Liberdade de investigação e progresso social
Luís Alfaro Cardosoi
A questão da liberdade na Investigação e Desenvolvimento (I&D) tem vindo a ser objecto de discussão há muito tempo. A Recomendação da UNESCO de 1997 sobre a “Situação do Pessoal Docente do Ensino Superior” clarifica esta questão. Apesar disso, os argumentos tendem frequentemente a incluir posições antagónicas sempre que os fundos de apoio à I&D, o objectivo desta actividade e a natureza (pública ou privada) das instituições envolvidas, não são devidamente tidos em consideração. No entanto, um acordo sobre algumas diretrizes talvez ajudasse nesta análise. Pode ficar claro que os investimentos exclusivamente privados, sem parcerias ou concessões públicas, desde que respeitem as disposições legais legais, só prestam contas aos seus investidores.
Quando se trata de recursos públicos nacionais ou internacionais (provenientes directa ou indirectamente dos contribuintes), os investimentos em actividades de I&D devem ser administrados ou fiscalizados por instituições públicas, obrigadas a justificar os gastos públicos. Esses investimentos devem ter Termos de Referência (TOR, do inglês Terms of Reference) respeitantes às necessidades públicas, independentemente da natureza pública ou privada das instituições de I&D envolvidas, e ser apoiados por contratos/programa adequadamente elaborados com impactos socio-económicos perceptíveis pelo contribuinte. É óbvio que os governos nacionais são responsáveis por tais programas.
A consistência dos TOR para esses contratos/programa são elementos-chave que justificam os recursos humanos e financeiros a eles alocados. Logo, a equipa de investigação haverá de estar envolvida em todo o processo da sua concepção, incluindo os pressupostos básicos, como as diretrizes que estão na raiz da sua adopção. A ciência, incluindo as ciências sociais, dará (ou não), em última análise, credibilidade às principais políticas de I&D. A verdade e a transparência desse processo, o seu reconhecimento público e julgamento, dependerão, obviamente, do grau de liberdade de opinião e expressão desfrutado não apenas no seio da equipa de investigação, mas também em todos os círculos da sociedade dentro de um país. O que significa que este é um problema que não é específico da I&D. Este facto evidencia a relevância da Ciência como um estímulo e um incentivo à liberdade e à democracia devido à sua racionalidade e aos impactos sociais que incorpora.
A evolução actual da Covid19 é um exemplo directo do avanço num estudo profundo que diz respeito à relação entre ciência e reforço de cidadania, traduzido em liberdade de expressão e opinião. A primeira questão levantada pela análise pública tem a ver com o facto de os governos, responsáveis pelo bem-estar da sua população, estarem até agora totalmente dependentes de empresas farmacêuticas privadas para a produção de vacinas ― com grande financiamento público. As vacinas são a ferramenta mais poderosa para combater uma epidemia, que já matou mais de 4 milhões de pessoas e afectou seriamente a economia mundial. Até onde sabemos, isso deve-se a constrangimentos crónicos e prolongados que condicionam a percepção pública do impacto social da ciência como consequência de disrupções na liberdade de informação sobre o investimento em I&D e o seu papel. Outra questão que levanta o actual surto pandémico da doença Covid 19 diz respeito ao grau de dependência dos interesses de negócios privados da população humana em geral, no caso de um provável novo surto pandémico.
Por outras palavras, teremos aprendido a lição?
Deve sublinhar-se ainda que, ao discutir o grau de liberdade na hora de se traçarem os TOR de contratos/programa de I&D, importa ter em conta que os orçamentos para a investigação devem contemplar uma componente que atenda à exploração de novas áreas científicas valorizadas pelos cientistas e não incluídas nas questões principais. Devemos acentuar que, nessas outras questões, hão-de estar incluídas questões de género e religiosas.
Assim, consideramos que a liberdade de discussão no estabelecimento de políticas de investigação, seja a nível institucional, nacional ou internacional, é uma referência para atingir a credibilidade pública. A credibilidade e o apoio público são extremamente importantes quando se pede 2% do PIB de um país para a I&D como uma aplicação de fundos a nível global altamente lucrativa. Assim, o interesse público, o investimento em investigação e a liberdade são profundamente interdependentes e, juntos, constituem as principais referências de uma política de I&D para o desenvolvimento social, económico e cultural.
A Recomendação da UNESCO de 1997 oferece uma estrutura fundamentada que pode ser considerada como uma directriz sólida, ajudando a mitigar possíveis interpretações diferentes, sobre a liberdade no mundo académico. Na verdade, contem mensagens claras sobre o papel das universidades, no sentido, entre outros, do progresso social, educação, investigação, apoio aos direitos humanos, a paz e o desenvolvimento sustentável. Mas também lida com prestação de contas, autonomia de gestão, segurança de emprego de docentes e investigadores.
No que diz respeito às universidades africanas, foi feito em 2016 um estudo específico que descreve problemas de política que afectam profundamente muitas dessas instituições de ensino superior e de investigação. Algumas das questões discutidas reportam-se ao crescimento dos contratos a termo, à mercantilização da educação, ao financiamento baseado no desempenho, com tendências neoliberais que afectam a investigação. De facto, tais tendências evidenciadas neste estudo podem ser observadas na maior parte do mundo. A divulgação atempada dos resultados da investigação também é discutida (Kwodow et al, 2016, “A Review of Academic Freedom in African Universities”, AAUP Journal of Academic Freedom nº 7).
Finalmente, todos encontramos uma base de trabalho actualizada no documento que é a recomendação da UNESCO de 2017 sobre investigação e a sua interacção com a sociedade. De forma muito clara, o documento aborda especificamente a responsabilidade da ciência para com os valores da dignidade humana das Nações Unidas ― o progresso, a justiça, a paz, o bem-estar da humanidade e o respeito pelo meio ambiente. A necessidade da ciência interagir de forma significativa com a sociedade e vice-versa, o seu papel nas políticas nacionais e nas tomadas de decisão, a aplicação de condições de trabalho não discriminatórias, procurando o equilíbrio entre liberdades, direitos e responsabilidades do pessoal de investigação ― são também questões que integram o documento. Estas recomendações podem ser uma base de trabalho extremamente importante nas discussões com as autoridades políticas sobre os sistemas nacionais de investigação.
A avaliação dos valores democráticos de um país reflecte-se bem na forma como as suas instituições de ensino superior e investigação são governadas. Este deve ser um constante parâmetro de referência na avaliação da situação social, económica e cultural de um país.
Luís Alfaro Cardoso
Federação Mundial dos Trabalhadores Científicos
Tradução do inglês: JS/FC
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i Intervenção em representação da Federação Mundial dos Trabalhadores Científicos na “IV Conferência Internacional SUDES/ESR sobre as Liberdades Académicas em África”, Université Cheikh Anta Diop, Dakar (Senegal),27-29 Julho. 2021.
(ver notícia aqui: https://otc.pt/wp/2021/10/11/declaracao-de-dakar/)