estado providência; depois, a partir de 25 de Abril, assumindo a Descolonização, a Democracia e o Desenvolvimento social prescritos no Programa do MFA. Aí se incluiu o acolhimento de funcionários da administração ultramarina, mediada pelo Quadro Geral de Adidos, na função pública em Portugal; processo que integrou, entre de 1975 a 1979, cerca de 40 mil funcionários incluindo quadros qualificados das universidades e organismos científico-técnicos das antigas colónias.

Sintomática foi a evolução do número e diversidade de novas associações científicas registadas ― profissionais, disciplinares ou culturais. Desde 1900 a 1959, a fundação de associações científicas fora inexpressiva, ao ritmo de 3 a 5 novas associações por década, apos o que acelerou nas décadas seguintes. O número de novas associações científicas cresceu lentamente na década de 60 (mais 10); acelerou na década de 70 (mais 25); e expandiu-se nas décadas 80 e 90 (mais 63 e 71). Esse crescimento em número e diversidade de associações científicas reflecte o próprio desenvolvimento do sistema científico português, em termos de estruturação institucional e de subjacente investimento em recursos financeiros, humanos e materiais. Nesse movimento associativo, a Organização dos Trabalhadores Científicos, que emergiu em 1970 inspirada nos princípios da Federação Mundial dos Trabalhadores Científicos e da UNESCO, agregou a intervenção de investigadores através da transição politica, no reordenamento de políticas e reorganização de instituições de I&D, sendo formalmente constituída em 1979.

O número especial do Boletim (1976) é dedicado ao Estatuto do Investigador Científico da UNESCO de 1974

Com o 25 de Abril, a ciência entrou na orgânica do governo português pela primeira vez, logo nos seis Governos Provisórios, como Secretaria de Estado da Investigação Científica. Portugal que aderira à UNESCO em 1965 mas se retirara em 1972, reatou a sua participação logo em 1974, enquanto as relações com a OCDE e a INVOTAN foram mantidas e, através do Ministério dos Negócios Estrangeiros, novos acordos bilaterais de cooperação C&T foram accionados. Sob essa tutela, a JNICT e o INIC providenciaram apoio à definição de políticas e gestão de recursos, e enquadramento e financiamento as unidades de investigação.

Era o virar de uma esquina. Para continuar a procura mais próxima do futuro.

Vasco Gonçalves enquanto um dos mais destacados líderes do MFA e primeiro-ministro inspirou e promoveu as condições objectivas e subjectivas para que o povo, e em particular os trabalhadores intelectuais e profissionais científicos, procurassem e realizassem as profundas transformações que num breve lapso de tempo levaram à laboriosa transição do Estado Novo para o regime democrático da nova Republica Portuguesa. Não exerceu ele mesmo a condução dos ministérios que superintenderam na área da ciência e tecnologia, mas como primeiro-ministro e líder politico e moral, ele sabia e inspirou. No arquivo privado de Vasco Gonçalves depositado no Centro de Documentação 25 de Abril (Universidade de Coimbra) encontram-se entre os 26 dossiers estes dois: Ensino/Educação/Instrução (1975-1989) e Filosofia/Ciência/Cultura (1974-1989). É-lhe devido o estudo documental do seu pensamento e directa intervenção na área da ciência no curso da Revolução dos Cravos.

18 de Abril de 2021

A publicação original do presente artigo encontra-se no Número Especial de Abril de 2021 da “Folha Informativa” da Associação Conquistas da Revolução, edição de evocação e homenagem a Vasco Gonçalves por ocasião da passagem, no próximo dia 3 de Maio, do centenário do nascimento dessa figura ímpar da nossa História. A OTC agradece ao autor e à Direcção da Associação a autorização para reproduzir aqui o conteúdo do artigo. As imagens são da responsabilidade da OTC.


Significado das siglas
LNEC: Laboratório Nacional de Engenharia Civil
IBM: Instituto de Biologia Marítima
LNIV: Laboratório Nacional de Investigação Veterinária
INII: Instituto Nacional de Investigação Industrial
LFEN: Laboratório de Física e Engenharia Nucleares
INSA: Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge
EAN: Estação Agronómica Nacional
EZN: Estação Zootécnica Nacional
IPs/FL, Instituições Privadas sem Fins Lucrativos
JNICT: Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica
INIC: Instituto Nacional de Investigação Científica

INVOTAN: ver Nota

Nota OTC: Em finais de 1959 é criada a Comissão INVOTAN com o propósito de dialogar com o Comité Científico da NATO, a funcionar desde Março de 1958. Criada naquela ocasião de forma oficiosa, viria mais tarde a ser integrada na JNICT (Portaria nº 141/70 de 12 de Março) passando então a designar-se Comissão Permanente INVOTAN. Era sua competência “coordenar a investigação científica realizada no âmbito da Organização do Tratado do Atlântico Norte”.