“Defesa da Paz, Urgência do Nosso Tempo”
INTERVENÇÃO DE FREDERICO CARVALHO NO DEBATE QUE SE SEGUIU À ASSEMBLEIA DA PAZ
Começaria a minha intervenção com uma citação de um comentador muito presente num dos canais privados de televisão. A citação é esta e é pertinente:
“Estamos a caminho de uma nova ordem mundial…só não sabemos qual ela vai ser”
Neste momento em que, uma vez mais, vivemos a tragédia de uma guerra em solo europeu importa colocar algumas questões. E disse, uma vez mais, porque se todos se recordarão da segunda guerra mundial e alguns porventura da primeira, muitos não lembrarão a mais recente Guerra dos Balcãs que deixou um rasto de cerca de 150 mil mortos e 4 milhões de desalojados.
Pesam sobre o nosso futuro, nosso e das gerações futuras, pesadas ameaças.
A primeira é a ameaça nuclear isto é, a perspectiva de um possível conflito com utilização de armas nucleares.
A segunda é a deriva global em direcção a um mundo sujeito a alterações climáticas que põem em causa a própria vida sobre a Terra.
Proponho-me deixar algumas notas soltas sobre estas questões procurando levantar o debate que é não só desejável como é importante que tenha lugar aqui e lá fora.
Sobre as armas nucleares há que referir:
- Os efeitos instantâneos e de curto prazo e os efeitos de longo prazo, em que se inclui o chamado “inverno nuclear”. Sobre o inverno nuclear há muito a dizer. A própria ideia é pouco conhecida como ficou demonstrado em recentes sondagens internacionais. Dos efeitos instantâneos — morte e destruição — e de curto prazo pela exposição à radiação, temos na memória a tragédia do bombardeamento atómico de Hiroshima e Nagasaki. As sequelas resultantes da exposição à radiação emitida, essas são efeitos de longo prazo. Que o digam os hibakusha. Vem a propósito lembrar que a capital do Japão, Tóquio, fora bombardeada cinco meses antes pela Força Aérea norte-americana que utilizou bombas incendiárias transportadas pelas chamadas Superfortalezas B29. Trezentas e trinta e quatro bombardeiros foram utilizados no ataque que durou três horas e provocou uma tempestade de fogo. Cerca de cem mil pessoas foram incineradas. Foi um marco histórico na II Guerra Mundial que mostra — perdoe-se o humor negro — que quando se trata de matar, a arma nuclear é realmente mais económica: um único bombardeiro faz o serviço.
- A distinção entre armas nucleares estratégicas e tácticas: estas são próprias para ser usadas num teatro de guerra, o que pressupõe que há um e um poder explosivo a guerra em curso, pelo menos dois beligerantes, e se pretende atingir uma área não muito alargada. A duas principais potências nucleares possuem já um número considerável destas armas. Ao contrário, as armas nucleares estratégicas têm um alcance intercontinental — muitos milhares de quilómetros — e um poder explosivo várias vezes superior.
- As munições penetrantes com urânio empobrecido: graças à sua elevada densidade — superior à do chumbo — o poder de penetração dos projécteis de urânio metálico é consideravelmente superior ao das munições correntes. Nisso reside o seu interesse. Entretanto, o urânio, embora fracamente radioactivo, trás consigo outros riscos. O impacto da bala na placa metálica que vai ser perfurada — a blindagem de um tanque, por exemplo — provoca uma enorme elevação de temperatura que leva à fragmentação e combustão do material do projéctil, formando-se finas poeiras radioactivas que podem contaminar uma área considerável de terreno. Assim, a possibilidade de introdução no organismo por ingestão ou inalação de tais poeiras radioactivas não é de todo desprezável. Enquanto a energia da radiação emitida pelo urânio — partículas alfa — não é suficiente para penetrar no organismo humano através da pele, outra é a situação quando o urânio se encontra no interior do organismo. Nessas condições torna-se num agente cancerígeno.
Sabe-se que os EUA recorreram em larga escala a munições de urânio empobrecido na Guerra do Golfo em 1991 e depois na invasão do Iraque em 2003, mas também na Sérvia e no Kosovo. Há notícia de queixas de veteranos das Forças Armadas norte-americanas que combateram nesse ou em alguns desses teatros de guerra que admitem que males que hoje os afectam tenham origem na utilização daquelas munições. Há também notícia de malformações congénitas atribuíveis àquela utilização.
Sobre o Inverno Nuclear
A partir de um certo valor da potência total das bombas detonadas, as explosões e os incêndios subsequentes, dão origem a cinzas ou fuligem que ascende na atmosfera, atinge a estratosfera, espalha-se à volta do globo e bloqueia a luz solar. Trata-se de aerossóis de carbono puro, na forma amorfa, resultante da combustão incompleta da madeira, outras matérias vegetais ou compostos orgânicos como hidrocarbonetos. O bloqueio pode ser suficientemente eficaz para fazer baixar as temperaturas à superfície da Terra para valores negativos, durante anos. Inicia-se assim, um inverno artificial com um severo impacto na produção agrícola. O resultado é uma fome generalizada, independentemente dos locais onde as bombas foram detonadas. A importância dos efeitos deste fenómeno é avaliada por especialistas que nos dizem o seguinte: uma pequena guerra nuclear associada, por exemplo, a um conflito entre duas potências nucleares menores como a Índia e o Paquistão, em que fosse deflagrada uma centena de explosivos nucleares equivalentes à bomba de Hiroshima, provocaria perto de 30 milhões de vítimas mortais directas e mais de 200 milhões de mortes adicionais resultantes de uma quebra da produção agrícola próxima de 10% da produção média anual. Acrescente-se que essa centena de bombas equivaleria a não mais do que 1,5 por cento do arsenal nuclear total detido pelas nove potências que actualmente dispõem da arma nuclear.
