“Em homenagem a Rómulo de Carvalho, símbolo vivo de cultura científica na cultura portuguesa, proponho a data de hoje como Dia da Cultura Científica, momento privilegiado, todos os anos, de balanço, de reflexão e de acção sobre o papel do conhecimento no nosso futuro.”
Ministro da Ciência e Tecnologia, José Mariano Gago, in jornal “Público” de 24 de Novembro de 1996.
RECENSÃO DE UM LIVRO SINGULAR
Rómulo Vasco da Gama Carvalho, nascido em Lisboa a 24 de Novembro de 1906, perfazia nesse dia noventa anos de idade. “Física para o Povo”, uma das suas obras mais singulares, fora editada em Coimbra, em 1968, pela Livraria Atlântida, em dois volumes. Na página com que o autor abre o livro pode ler-se:
“ Este livro é para si, meu amigo. Foi escrito a pensar em todas aquelas pessoas que gostariam de estudar e de aprender mas não tiveram ocasião para isso. O meu amigo é um deles. Suponho que é camponês ou operário, rapaz novo ou homem feito, e que já lhe sucedeu ficar a meditar sobre as razões porque acontecem certas coisas que observa. (…)
Pus-me assim a pensar sobre várias coisas que o meu amigo poderá ter observado na sua vida diária e que talvez gostasse de saber explicar. Procurei ir ao encontro do seu pensamento e responder às suas prováveis interrogações sempre do modo mais simples possível, pois sei que o meu amigo não tem os estudos suficientes para compreender certas explicações ou o significado de certos termos que eu deveria usar para ser mais correcto. Não mostre este livro a nenhuma pessoa sabedora porque essa encontraria com certeza muitos motivos de censura nas minhas palavras. Acharia que aqui não estava bem explicado, que ali tinha usado palavras impróprias, que mais adiante não era bem assim como digo, etc., etc.. E tinha razão. Mas não se preocupe com isso. Isto é só para o meu amigo. Quando tiver vagar pegue no livro e entretenha-se a ler.”
A obra é reeditada em 1995, por Relógio de Água Editores, agora com o título “Física no Dia-a-Dia”. É essa edição que surge prefaciada por José Mariano Gago. O Prefácio que abaixo se reproduz, é um texto magnífico, no conteúdo e na forma, revelador da profunda admiração do seu autor pelo professor-poeta. Com a sua reprodução feita aqui prestamos homenagem a um e a outro.
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“A FÍSICA NO DIA-A-DIA”
Prefácio de José Mariano Gago
Estamos perante um clássico. Esta Física para o Povo de 1968, hoje A Física no Dia-a-Dia, é, pelo tom e o estilo, um volume de Cartas Familiares a ler em casa, talvez partilhadamente, em voz alta; supõe o gosto do diálogo e uma sede de cultura persistente, antiga.
O poeta António Gedeão tem no autor desta obra um heterónimo consagrado como professor e divulgador de física, também historiador das ciências e da educação em Portugal. A paixão pelo saber, pelo porquê das coisas, passa de um para outro naturalmente. Imagino-os cúmplices numa escola a que ambos nos convidam, sem atenderem nem ao pudor do poeta nem a interrogação do físico. Rómulo de Carvalho aprendeu de Gedeão o gosto pelos objectos simples, pela história singelamente contada, pela experiência quotidiana. Quanto a Gedeão, penso nele como companheiro de carteira de Rómulo na aprendizagem interior do espírito da física, cedo feita de ensinar os outros.
Está por contar o percurso impar destes dois autores num só homem: o físico humilde que militantemente despertou e formou gerações de alunos e educadores no Liceu Normal de Pedro Nunes como então se chamava a escola de formação e profissionalização dos professores do ensino secundário, e o poeta audacioso que escreveu o poema para Galileu, a Calçada de Carriche e a química fina das lágrimas de uma preta universal.
Aqui deixo pedida a história a esses dois autores, Rómulo e Gedeão, porque estou seguro tratar-se de uma das mais importantes peças que falta ao diálogo sobre o saber que ambos iniciaram connosco há muitos anos.
