PROJECTO ÁFRICA

 

Nota introdutória
A Federação Mundial dos Trabalhadores Científicos chama as associações filiadas, entre as quais se encontra a OTC, a debater e pronunciar-se sobre a proposta de projecto de construção de uma estratégia para uma campanha de financiamento da investigação em África. É um projecto ambicioso cuja realização seria crucial para o desenvolvimento económico, social e cultural do continente africano e através dele para a construção, nas palavras do Presidente Jean-Paul Lainé, de “um novo humanismo no século XXI”.

 APELO PARA UM FUNDO DEDICADO
À INVESTIGAÇÃO EM ÁFRICA

1 – O contexto internacional
Enfrentar os desafios que se apresentam neste século XXI à escala planetária e ao nível de cada país e de cada continente, exige um reforço de mobilização da humanidade no seu conjunto com toda a sua diversidade. Tal assentará na contribuição das riquezas (materiais, intelectuais / imateriais e outras) de cada povo e de cada sociedade. Para esse fim, a cooperação e a solidariedade devem prevalecer sobre a competição e os egoísmos nacionais que se revelaram, de forma intensa, neste período pandémico de COVID-19. Nessa perspectiva, as relações comerciais e financeiras internacionais devem ser reformuladas e a organização da investigação científica, tecnológica e da inovação, deve ser profundamente modificada.
No contexto actual de globalização, os países dificilmente podem integrar-se na economia mundial e competir, sem uma população suficientemente qualificada e sem uma pesquisa científica de alto nível. Mais geralmente, e qualquer que seja o contexto, a educação, o ensino superior e a investigação científica são importantes vectores de redução da pobreza e do desenvolvimento económico. Eles trazem uma contribuição indispensável à especialização e competências necessárias aos sectores essenciais da saúde, educação, boa governação, meio ambiente….
Todos os países, sem excepção, têm, portanto, fortes razões para continuar a aumentar significativamente o nível médio de educação da sua população e fazer crescer em volume, relevância e eficácia as actividades de investigação científica.

2 – A situação da investigação em Africa
De acordo com o African Capacity Report 2017, publicado pelar fundação “The African Capacity Building Foundation”, o continente africano está a aumentar as suas capacidades científicas, tecnológicas e de inovação. No entanto, a situação está longe de ser satisfatória. De facto, os atrasos ao nível das infra-estruturas, dos equipamentos científicos e da valorização dos resultados da investigação, são reais e significativos. Acresce também a necessidade de recrutar investigadores em número suficiente e com as qualificações académicas necessárias, e tornar a posição de investigador, suficientemente atractiva para “captar” os melhores profissionais, limitar a fuga de cérebros e motivar os jovens a orientarem-se para as carreiras científicas.
Com efeito, o continente africano, que hoje representa quase 15% da população mundial, só tem 1% das capacidades de pesquisa do mundo. Há duas razões essenciais para isso – para lá de razões institucionais e políticas: a falta de recursos humanos e um forte défice de meios financeiros.

2-1: A falta de recursos humanos
Estimava-se em meados da década passada que a África tinha apenas cerca de 80 cientistas e engenheiros por milhão de habitantes, quando esse número chegava a quase 150 no Brasil, 2500 na Europa e 4000 nos Estados Unidos da América.
Para contribuir para o esforço de investigação científica das instituições mais relevantes de que já dispõem, os países africanos não formam senão um “pequeno” número de potenciais investigadores. A isso, soma-se a fuga de cérebros. Nesse sentido, a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Económico (OCDE) estimou em 2011 que um em cada nove cientistas formados em África trabalhava num país membro daquela organização, nomeadamente na América do Norte e na Europa. Esse número está a crescer acompanhando o aumento geral dos fluxos migratórios a partir do continente. Assim, o número de migrantes africanos titulares de um diploma do ensino superior que emigraram para o estrangeiro entre 2011 e 2016 seria de cerca de 450 000, ou seja, um fluxo igual a 90 000 por ano.

