ÉVORA 2023: ABERTURA DO  SIMPÓSIO

 

Simpósio no Colégio Universitário “Luis António Verney”
Universidade de Évora, 5 de Julho de 2023

“A cooperação científica como motor de Paz e Desenvolvimento Sustentável”

A Ciência e a Tecnologia são instrumentos cruciais para alcançar os Objectivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas. Tal depende em grande parte de se encontrar resposta adequada a perguntas como: estatuto social, condições de vida e trabalho dos trabalhadores científicos, incluindo estabilidade no emprego; participação na tomada de decisões e contribuição para a democracia; níveis e mecanismos de financiamento; liberdade e autonomia académicas; entre outras. E, claro, a capacidade de interagir e de cooperar com colegas cientistas de todo o mundo, condição seriamente afectada pela instabilidade geopolítica.

INTERVENÇÃO DE ABERTURA
Prof. António Sampaio da Nóvoa

Bons dias.

É um grande prazer participar neste encontro.

O vosso convite prende-se com o meu envolvimento, enquanto Embaixador de Portugal na UNESCO, na Recomendação sobre Ciência Aberta, aprovada pela Conferência Geral em Novembro de 2021.

Não é minha intenção falar sobre essa Recomendação, mas sim aproveitá-la para destacar alguns pontos ausentes no debate sobre ciência e universidade.

Por um lado, a agenda da Ciência Aberta permite chamar a atenção para a importância da ciência, e de uma ciência partilhada, numa época de tanto negacionismo. Chamar a atenção para a importância da comunicação científica, da cultura científica, a fim de contribuir para a possibilidade de uma humanidade comum, de uma humanidade em comum, em paz com a Terra e em paz com os Outros.

Por outro lado – e este é o ponto a que quero hoje dar ênfase – a agenda da Ciência Aberta chama a atenção para a necessidade de reequilibrar forças e tensões na ciência e nas universidades.

Nas últimas décadas, tornaram-se dominantes discursos e ideologias definidas por três ideias principais: competitividade, eficiência e empreendedorismo.

Essas ideias influenciam profundamente as métricas de avaliação e as políticas de financiamento da ciência, bem como as formas de organização das instituições, com grande impacto na carreira e nas condições de trabalho dos investigadores.

Promover o debate sobre Ciência Aberta é uma estratégia para valorizar outras dimensões e perspectivas, procurando reequilibrar tensões e orientações nas instituições de ciência e ensino superior

  1. Competitividade

A competitividade domina a ciência e o ensino superior. Já não se trata apenas de avaliar a qualidade, mas de promover uma competição sistemática entre as instituições. Todos nós sabemos da influência avassaladora de métricas e rankings, às vezes absurdos, no nosso dia a dia.

A luta por um melhor lugar nestes rankings empurra as instituições para práticas que excluem “tudo” e “todos” que não podem ser medidos por estas métricas, conduzindo também à precariedade e exploração dos cientistas, nomeadamente dos jovens cientistas, com consequências dramáticas para as suas vidas e carreiras.

O aumento brutal, nos últimos anos, de comportamentos eticamente condenáveis, por parte de instituições e pesquisadores, deve ser um grave alerta para todos nós. Veja como “as instituições de investigação na Arábia Saudita estão a manipular os rankings universitários globais, incentivando investigadores de topo a mudar as suas filiações principais, às vezes em troca de dinheiro e muitas vezes com uma fraca obrigação de realizar trabalho significativo”. Não é uma situação incomum, mas sim uma prática corrente no mundo.

Olhar para a Ciência Aberta ajuda-nos a contrariar a competitividade com um esforço por democracia e participação. O trabalho científico não pode ser considerado meramente instrumental para atingir objectivos institucionais ou pessoais, mas deve ser baseado em processos democráticos e participativos, incluindo jovens cientistas, e também mulheres cientistas, muitas vezes excluídas das decisões institucionais. A sua participação na tomada de decisões e contribuição para a democracia – como afirma o programa deste evento – é crucial.

Neste equilíbrio entre competitividade e participação, urge reforçar o pólo da participação, sob pena de perder dimensões centrais da ciência.

  1. Eficiência

A segunda ideia dominante é eficiência. Normalmente, essa ideia vem acompanhada de uma abordagem gestionária e privatizadora. Eficiência quase sempre rima com gerencialismo ou com métodos privados de governo das instituições públicas.

Claro que as duas ideias – competitividade e eficiência – cruzam-se para construir um discurso que questiona o público. É curioso notar que todos os rankings influentes são produzidos por empresas privadas.