Uma guerra nuclear “total” em que os beligerantes fossem os Estados Unidos da América e a Federação Russa, teria como resultado estimado cerca de 400 milhões de vítimas directas e daria origem a cerca de 5000 milhões de vítimas adicionais causadas pela fome. A quebra da produção agrícola aproximar-se-ia de 90% e a temperatura à superfície da Terra cairia cerca de 12 graus centígrados. Nas regiões ditas de clima temperado de maior produtividade agrícola as temperaturas no solo manter-se-iam negativas durante vários anos.
A possibilidade de uma guerra nuclear
A possibilidade de uma guerra nuclear não deve ser excluída. A asserção que remonta há década de 80 do século passado de que “uma guerra nuclear não pode ser vencida e nunca deve ser travada” expressa por Ronald Reagan e Mikhail Gorbachev, na reunião cimeira de Genebra em 1985, e recentemente retomada por Joe Biden em discurso na Assembleia Geral das Nações Unidas, é de algum modo contrariada pelo intensificação da corrida armamentista a que se assiste e que inclui o desenvolvimento de versões melhoradas de explosivos nucleares e dos seus vectores de lançamento. Recorda-se também que em Janeiro de 2022 as cinco potência nucleares com assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas emitiram uma declaração conjunta que reafirma a posição de Reagan e Gorbachev. Entretanto nenhuma das nove potências nucleares manifesta a intenção de subscrever o Tratado sobre a Proibição das Armas Nucleares e também nenhum passo deram no sentido de levar à prática o disposto no Artigo 6º do Tratado de Não Proliferação das Armas Nucleares. De há 20 anos a esta parte tem vindo a ser desmantelado o complexo de tratados bilaterais Rússia-Estados Unidos que instituíam limitações à composição em número e qualidade dos arsenais nucleares das partes signatárias.
O único tratado bilateral ainda formalmente em vigor é o Tratado para a Redução das Armas Estratégicas (Novo START) que deve expirar em 2026. Nele se contem uma cláusula que permite a fiscalização do cumprimento das disposições do Tratado por qualquer uma das partes no território da outra. Entretanto, em Fevereiro último, a Federação Russa anunciou suspender a sua participação no Tratado “alegando um envolvimento directo do Ocidente em tentativas para atacar as suas bases aéreas estratégicas”[i].
A situação é pois complexa e para isso contribui o imperfeito conhecimento das implicações de um conflito nuclear que alguns observadores qualificados dão conta de existir em círculos políticos dirigentes dos EUA e muito provavelmente de outras potências nucleares.
O facto de um conflito nuclear poder ser desencadeado por acidente, falha técnica, incorrecta manipulação de sistemas de controlo ou erro de apreciação de sinais de alerta, não ajuda a descansar o espírito antes aumenta a preocupação com o futuro.
A par disto parece acertado dizer que a grande indústria, em particular, o chamado complexo militar-industrial, que acumula fabulosos lucros em contexto de guerra convencional, não será favorável à eclosão de uma guerra nuclear. Além de que é provável que nesses meios haja um conhecimento mais acertado das consequências de uma guerra nuclear.
Guerra e clima
A questão das alterações climáticas tem a ver com a forma como a Humanidade satisfaz ou procura satisfazer as necessidades energéticas da sociedade. Não nos alargaremos neste ponto mas já que falámos de armamento nuclear diremos, sobre a questão da mitigação dos efeitos das alterações climáticas, que importa ter em conta em que, em minha opinião, o recurso à energia nuclear para fins pacíficos se mostra indispensável para assegurar as necessidades energéticas das sociedades humanas na fase de transição para as chamadas fontes de energia limpa: eólica, solar, hídrica, das ondas e marés, geotérmica e também a ainda distante energia de fusão nuclear, esta última não inteiramente limpa.
As guerras — qualquer guerra — tem efeitos perversos também no plano do clima. Rapidamente se traduzem numa importante fonte dos chamados gases de efeito de estufa, inevitável consequência da queima dos combustíveis fósseis que fazem andar tanques de guerra e outros transportes mecânicos, aviões de combate e navios de guerra. Neste caso, a excepção são os de propulsão nuclear, que — passe o humor — se diria que são amigos do ambiente esquecendo que também eles respondem pela deflagração de incêndios tanto em construções humanas como na cobertura vegetal.
A Paz é indispensável para que os esforços de mitigação das alterações climáticas possam ter êxito.
25 de Março de 2023
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[i] Esta posição parece ter uma ligação directa com o conflito que se trava na Ucrânia.
(https://www.reuters.com/world/what-is-new-start-nuclear-arms-treaty-2023-02-21/)
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