2-2: O défice de financiamento
Uma das razões desta enorme perda de forças vitais para a investigação científica africana está ligada – além de questões políticas, institucionais ou relativas ao fraco nível de vida e insegurança – à insuficiência dos recursos financeiros disponibilizados para as actividades académicas e de pesquisa. Isto é ilustrado no quadro anexo através da fracção do produto interno bruto (PIB) dedicado à investigação e desenvolvimento (DIDE) numa amostra de 25 países africanos. De acordo com os dados deste quadro, os gastos com I&DE, em percentagem do PIB, variam entre 0,01% num dos países mais pobres do continente, a Mauritânia, 0,71% em Marrocos, 0,72% no Egipto, 0,79% no Quénia e 0,83% na África do Sul, passando por 0,03% em Angola e 0,13% na Nigéria (dois dos países do mundo mais ricos em petróleo).
Os fracos valores destas taxas contribuem hoje para as crescentes diferenças de desenvolvimento entre o continente africano e o resto do mundo. Isto deve ser visto em perspectiva olhando, por exemplo, para o que foi planeado pela União Europeia no início deste século, no contexto do que se chamou a “Estratégia de Lisboa” que estipulava, entre outras coisas, que: “Se queremos reduzir a diferença entre a União Europeia e os seus principais concorrentes, o esforço global em matéria de I&DE e Inovação na União Europeia deve ser fortemente estimulado e o esforço deve ser colocado mais particularmente nas tecnologias de vanguarda. Em consequência, o Conselho Europeu considera que todas as despesas em I&DE e Inovação na União devem aumentar, para se aproximar dos 3% do PIB até 2010. Dois terços deste novo investimento dever ser oriundo do sector privado”.[1] A Federação Mundial dos Trabalhadores Científicos (FMTC) não faz dessa estratégia um modelo, mas combate-a, já que contribui para um sistema mundial dominado pela concorrência económica e financeira e pelo poder exorbitante das empresas multinacionais. No entanto, os números falam por si, embora o objectivo de 3% fixado pela UE não tenha sido atingido.
Em 2014[2], a I&DE da UE atingia 2%, seguida da China, que passou de 1,3% em 2005 para 2,05% em 2014, enquanto os Estados Unidos estavam nos 2,7% e o Japão em 3,6%.

3- Um fundo para a investigação em África
Se realmente queremos ter em conta os principais desafios que os países africanos enfrentam, que são a “explosão” demográfica, a segurança alimentar e sanitária, as alterações climáticas, a empregabilidade dos licenciados e, de forma mais geral, o desenvolvimento económico, social e democrático do continente, é importante encontrar novos mecanismos de financiamento da investigação em África e, para além disso, colocar de forma concreta a questão dos recursos financeiros e humanos e dos mecanismos a pôr de pé. Consciente desses desafios e também dos novos problemas, assim como dos antigos, a FMTC propõe o estabelecimento de um método de financiamento inovador dedicado à investigação em África. Esta proposta não é apenas necessária, mas urgente para o desenvolvimento de investigações de alto nível, genuinamente relevantes e eficazes neste continente. Esta é, de facto, uma das principais e necessárias condições para ir ao encontro das necessidades dos africanos e, para além disso, de toda a humanidade: conhecimento e necessidades de conhecimento, necessidades sociais, saúde, ambientais e democráticas. Para o conseguir, é importante que os académicos e os investigadores africanos se envolvam fortemente nas políticas para o desenvolvimento do ensino superior e da investigação em África, através de organizações regionais, sub-regionais, nacionais e locais. Nesta perspectiva, promovemos e debatemos a ideia da criação de um fundo dedicado à investigação em África, ancorado na União Africana (UA). O objectivo deste fundo é financiar todos os projectos de investigação fundamental e de desenvolvimento que as finanças públicas dos países africanos – em particular devido à grande pobreza da maioria deles – não permitem hoje apoiar. O objectivo será também financiar o aumento de relevância das estruturas científicas e universitárias, o que exigirá, em certos casos, recursos substanciais que não deverão ser ignorados. Este fundo seria articulado em torno de cinco sub-regiões e/ou organizações sub-regionais principais (Norte de África, Comunidade da África Oriental, CEMAC ― Comunidade Económica e Monetária da África Central, CEDEAO ― Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental, e Comunidade de Desenvolvimento da África Austral). Deverá ser concebido, implementado e gerido, por organismos exclusivamente africanos e alimentado principalmente pelos países africanos e seus parceiros de desenvolvimento, intervindo sem contrapartidas políticas ou económicas (ao contrário dos planos de ajustamento estrutural impostos pelo FMI e pelo Banco Mundial).