A eficiência anda de mãos dadas com as tendências de comercialização, no ensino superior e na ciência. Os dois domínios científicos mais financiados são o militar e o da saúde, onde se concentra grande parte dos interesses comerciais do mundo.

Trazer a agenda da Ciência Aberta é uma forma de reforçar a dimensão pública, a ciência pública, a ciência cidadã. Trata-se de equilibrar abordagens privadas com um reforço da dimensão pública. A ciência, como a universidade, não se destina a prestar serviços a clientes, mas sim a criar um público, a criar públicos.

Grande parte dos ataques à liberdade académica vem de formas burocráticas e autoritárias de governar as instituições. Mas outra parte, igualmente importante, vem da obrigação de alinhar o trabalho científico com tendências de rentabilidade e comercialização, sob pena de, não sendo assim, haver demissão ou desqualificação de cientistas.

A comercialização é necessária, mas “depois”, isto é, após o trabalho científico, se este se revelar benéfico. O que devemos combater é uma ciência comercializada. Neste sentido, urge reforçar o polo público para repor o equilíbrio entre eficiência (e comercialização) e carácter público, para que não se percam dimensões centrais da ciência”.

  1. Empreendedorismo

Finalmente, a terceira ideia dominante e popular é o empreendedorismo. Obviamente, no sentido literal, de risco e inovação, o empreendedorismo é uma iniciativa importante.

Mas, frequentemente, o empreendedorismo tende a funcionar como uma tendência que expulsa a ciência fundamental, básica e, sobretudo, as ciências humanas e sociais.

Talvez valha a pena ler as palavras do presidente da CALTECH, uma das grandes universidades do mundo, reconhecida por sua qualidade e inovação. Ele diz: somos professores, investigadores, não somos gestores, nem empresários, nem promotores de negócios. “Ninguém chega ao CALTECH dizendo ‘quero criar uma empresa’. As pessoas vêm aqui para desfrutar de um ambiente estimulante, aberto e interdisciplinar – para fazer pesquisa básica. Se houver descobertas que tenham aplicação, isso é um benefício colateral”.

Sim, “a inovação verdadeiramente radical precisa de um trabalho paciente, contínuo, de longo prazo…”, precisa acolher e cultivar a ciência, sem esperar resultados imediatos, sem um olhar utilitário.

Depois da ciência, se esta se revelar útil e benéfica, é normal haver desenvolvimentos tecnológicos e outros de natureza empresarial. Mas é outra fase, outro momento. Para serem úteis, as universidades e os centros de ciência precisam de ser diferentes, para afirmar a sua diferença em vez de imitar modelos de negócio.

Também aqui, trazer à colação a agenda da Ciência Aberta é uma forma de equilibrar empreendedorismo com “slow science”, para usar os termos de um conhecido manifesto, promovido por Isabelle Stengers e outros. Não há ciência se não dermos tempo ao tempo.

*   *   *   *   *

Resumindo: pretendi defender a necessidade de reequilibrar forças e tensões no mundo científico e universitário.

Entre competitividade e participação. Entre eficiência e público. Entre empreendedorismo e “ciência lenta”. Poderia ter escolhido outros termos, mas estes são suficientes para mostrar o que quero dizer.

Muito do que tentei transmitir é ilustrado por Nuccio Ordine, filósofo italiano falecido há menos de um mês, a quem quero homenagear, quando aplica às universidades a célebre frase de Juvenal:

“Com a intenção de salvar a vida, as universidades (e a ciência) estão a perder a sua razão de viver”.

Idêntica declaração foi proferida na semana passada por Alberto Amaral, antigo Reitor da Universidade do Porto e durante muitos anos Presidente da Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior, explicando a necessidade de defender a todo o custo a alma das universidades:

“A universidade deve ser protegida de movimentos que querem transformá-la em instrumento da sociedade capitalista, mero instrumento de formação da mão de obra necessária às empresas, reduzida de instituição social a organização prestadora de serviços”.

“A retórica da universidade, que até recentemente se baseava na qualidade científica e na liberdade académica, está a ser substituída por uma de gestão e eficiência. O resultado é uma diminuição da liberdade académica e uma redução do pensamento crítico”.

As palavras de Nuccio Ordine e Alberto Amaral permitem-me avançar para o final da minha apresentação, continuando a recorrer à agenda da Ciência Aberta, como pretexto para sublinhar a importância de uma ciência alinhada com os direitos humanos.

