Perdidos na transição energético-climática
A propósito dos projectos/investimentos destinados ao aproveitamento de fontes renováveis para produção de electricidade, surgem, com muita frequência, notícias, artigos ou comentários, afirmando que tal empreendimento terá capacidade para satisfazer as necessidades de um determinado agregado urbano com X milhares de habitantes.
Concretizando através de exemplo recente, afirmava-se no jornal Negócios do passado dia 6 de Outubro, que a “EDP Renováveis inaugura, no Estado de São Paulo, Brasil, um parque com 600 mil painéis solares, o seu maior parque solar, com capacidade para abastecer uma cidade de 750 mil habitantes”. E, no desenvolvimento, acrescentava-se que a “EDP Renováveis revela que o projecto, que tem uma potência instalada de 252 MW (pico) ”, sendo que o complexo solar terá “uma capacidade anual de produção de 547 000 MWh”.
Pode presumir-se pela notícia assinada por jornalista credenciada, que as passagens acima registadas se devem à empresa mencionada.
Na verdade, estamos perante um tremendo erro que radica, ou na ignorância, ou, o que é mais grave, na deliberada intenção de enganar.
E, por que razão não há rigor em tal extrapolação entre a quantidade de electricidade produzida (potencial) e o número de “habitantes bastecidos”?
Sem entrar em pormenores técnico-científicos, é útil recordar que qualquer unidade que se fundamente na captação da radiação solar através de painéis fotovoltaicos, convertendo, depois, a energia proveniente do sol em electricidade, apenas pode funcionar, diz-nos o senso comum, durante as horas diárias em que o sol está acima do horizonte.
O potencial solar está muito relacionado com a posição geográfica (latitude) e com as condições meteorológicas e/ou climáticas do local de captação, ou seja, com a quantidade de radiação solar recebida. Por exemplo, em Portugal continental, situado numa região subtropical do hemisfério Norte, entre as latitudes 37º e 42º, existem boas condições para utilização do recurso solar, porque os valores de insolação e radiação registados são bons. De uma forma muito simples pode fazer-se equivaler os níveis de insolação ao número de horas de sol descoberto acima do horizonte, que varia, em Portugal, entre 1 800 e 3 200 horas de acordo com a localização exacta no território e com a estação do ano.
Em geral a insolação aumenta de norte para sul (clima e variação do ângulo de incidência) e de oeste para este (nebulosidade). No Algarve, Alentejo interior, Península de Setúbal, entre outras zonas, chega a atingir-se as 3 200 h/m²/ano
Pode assumir-se que, em média anual, só pode produzir-se electricidade fotovoltaica durante 33% das 24 horas de cada dia, quando a nebulosidade não o impede e, curioso, quando a temperatura não é tão elevada que faça diminuir o rendimento de conversão.
Ora, esta evidência objectiva, leva-nos à conclusão óbvia de que nunca se poderia garantir o abastecimento fiável e permanente de um aglomerado urbano, grande ou pequeno, com base na energia solar.
Por algum motivo os consumidores que têm a possibilidade de instalar, para autoconsumo, painéis fotovoltaicos próprios nas suas residências ou instalações produtivas, não prescindem da ligação à rede pública. É que, para além do eventual desejo de comercializarem as sobras, têm uma necessidade vital: necessitam sempre de electricidade, seja qual for a sua “cor”.
Com naturalidade ressurge a muito antiga ideia de acumular a electricidade durante o dia para a poder consumir quando o sol não está à vista.
Antes de prosseguir com a reflexão, reservar, para posterior colação, um outro aspecto, muito simples, mas fundamental: quando um determinado conjunto de painéis fotovoltaicos está a enviar a electricidade produzida para baterias acumuladoras (ou outro sistema de armazenamento), não está disponível para fornecer electricidade aos consumidores. E, portanto, para uma determinada quantidade de electricidade Y, necessária aos X habitantes, é necessário multiplicar por três a potência instalada.
Voltando à questão do armazenamento/acumulação da electricidade, referir um outro pequeno/grande problema existente desde que o Homem contactou com este precioso vector energético: a electricidade é evanescente, consumindo-se no mesmo instante em que se produz, sendo operação muito complicada e cara fazer o seu armazenamento em larga escala. Mais de um século de investigação e desenvolvimento técnico-científico, não resolveram, apesar de notáveis desenvolvimentos, as questões de base, mormente, as económicas, que constituem marcante óbice à utilização massiva do sol, e do vento, para resolver os problemas energéticos. Apesar de serem recursos que podem e devem ser explorados, tal como a hidroelectricidade, mas, sempre, de forma sustentável, no sentido holístico da expressão.
Figura 1
As fontes renováveis de energia, designadamente as referidas no parágrafo anterior, têm um problema incontornável: são intermitentes como se pode verificar na Figura 1 (eólica e fotovoltaica). Ou seja, não obstante, existirem padrões estatísticos que permitem alguma previsibilidade, a sua disponibilidade real (factor de carga) varia aleatoriamente ao longo do dia. É, por isso, muito difícil confundir os desejos idealistas com a realidade objectiva.
Colocar numa parcela de território uma determinada potência fotovoltaica (são necessários entre 1,5 a 3 ha de solo para albergarem um MW) é, por si só, um problema não despiciendo: o solo é um recurso, escasso em muitas situações, que já não se produz (salvo casos como o dos Países-Baixos), e, portanto, se, além das exigências relacionadas com a instalação dos painéis fotovoltaicos e equipamentos/infra-estruturas complementares, adicionarmos a necessidade de baterias de acumuladores, então, a situação piora.
Uma central como aquela que é mencionada, embora situada no Brasil, poderá significar a necessidade de mais de 600 ha. Os impactos socioeconómicos, agro-alimentares, ambientais e paisagísticos resultantes de tais implantações não podem deixar de ser colocados na equação.
Embora haja um notável aumento da qualidade das soluções tecnológicas aplicáveis, tanto aos painéis fotovoltaicos, como às baterias, desenvolvimento que, aliás, muito contribuiu para a diminuição dos custos de fabrico, não se pode negligenciar uma outra vertente geoestratégica: a das disponibilidades reais de recursos/reservas de metais fundamentais, indispensáveis para a transição energética almejada, e dos seus custos num contexto de aumento exponencial da procura. Referir o cobalto, chumbo, cádmio, selénio, lítio, grafite e níquel, e outros, já que é real e crítica a interrogação sobre se existem condições sustentáveis para suportar a crescente procura, sem se ficar capturado pelos interesses estratégicos e especulativos mundiais. A localização geográfica concreta dos locais de mineração e refinação fazem acrescer as dúvidas.
As baterias são dispositivas, ou aparelhos, que podem ser consideradas fontes “móveis” ou “portáteis” de energia eléctrica gerada por conversão directa da energia química previamente acumulada no seu interior em células unitárias, através de fornecimento de electricidade, sendo recarregáveis durante um determinado número de ciclos. As baterias não recarregáveis são, em geral, conhecidas como “pilhas”.
Trata-se de dispositivos conhecidos desde há cerca de dois séculos, muito utilizados em variadas finalidades ao longo de muitas décadas. Têm vindo a evoluir na sua base tecnológica aproveitando o desenvolvimento técnico-científica em torno de diversos metais, seus compostos derivados e outros materiais de suporte e contentorização.
No âmbito do paradigma defendido pela transição energético-climática em curso, caracterizada por uma grande intensidade num muito curto período, como se verificará na projecção prospectiva para o período 2020/2050, elaborada pelo autor e registada na Figura 2 com base no que está assumido nos planos/programas oficiais de enquadramento legal vigentes em Portugal (e.g. PNEC 2030, o Roteiro para a Neutralidade Carbónica 2050, RNC 2050, e a Lei Quadro da Política Climática), as baterias de acumulação electroquímica ganhariam uma importância fulcral. Com base nesta perspectiva idealista, geraram-se expectativas talvez pouco credíveis na realidade.
Pode dizer-se que, salvo a acumulação de electricidade em quantidades “industriais” na forma água (energia hídrica) realizada nas albufeiras de centrais hidroeléctricas reversíveis, as únicas duas outras formas tecnologicamente disponíveis são as baterias e o hidrogénio gerado através da electrólise da água a partir de electricidade de fontes renováveis.
Contudo, estas formas de acumulação de electricidade têm grandes complicações técnicas, económicas, ambientais e logísticas associadas. Algumas dessas complexidades foram, e são, tão intensas que têm obstado à sua utilização na forma de exploração económica rentável (custo-benefício) durante muitas décadas.
Figura 2
Agora, que existe o desígnio climático, tentativamente concretizado através de uma determinação política hiperbólica, baseada num “custe o que custar” neoliberal e aparentemente “verde”, surgem financiamentos que talvez permitam o alavancamento de tais soluções. Designadamente os que se apoiam em subvenções com dinheiro público (PRR e Portugal 2030) não reembolsáveis disponibilizadas às empresas privadas energéticas que, através delas, conseguem fazer lucro suficiente com as novas tecnologias ainda pouco eficientes. Em lugar de subvenções, ou cumulativamente com elas, poderá verificar-se o aumento dos preços/tarifas suportados pelos consumidores.
Tudo isto correlacionado com uma descarbonização a galope que suga todos os recursos, deixando para plano secundário as acções de adaptação.
Os custos da energia, designadamente da electricidade, atingiram, em Portugal, desde há bastantes anos, níveis inauditos e inaceitáveis. Nos últimos meses, e, não obstante a enorme parcela de renováveis já existentes, os preços dispararam num contexto de mercado grossista liberalizado, que, de facto, se verifica ter características próprias de oligopólio.
Parte dos custos que oneram os consumidores deveu-se á subsidiação feita ao negócio das renováveis desenvolvido por empresas energéticas privadas.
De facto, os sobrecustos repassados às tarifas através dos CIEG (Custos de Interesse Económico Geral) determinados pela ERSE (Entidade Reguladora de Serviços Energéticos) durante 20 anos, representam já um total de mais de 27 000 milhões €, considerando os CMEC (Custos de Manutenção do Equilíbrio Contratual), os CAE (Contratos de Aquisição de Energia), e, entre outras alcavalas político administrativas, a subsidiação à PRE – Produção em Regime Especial. A parte das eólicas e fotovoltaicas no bodo da PRE significou, até aqui, perto de 10 000 milhões €.
Não se trata, note-se, de impostos ou taxas: são, na verdade, fluxos financeiros cobrados aos consumidores e enviados directamente para as empresas privadas que evidenciaram ao longo de vários anos rendas e lucros impronunciáveis.
Perante o descalabro dos preços da electricidade no mercado grossista, facto que está a levar muitas empresas à inoperacionalidade e muitas famílias à pobreza energética, vem dizer-se que a solução é: muito mais renováveis! Mas, claro, sempre a preços, tarifas e taxas esdrúxulas para “salvar o Planeta”!
Referir que, com as novas fotovoltaicas, que poderiam vir a determinar, até 2050, a ocupação de mais cerca de 600 000 ha (se fosse avante o plano de descarbonização defendido pela governação europeia e portuguesa), para além de não se conseguir satisfazer as necessidades de electricidade, não se iria, também, baixar o preço para os consumidores. Entre outras razões, porque, no imediato, a metodologia marginalista do mercado grossista, imposta a nível europeu, não o permitiria. No médio e longo prazos, a necessidade capitalista de contrariar a baixa tendencial da taxa de lucro, para além da destruição “criativa” de capital, por via belicosa ou por desmantelamentos prematuros de unidades produtivas, irá impor a continuada alta nos preços.
16 de Novembro 2021
Demétrio Alves
Engº IST e Doutor em Planeamento e Ordenamento do Território pela Univ. Nova de Lisboa
Associado nº 738 da OTC
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