De entre os livros que, em criança, mais me despertaram a curiosidade e o gosto pela Física conta-se um volumezinho de textos seleccionados por Rómulo de Carvalho sob o título “O Que é a Física”. Esse volume de divulgação, hoje datado, era uma compilação de textos de investigações, revelava controvérsias científicas da época e um mundo de problemas em aberto que a física se esforçava por resolver. Por isso mesmo, propunha uma motivação solida para o estudo a longo prazo da Física: questões de resposta desconhecida, mistérios suficientemente explícitos e reconhecidos, uma aventura.
Os mistérios da “Física no Dia-a-Dia” provêm da mesma aventura, noutra ordem de princípios.
Trata-se da leitura física da experiência comum, dos fenómenos naturais e das tecnologias correntes. Não se pede aqui ao leitor que contemple, fascinado mas sem participação efectiva, o espectáculo da ciência actual: útil para motivar estudantes que algum dia serão, talvez, físicos, tal proposta encontraria limites muito estreitos junto do público visado na obra inicial, pouco escolarizado e certamente afastado da perspectiva de alguma vez fazer ciência.
Por isso, a via escolhida nos procura implicar no acesso directo à experiencia e à observação privilegiando o quotidiano e, dentro deste, fenómenos em que mais facilmente se suporte um diálogo inteligente, conduzido pela presença didáctica constante do autor, e que não exijam o recurso a técnicas especializadas de medida ou registo.
De certa maneira, o livro não é, assim, uma obra de divulgação, mas de ensino, cuidadosamente delimitada no território a explorar.
É lógico pois que, ao justificar a exclusão de temas mais directamente ligados a tecnologias “modernas” (electrónica, telecomunicações, computadores), o autor se situe precisamente no campo da construção pedagógica argumentada: “(…) julgo que seria exactamente sobre coisas como essas que o meu amigo preferiria que eu lhe tivesse falado, explicando-lhe por que é que o rádio toca, por que é que o tubo de luz fluorescente se acende sem filamento, por que é que o foguetão sobe, fica no ar e não cai, etc., etc. Nem o meu amigo supõe como seria difícil, quase impossível, fazer-lhe entender a razão do funcionamento de qualquer dessas coisas. (…) Teria sido necessário frequentar escolas, estudar as ciências, ler bastante, para se encontrar em condições de compreender as explicações que lhe desse”. (Física para o Povo, pg. 256-257.)
Esta posição é tanto mais singular quanto é certo ter a divulgação científica seguido, nas últimas décadas, uma orientação distinta, afastando-se dos limites pedagógicos da aquisição e da compreensão, cuja fronteira rompe, ao aceitar incorporar o preço do sucesso que obtém pela encenação sugestiva do espectáculo da ciência.
Tudo gira pois em torno da “apropriação” das ciências, do conhecimento e da cultura científicas, pelos não cientistas. Dir-se-ia que a apropriação da ciência — mas como? e qual? — pelo leitor não cientista divide o espaço da divulgação.
À “esquerda”, a intenção de fazer compreender, argumentada-mente, o processo mesmo de interpretação e questionamento do real, levando o leitor à experiencia, à observação e à aquisição preliminar da teoria.
À “direita” (se assim ouso exprimir-me!) a intenção de motivar, sugestionar ou dar a “ver”, mas reduzindo a dimensão “apropriativa” e, se necessário, projectando apenas nos espíritos as sombras coloridas de uma imagem espectacular das ciências.
Por outras palavras. De um lado, a divulgação pedagógica; do outro, a divulgação do espectacular. À “esquerda”, a tentativa de reinvenção dialogada, “socrática”, interactiva, do processo científico. À “direita”, a tentativa de atracção “publicitária” para a ciência, iluminando mais os resultados que os processos, mais as técnicas que as ideias.