Este ano de 2023 marca o septuagésimo quinto aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos. É um bom momento para promover uma abordagem de direitos humanos, conforme defendido na Recomendação sobre a Ciência Aberta.

Refiro-me aos Direitos incluídos na Declaração de 1948. Obviamente. Há tantos desses Direitos ainda por cumprir, e tantos retrocessos, sobretudo no que diz respeito à democracia e à liberdade, e aos direitos sociais.

Mas o que quero destacar, resumidamente, são seis Direitos que precisam de um novo olhar da nossa parte, da parte da ciência.

Primeiro

Os direitos do planeta, da terra e do oceano. Sem justiça climática não há futuro. Precisamos, mesmo que a frase pareça estranha, de um novo humanismo que seja mais que humano. A ciência tem um histórico notável de alertas e advertências, e tem conseguido despertar a consciência pública, nomeadamente para os programas de decrescimento, mas não tem conseguido influenciar as políticas públicas tanto quanto seria necessário.

Segundo

Direitos digitais, com infra-estruturas públicas e acesso universal, que é hoje condição de cidadania. E também criar a consciência dos tremendos perigos de um digital nas mãos de oligopólios que estão a definir o mundo ou nas mãos de ditaduras muito mais efectivas e temíveis do que no passado.

Terceiro

Os direitos das pessoas, de todas as pessoas, de viver de acordo com suas orientações (sexual, de género ou outra…), bem como os direitos das comunidades à sua cultura, formas de conhecimento e língua. A ciência teve um papel fundamental, também na UNESCO, graças a Claude Lévy-Strauss, ao denunciar a discriminação racial. Hoje, pede-se à ciência que desempenhe o mesmo papel na promoção de uma sociedade convivial.

Quarto

Os novos direitos laborais num momento de aceleração dos processos de automação que, muito provavelmente, deixarão uma grande percentagem de humanos sem trabalho. Como pensar o futuro do trabalho e dos trabalhadores, com humanismo e dignidade? O que pode ser feito pela ciência e a tecnologia?

Quinto

Os direitos dos migrantes, os direitos de circulação e mobilidade, os direitos de todos a aspirar a uma vida melhor, sem a rigidez das fronteiras que matam e discriminam, assumindo também a responsabilidade pelas reparações históricas em relação aos povos dominados e escravizados.

Sexto

Os direitos de todas as gerações numa época de profunda revolução demográfica, com uma esperança de vida a chegar aos 100 anos em poucas décadas. A coabitação de quatro ou cinco gerações vivendo simultaneamente no mesmo espaço-tempo é, sem dúvida, a maior transformação que presenciaremos no século XXI. Precisamos de uma ciência capaz de pensar essa realidade sem precedentes.

 

A lista poderia continuar, mas acho que estes pontos são suficientes para ilustrar como a agenda da Ciência Aberta – onde esses temas estão presentes – pode ser útil para sublinhar a problemática dos direitos humanos.

É por isso também que precisamos de mais cooperação científica Norte-Sul, mas também Sul-Sul. Os indicadores de educação continuam a ser os que melhor explicam as diferenças individuais. Mas os indicadores de ciência são os que melhor explicam e predizem as desigualdades entre países e regiões.

É preciso pensar a ciência como um bem comum global, outro tema da agenda da Ciência Aberta, como ficou claro durante a pandemia.

Ao receber o Prémio Nobel, José Saramago recordou que nesse dia se celebrou o cinquentenário da Declaração dos Direitos do Homem. E disse:

“Pensemos que não existirão direitos humanos sem simetria dos deveres que lhes correspondem. (…) Com a mesma veemência com que exigíamos os nossos direitos, exijamos a responsabilidade pelos nossos deveres. Talvez o mundo pudesse girar um pouco melhor”.

Para que serve a ciência? Modestamente, para tornar o mundo um pouco melhor. Com paz e desenvolvimento sustentável. A ciência é hoje uma das poucas, senão a única, linguagem comum que ainda temos para tentar construir um mundo pacífico, uma humanidade comum.

É por isso que a vossa acção como trabalhadores científicos é tão importante. É por isso que foi um grande prazer para mim estar aqui convosco hoje. Muito obrigado.

António. S. Nóvoa
5 de Julho de 2023

Tradução do original inglês: Frederico Carvalho
Versão Inglesa: https://fmts-wfsw.org/2023/09/evora-2023-opening-of-the-symposium/?lang=en

“Open Science” por Prof António Sampaio da Nóvoa: