Cooperação científica, guerra e paz
Dina Bacalexi
Filóloga, Engenheira de Investigação no Centre Jean-Pépin, CNRS/ENS[i]
Segundo a definição da OMS «a saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não consiste apenas na ausência de doença ou enfermidade». O mesmo se passa com a Paz — a saúde da humanidade: ela não consiste apenas na ausência de conflito armado, é uma cultura para a qual devemos educar desde a mais tenra idade e cuja construção, um combate constante, assenta entre outras coisas nas lutas sociais. Não há paz real sem justiça social, sem luta contra as desigualdades no mundo.
Desde 24 de fevereiro, uma nova doença agravou o estado de saúde de um mundo já atormentado pela violência em todas as suas formas em vários lugares: a invasão da Ucrânia pela Rússia, com desprezo pelo direito internacional, acordou de maneira trágica os fantasmas de uma Europa que pensava ser um continente de paz e que oportunamente tinha varrido para debaixo do tapete a guerra dos Balcãs (dissolução da ex-Jugoslávia em 1999) levada a cabo por meio das «bombas humanitárias» da OTAN, aliança belicista a dissolver.
A guerra na Ucrânia trouxe de novo à boca de cena a solidariedade e o acolhimento a refugiados e inflectiu as regras desumanas da Europa fortaleza. A solidariedade devia expressar-se também por meio de sanções. A ciência foi « envolvida» nesse processo, como nos tempos em que era claramente um instrumento de propaganda. Mas é assim tão diferente hoje? Será a ciência, como a música, uma «linguagem universal”? A ciência, como a música, suaviza os costumes?
A resposta depende da concepção da ciência. No SNTRS-CGT[ii], sempre denunciámos a ciência-competição que «faz crescer a competitividade” e coloca os cientistas sob a pressão de avaliações cuja futilidade não precisa já de mais demonstração. Cooperação é para nós a palavra-chave. Contudo, como cooperar em situação de guerra?
Aplicando diretrizes ministeriais, o CNRS interrompeu as cooperações científicas com a Rússia, semeando a confusão em certas comunidades: devemos parar de co-publicar? Remover a filiação científica dos nossos coautores? Expulsar os colegas dos projectos? Responder agressivamente ao alerta russo sobre o risco de a ISS (a estação espacial internacional) sair da sua órbita, se a cooperação internacional, da qual é fruto, for interrompida por solidariedade com a Ucrânia?
Certamente, devemos isolar o regime de Putin, o agressor. Mas é preciso ao mesmo tempo, incansavelmente, mesmo sem avistar esperança no horizonte, activar a diplomacia tendo em vista a paz como único objectivo. A verdadeira paz, não a dos falsos pacifistas que enviam armas para a Ucrânia, que exaltam a «defesa europeia» ancorada na OTAN e que rejubilam quando países que antes eram neutros se apressam a pôr-se sob a sua «protecção».
A CGT faz parte do colectivo das Marchas pela Paz, na tradição pacifista do movimento operário. Era esse o sentido da declaração do SNTRS-CGT ao conselho de administração do CNRS no dia 15 de Março[iii]. Mesmo se o termo “diplomacia científica” é muitas vezes mal utilizado, nós interrogámo-nos seriamente sobre esta forma curiosa de participação da nossa organização num esforço de solidariedade, cortando todas as pontes e nem mesmo levando em consideração as expressões corajosas de cientistas russos (ver publicação no Le Monde no dia 25 de fevereiro) para quem é inimaginável trabalhar sem cooperações internacionais, isolar-se num nacionalismo agressivo.
Durante a guerra fria, os cientistas de ambos os blocos não deixaram de cooperar e de querer sair dos muros estabelecidos pelos governos. O acordo de cooperação espacial de 24 maio 1972, entre a NASA e a Academia de Ciências da URSS, é um exemplo significativo: construído pelos próprios cientistas das duas partes, foi então endossado pelos governos como instrumento de convivência pacífica e de desmilitarização do espaço. Foram os cientistas, não os políticos, que quiseram disponibilizar os resultados do seu trabalho não só para os dois países em questão, mas também para todos os povos do mundo.