Estas duas faces pertencem ambas provavelmente e de direito próprio à figura da sedução, antes de marcarem o perfil do divulgador das ciências, sedutor em nome delas de um público mais ou menos rendido ao fascínio daquilo que a narração evoca.
Muito haveria a dizer sobre o papel respectivo de coda uma dessas faces, e da necessidade provável de ambas nas comunicações subtis que a nossa relação “exterior” com o conhecimento (e principalmente com o conhecimento científico) estabelece com outras exterioridades e exclusões (a divisão do trabalho, a hierarquia dos teres e dos saberes, dos sexos, das raças ou das nacionalidades).
No caso específico da divulgação científica, suponho que a sua primeira face, a que chamei “esquerda”, olha para a escola, a reciclagem pedagógica, a abertura de um caminho na recuperação
da aprendizagem regular das ciências: o seu êxito suporia uma expectativa razoável desse processo de aprendizagem real, mesmo que iniciado sob o signo do autodidactismo. A segunda face, “direita”, tentaria, pelo contrário, a sedução para a ciência de jovens com idade escolar (ou a motivação indirecta por seus pais), associando à aprendizagem regular das bases técnicas e conceptuais das ciências o estímulo prestigioso do espectáculo dos seus sucessos, dos seus heróis e das suas grandes questões.
Embora as fronteiras se esbatam, por vezes, entre estas duas formas extremas, seria útil procurar verificar a sua pertinência como categorias de leitura, em estudos futuros.
Julgo que A Física no Dia-a-Dia de 1994, ou a sua versão inicial de Física para o Povo, explicitam exemplarmente a figura “esquerda”, pedagógica, da sedução científica que ambos os títulos, aliás, confirmam. Rómulo de Carvalho oferece-nos um exemplar perfeito de cartas familiares portuguesas sobre a física dos fenómenos naturais, de recorte clássico. Não diálogos, como em Galileu ou em Teodoro de Almeida, mas cartas onde o diálogo a dois é mais próximo e comprometido. Sem nunca o dizer, o livro traz também à superfície um diálogo sobre Portugal e os seus bloqueios sociais, culturais, científicos. O seu modo é pedagógico, quase socrático, atravessado por uma unidade de crença: a vontade de saber porquê. Diz, a propósito: “O meu amigo sabe pela experiencia da sua vida (…) e julga que por saber isso já sabe a razão porquê. Engana-se. Uma coisa é saber o que se passa; outra coisa é saber porque se passa. Não devemos confundir as duas coisas.”
A pulsão que o domina é de ordem política, é a exclusão e a desigualdade social que combate no campo do saber. Mas não será essa sempre a motivação genuína da educação e dos educadores, embora quando, objectiva e contraditoriamente, participam na realização do oposto?
Desta forma, o modo de locomoção do espírito a que nos convida parece feito à nossa medida, é experimental de fazer em casa ou de ver na rua, e nele entramos sem iniciação ou reverência, sem baixar a cabeça numa porta estreita ao cimo de uma escada.
O percurso escolhido vai dos sentidos às técnicas pela experiência, da óptica dos espelhos, das lentes, do caleidoscópio ou do arco-íris, aos ímanes, à electricidade, às alavancas e aos foguetões, à pressão e ao atrito, à flutuação dos barcos, à tensão superficial, ou ainda ao peso do ar, aos termómetros, aos fenómenos do som. Pelo caminho, ensina-nos a ferver água numa caixa de papel, a fazer um sempre-em-pé e a gostar de perceber o porquê das coisas.
Rómulo de Carvalho veio recordar-nos, mais uma vez, como a Física também é quotidiana. A sua obra de divulgação científica, agora em reedição, ocupa um lugar destacado na história da divulgação em Portugal. Aí chegou por um caminho simples, rente à comoção humilde da partilha do saber, à altura da nossa ignorância e vontade de aprender.
Talvez mais do que qualquer outra das suas obras, A Física no Dia-a-Dia revela este percurso e atitude com a clareza de uma sinceridade militante e generosa, rara.”
José Mariano Gago
Março de 1992