“Ciência e desenvolvimento sustentável”
Frederico Carvalho
Vivemos hoje em dia uma conjunção de crises de muitos tipos que ameaçam a própria sobrevivência da nossa espécie. Esta crise geral (que alguns qualificam como “global”) não tem soluções simplesmente técnicas. É uma crise sistémica que só pode ser vencida por meios políticos.
Na minha opinião, não sobreviveremos enquanto as grandes empresas e as corporações transnacionais ditarem as regras do jogo.
A ideia do comércio livre e da livre circulação de capitais como estando na base da riqueza das nações industrializadas é apenas um mito. Os Estados Unidos tinham a economia mais protegida do mundo desde meados do século XIX até ao final da Segunda Guerra Mundial. A mesma estratégia foi adoptada em épocas diferentes por outras potências, como Inglaterra, Alemanha ou Japão[i].
Em termos gerais, podemos dizer que os princípios, regras e mecanismos de funcionamento do sistema económico mundial devem ser alvo de profundas mudanças de modo a assegurar mais espaço político aos países pobres para levar a cabo uma gestão dos seus recursos, adaptada às suas necessidades de desenvolvimento. Os chamados “países em desenvolvimento” devem poder conduzir políticas com maior autonomia em relação ao proteccionismo, à regulamentação do investimento estrangeiro, aos direitos de propriedade intelectual, entre outros.
Sublinhemos também a diferença entre “desenvolvimento económico” e “desenvolvimento humano” este último sendo indispensável se se pretende criar as condições que conduzam a um mundo onde a vida seja sustentável: um mundo não submetido ao império do capital, que se alimenta da guerra.
O crescimento sem limites não é possível num planeta que é, ele mesmo limitado[ii]. Mesmo uma taxa de crescimento global de 1% ao ano não é sustentável.
Pode dizer-se que o objectivo a perseguir será o que se chama “economia estacionária”. Mas num planeta onde mais de um milhar de milhões de pessoas não têm como matar a fome e onde a desigualdade de condições de vida aumenta a cada dia que passa, que caminho seguir? O problema central do nosso tempo não é o crescimento económico permanente, mas a redução das assimetrias na distribuição de rendimentos num mundo profundamente desigual e injusto[iii].
Nos países ditos “em vias de desenvolvimento”, a investigação científica aplicada e, sobretudo, as actividades conhecidas como “outras actividades científicas e técnicas”[iv] têm um papel de decisiva importância se enquadradas numa política nacional que responda às necessidades sociais específicas de cada país.
Alguns aspectos a ter em conta:
- É necessário criar ou salvaguardar as carreiras de investigador, docente-investigador, técnico de investigação e também de operário especializado ― aqueles que podemos designar como operários prototipistas.
- A curiosidade, a criatividade, o espirito crítico e o interesse pela ciência desenvolvem-se e devem ser cultivados na escola desde cedo, se possível, já na escola primária. Ter em especial atenção a educação das raparigas e das mulheres.
- Criar estruturas de assessoria científica junto dos decisores políticos para que sejam feitas escolhas políticas correctas.
- O Estado deve atribuir às instituições públicas de investigação e desenvolvimento missões claramente definidas, através de contratos-programa com financiamento plurianual de montante assegurado, permitindo-lhes gerir com autonomia os recursos de que dispõem.
Frederico Carvalho
5 de Dezembro de 2017
Texto revisto da intervenção no Simpósio “Ciência e desenvolvimento sustentável para a África e pela África” promovido pela Federação Mundial dos Trabalhadores Científicos por ocasião da sua 22ª Assembleia Geral realizada em Dakar, Senegal em Dezembro de 2017, no campus da Universidade Cheikh Anta Diop.
Trad. do francês: Elisabete Nunes
Aditamento
Quatro anos volvidos sobre o Simpósio de Dakar o retrato da situação de fundo e as orientações preconizadas na intervenção reproduzida acima, mantêm-se actuais, no essencial, podendo mesmo em vários aspectos considerar-se que se prossegue em caminhos que conduzem ao desastre. Em abono desta perspectiva transcrevemos abaixo o breve “sumário executivo” da publicação da OXFAM, referida em nota, datada de 17 de Janeiro de 2022[v].
“A fortuna dos 10 homens mais ricos do mundo duplicou desde o início da pandemia. Os rendimentos de 99% da humanidade reduziram-se por causa da COVID-19. As desigualdades – económicas, de género e de raça – tal como a desigualdade que existe entre países, estão a destruir o nosso mundo.
Isto não acontece por acaso, mas por opção: a “violência económica” é o resultado de escolhas políticas estruturais feitas para os mais ricos e poderosos. É causa directa de prejuízos que nos afectam a todos e, mais seriamente, os mais pobres, as mulheres e raparigas, os grupos mais marcados pela origem racial. A desigualdade contribui para a morte de uma pessoa a, pelo menos, cada quatro segundos. Mas podemos reorientar radicalmente as nossas economias, centrando-as na igualdade. Podemos fazer recuar a riqueza extrema através de uma tributação progressiva; investir em políticas públicas eficazes e comprovadamente dirigidas contra a desigualdade; e corajosamente mudar a sede do poder na economia e na sociedade. Se formos corajosos e ouvirmos os movimentos que exigem mudanças, podemos criar uma economia em que ninguém viva na pobreza, nem possua uma riqueza bilionária inimaginável – uma economia em que a desigualdade deixe de matar”.
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[i] Ha-Joon Chang, Ilene Grabel, “Reclaiming Development – An Alternative Economic Policy Manual”, Zed Books, 2004.
[ii] Tom Murphy, “Growth Has an Expiration Date”, Scientific American Blog, November 21, 2011.
[iii] Rui N. Rosa, “Os Terranautas extraviados”, Ed. “Página a Página”, Lisboa, 2012.
[iv] A caracterização destas actividades pode encontrar-se no Manual de Frascati (https://www.oecd.org/sti/inno/frascati-manual.htm)
[v] Nabil Ahmed, Nafkote Dabi, Max Lawson, Megan Lowthers, Anna Marriott, Leah Mugehera, (2022),“Inequality Kills: The unparalleled action needed to combat unprecedented inequality in the wake of COVID-19”, Oxfam, 10.21201/2022.8465, ISBN 978-1-78748-846-5 (https://policy-practice.oxfam.org/resources/inequality-kills-the-unparalleled-action-needed-to-combat-unprecedented-inequal-621341/)