Graças à mobilização dos físicos nucleares do Projeto Manhattan (incluindo Einstein, Oppenheimer e Bohr), o mundo tomou consciência, à custa da guerra, do perigo mortal da bomba atómica e, por conseguinte, da necessidade de unidade de uma comunidade científica mundial que impusesse políticas de paz. Foi na mesma época, em 19 de Março de 1950, que Frédéric Joliot-Curie surge como primeiro signatário do Apelo de Estocolmo para a proibição absoluta da arma nuclear.
Esse apelo, assinado por milhões de pessoas em todo o mundo, muito para além da comunidade científica, contribuiu seguramente para que Harry Truman, então presidente dos Estados Unidos, se abstivesse de usar a bomba na Guerra da Coreia. O seu sucessor, Dwight Eisenhower, apoiando-se nos cientistas do comité Oppenheimer, abdicava da rivalidade entre as duas superpotências e preconizava, no seu discurso de 8 de Dezembro de 1953, uma ordem nuclear mundial pacífica, a futura AIEA (Agência Internacional de Energia Atómica).
A fundação nacional ucraniana para a investigação científica pediu aos académicos do mundo inteiro para cortar todos os laços com os russos. Se este pedido é compreensível por parte de um país que sofre uma invasão destruidora, e se está fora de questão colocar na balança, de um lado, o trabalho científico, e, de outro, as vítimas da guerra, a cessação da cooperação é um acto “extremo e, portanto, deve ser usado com a maior das precauções”, segundo Robert Quinn, director executivo da rede internacional Scholars at Risk, cujo objectivo é justamente a solidariedade com cientistas perseguidos no mundo inteiro. Esta rede, da qual o CNRS faria bem em aproximar-se em vez de se limitar ao PAUSE (Programa nacional de acolhimento de emergência de cientistas e artistas no exílio, coordenado pelo Collège de France), enquanto trabalha pela solidariedade com a Ucrânia, não perde de vista as liberdades académicas que seriam “engolidas” por uma generalização da noção de cumplicidade. Isso não ajudaria os cientistas que ficaram na Rússia a abrir os olhos para a guerra, sobretudo porque estão sob estreita vigilância. Se a circulação dos conhecimentos é interrompida nos dois sentidos, se não podemos mais produzir em comum, dedicar-nos a esse longo e delicado trabalho de tecer ou manter vínculos, como pode emergir uma oposição aos nacionalismos?(1)
Dir-se-á que, por vezes, os boicotes científicos são eficazes: por exemplo, no caso da África do Sul durante o apartheid, ou o atual BDS (Boicote, Desinvestimento, Sanções) visando empresas e instituições que cooperam com as forças armadas israelitas, ocupantes do território palestino. No entanto, as nossas instituições, aplicando a teoria de dois pesos-duas medidas, não tem nenhuma consideração pelo BDS e continuam a cooperar com os estabelecimentos israelitas cúmplices da ocupação, sob o pretexto de «excelência científica». O CNRS não tem nenhum escrúpulo em assinar uma convenção com a espionagem militar (30.05.2018, ver BRS n°500[iv]), que põe problemas de independência da investigação. Quanto à proposta do SNTRS-CGT ao conselho de administração do CNRS do dia 15 de Março, para que as delegações regionais coordenem as operações de solidariedade com os colegas ucranianos para os acolher e orientar, ficou sem resposta. A iniciativa de um grupo de colegas que abordou o Presidente (do CNRS) sobre a questão do acolhimento foi tratada com leviandade: « o CNRS não é uma ONG e não pode fazer o trabalho das ONGs», o que aliás nunca estivera em questão. Mas o CNRS só pode obedecer ao ministério: cortar o nó górdio é bem mais simples do que entregar-se a um exame minucioso e ponderar as cooperações a terminar ou a manter, no interesse da ciência, dos colegas e da paz.