4- As vantagens de um tal fundo
O primeiro interesse do fundo será o de se tratar dum fundo soberano exclusivamente africano, o que permitiria ser a África a definir ela própria as problemáticas da investigação decisivas para o seu desenvolvimento e a sua contribuição para o desenvolvimento internacional, através de investigadores africanos estabelecidos nesse continente, em colaboração com os da diáspora e, mais largamente, com a investigação internacional.
O segundo aspecto positivo do fundo seria a mutualização, isto é, o pôr em comum recursos humanos, materiais, logísticos e tecnológicos por meio do estabelecimento ou expansão de grandes centros regionais de investigação e de ensino superior na forma de plataformas conectadas, com directrizes/objectivos específicos (a protecção de recursos pesqueiros, protecção da floresta, preservação da água, combate à desertificação, combate às epidemias, etc.).
O terceiro aspecto positivo seria o estabelecimento de condições materiais, institucionais e científicas verdadeiramente atractivas, favoráveis ao regresso (permanente ou periódico) de investigadores africanos a África, atraindo investigadores de outros continentes e, de uma forma mais ampla, aumentando a atractividade das carreiras científicas no continente africano.
No geral, tal fundo contribuiria para a implantação de um círculo virtuoso (ciclo com efeito retroactivo positivo) entre desenvolvimento científico e técnico e desenvolvimento económico, social e ambiental.

5- A estratégia operacional para financiar o Fundo
O facto de ligar este Fundo à União Africana deve obrigar os vários países africanos a adoptar verdadeiras políticas de investigação para o continente. Assim, cada país deveria aumentar gradualmente o seu financiamento à investigação com o objectivo de destinar à investigação pelo menos 2% do respectivo PIB (valor a debater), do qual 1% (valor a debater) seria a sua contribuição para o financiamento do Fundo. Não está excluído que os parceiros de desenvolvimento e o Banco Africano de Desenvolvimento (BAD) possam participar neste financiamento, mas sem compensação vinculativa. Este Fundo, que, em contrapartida, deveria beneficiar a I&DE e a população de cada país africano, deveria ser distribuído entre as cinco sub-regiões e organizações sub-regionais já mencionadas, cada uma com os seus próprios mecanismos operacionais, de acompanhamento e de controlo, apropriados.
A política de investigação em África deve ter uma coerência piramidal reflectida nas leis que regem a investigação científica definidas por cada país, bem como nos planos estratégicos de investigação elaborados por cada instituição de ensino superior e de investigação.
A fim de aumentar as capacidades financeiras públicas em África, essenciais ao desenvolvimento de políticas económicas, sociais, educacionais, de investigação, etc., devem ser criadas taxas específica, à semelhança da taxa Tobin[3]. Taxas que poderiam incidir sobre as indústrias extractivas (especialmente em produtos mineiros exportados em estado bruto), as companhias telefónicas, a exploração de aeroportos e portos, os voos internacionais, as exportações de madeira, os produtos de pesca exportados em bruto, as transferências financeiras de África, as transferências de dividendos feitas em benefício de empresas estrangeiras concessionárias de serviços públicos, etc.

6- Um novo quadro mundial
O efectivo sucesso de um tal projecto dedicado à promoção e ao fortalecimento da investigação científica em África requer grandes mudanças nas estratégias e nos objectivos da investigação a nível global, incluindo, em particular:
– a generalização de políticas a favor da ciência aberta;
– a garantia do direito à mobilidade internacional de todos os investigadores e a ruptura do actual contexto internacional marcado por políticas cada vez mais restritivas da circulação de cientistas africanos;
– a orientação privilegiada das políticas de investigação no sentido de, ao lado da investigação fundamental, ir ao encontro dos principais problemas/questões que a humanidade hoje enfrenta, como o aquecimento global, a luta contra as pandemias, a redução da pobreza, o desenvolvimento de recursos renováveis, a digitalização das economias, etc.
– a criação de um Fundo Global para a Investigação, que teria como um dos seus objectivos o de apoiar fundos continentais/regionais, como o referido neste apelo, com vista a um desenvolvimento económico e social sustentável.

Julho de 2021
O Secretariado Internacional da Federação Mundial dos Trabalhadores Científicos

ANEXO
DESPESA PÚBLICA EM INVESTIGAÇÃO E DESENVOLVIMENTO EM ALGUNS PAÍSES AFRICANOS (%PIB)

Fonte: Banco Mundial (https://data.worldbank.org/indicator/GB.XPD.RSDV.GD.ZS)

Tradução das versões originais: EN, JS, FC

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[1] Ver: Recherche et innovation en France : surmonter nos handicaps au service de la croissance. https://www.senat.fr/rap/r07-392/r07-3923.html
[2] https://ec.europa.eu/eurostat/statistics-explained/index.php?oldid=390233
[3] A taxa Tobin, sugerida em 1972 por James Tobin, prémio Nobel de Economia, consiste na tributação das transacções monetárias internacionais com o objectivo de limitar a volatilidade das taxas de câmbio. Por extensão, o termo passou a designar um imposto sobre transacções financeiras. É também chamado por alguns fiscalistas “taxa Robin Hood”. (Nota OTC)

 

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