Numa carta imaginária aos cosmonautas russos na Estação Espacial Internacional, o escritor Frédéric Boyer (la Croix l’Hebdo de 26- 27 de Março) via-os “condenados ” à paz e à cooperação no espaço, quando na Terra […] grassa a guerra ». A investigação científica não pode resolver os problemas geopolíticos de um mundo cuja complexidade hoje supera a da Guerra Fria. Mas pode contribuir para quebrar barreiras, eliminar crispações, lançar o debate, em vez de uma chuva de bombas. E como é, por definição, um trabalho de longo prazo, pode ajudar a pensar o futuro, quando irá ser necessário recolocar na mesa o trabalho interrompido pela guerra. Vamos edificar pontes. Vamos construir a paz.
Dina Bacalexi
CNRS/ENS Centre Jean-Pépin (UMR_8230)
Equipe information scientifique
7 rue Guy Môquet
F-94801 Villejuif Cedex
Tradução : Elisabete Nunes
Revisão: Frederico Carvalho
NOTA OTC
Dina Bacalexi é membro da Direcção Nacional do SNTRS (Syndicat National de la Recherche Scientifique”) e coordena a rubrica internacional do Boletim da Investigação Científica (BRS) que é uma publicação mensal especializada do SNTRS (BRS-Section INTERNACIONALE- Hors des frontières de la France). A OTC mantem há anos contactos regulares com o SNTRS que está, como a OTC, filiado na Federação Mundial dos Trabalhadores Científicos (FMTC). Assim, foi uma das organizações estrangeiras convidada a participar nos dois mais recentes Congressos daquele sindicato em 2018 e 2021 onde interveio por intermédio da Colega da Direcção Maria Teresa Pinheiro.
Dina Bacalexi é membro do Conselho Executivo e do Secretariado Internacional da FMTC.
Àcerca do SNTRS-CGT interessa dizer que é um sindicato focado na defesa do trabalhador científico e do serviço público na área da ciência. Junta pessoal administrativo, investigadores, engenheiros e técnicos, no activo ou aposentados, bem como estudantes de doutoramento das várias instituições públicas francesas de investigação equivalentes aos nossos Laboratóros do Estado, e que incluem :
– o “Centre National de la Recherche Scientifique” (CNRS),
– o “Institut National d’Études Démographiques” (INED),
– o “Institut National de Recherche en Informatique et Automatique” (INRIA),
– o “Institut National de la Santé et de la Recherche Médicale” (INSERM),
– o “Institut de Recherche pour le Développement” (IRD).
– o «Institut français de Recherche pour l’Exploitation de la Mer » (IFREMER) ;
No entender da Direcção, o relacionamento da OTC com associações congéneres de países estrangeiros é um meio privilegiado para manter os nossos associados, tanto quanto possível informados, da situação vivida no seio da comunidade científica em países estrangeiros, em particular, naqueles que nos são próximos, desde logo no plano da cultura e da organização social, mas também, neste caso, da geografia.
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[i] O Centro Jean Pépin, fundado em 1969, é uma Unidade Mista de Investigação (UMR) do CNRS integrada desde 2015 na École Normale Supérieure que depende directamente do Ministro encarregado do Ensino Superior. A carreira de Engenheiro de Investigação está definida na lei francesa. Trata-se de pessoal de formação superior que se ocupa de tarefas de apoio à I&DE, em regra integrado numa equipa de investigação.
[ii] SNTRS-CGT: Syndicat National des Travailleurs de la Recherche Scientifique, sindicato filiado na Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT) de França através da Umion Générale des Ingénieurs, Cadres et Técniciens (UJICT)
[iii] O Conselho de Administração do CNRS (Centre National de la Recherche Scientifique) decidiu em 2 de Março último suspender “todas as novas formas de colaborações científicas com a Rússia” e anular “todos os eventos científicos futuros que envolvam a Rússia”, acrescentando entretanto que “os investigadores russos que trabalham em laboratórios franceses podem prosseguir as suas actividades”.
[iv] BRS-“Bulletin de la Recherche Scientifique”, a publicação do Sindicato Nacional dos Trabalhadores da Investigação Científica de onde reproduzimos o presente artigo, gentilmente cedido pela autora,