Um certo neofeudalismo de face digital
Ensino superior e investigação: combater a precariedade, valorizar as carreiras, democratizar as instituições
Acumulam-se problemas no ensino superior e na investigação que põem em causa a sua missão de serviço público, as condições de trabalho de quem o faz e a natureza democrática das suas instituições. Da necessidade de rever profundamente o Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior (RJIES) até à precariedade reinante e aos despedimentos que se anunciam, passando pelos problemas de saúde física e mental que o quadro organizacional só acentua, só a acção colectiva pode combater as lógicas neoliberais que se impuseram.
A recente leitura de Dark Academia: How Universities Die (1), de Peter Fleming, um dos mais argutos analistas críticos das dinâmicas contemporâneas de transformação do mundo do trabalho, é o mote para uma reflexão sobre as condições de trabalho na academia portuguesa, prestando particular atenção àqueles que são, porventura, os três principais desafios que o ensino superior e a investigação hoje enfrentam em Portugal. Longe de serem novos e, provavelmente, ainda mais longe de serem ultrapassados, o combate à precariedade, a valorização das carreiras e a democratização das instituições são, no plano político-sindical, aqueles a partir dos quais tenho procurado reflectir colectivamente, constituindo prioridades incontornáveis. Como ficará claro, não se trata de desafios autónomos, existindo diversos pontos de contacto e sobreposição, bem como alguns paradoxos e contradições que tornam mais desafiante qualquer intervenção que se procure desenvolver no domínio do ensino superior e na investigação.
Níveis de subfinanciamento crónico que condicionam quaisquer possibilidades de transformação sistémica e integrada de sentido favorável ao mundo do trabalho, num plano inclinado de meio século de contra-revolução neoliberal, constituem um pano de fundo desolador. As transferências estruturais para as instituições de ensino superior, por via do Orçamento do Estado, não são suficientes para pagar salários. Mais preocupante ainda, ao mesmo tempo que estas verbas têm vindo a diminuir, o peso relativo do financiamento competitivo, essencialmente proveniente de fundos europeus, cresce. Portugal perde, assim, margem de manobra para a definição de uma política autónoma e soberana para o ensino superior e a investigação. Sem um reforço do financiamento do sector, dificilmente conseguiremos enfrentar os desafios acima enunciados. Mas este cenário está longe de ser um excepcionalismo português.
Tendo como referência o contexto anglófono, em particular os Estados Unidos e a Inglaterra, onde o capitalismo académico está mais consolidado, Fleming coloca em evidência os efeitos nefastos que mais de três décadas de cortes e desinvestimento, associados à consolidação de uma lógica de funcionamento institucional eminentemente tecnocrata, tiveram sobre o equilíbrio psicológico e emocional de docentes, investigadores e estudantes. Em 2020, antes ainda do aparecimento da pandemia, que seguramente exacerbou as tendências identificadas, já o estudo promovido pela Fenprof sobre precariedade e burnout de docentes e investigadores (2) dava conta de uma situação altamente preocupante no plano da saúde física e mental.
A universidade-empresa, assente nas práticas, rotinas e burocracias do managerialismo e no discurso da «nova gestão pública», instituiu-se como norma, e os seus impactos sobre as vidas, os percursos, as necessidades e a confiança dos académicos são devastadores. Fadiga, exaustão, ansiedade, angústia, sentimentos de desvalorização, alienação e falta de reconhecimento fazem parte de uma nova (e árida) paisagem cultural do trabalho assente na responsabilização dos indivíduos pelas suas vidas profissionais — o culto da meritocracia, da excelência e do empreendedorismo académico são sintomáticos desta mudança — em detrimento da responsabilidade colectiva e da solidariedade (3).
Seja para o investigador que saltita de contrato a termo em contrato a termo, permanentemente em busca de uma fonte de subsistência, como se de um caçador-recolector se tratasse, ao mesmo tempo que tem de (incessantemente) publicar sem perecer, para o receoso docente convidado que busca uma oportunidade e sabe, no seu íntimo que, provavelmente, ela nunca irá chegar, ou para o docente de carreira que se vê bloqueado numa carreira que verdadeiramente não o é, a «desesperança patológica» (4) torna-se regra.
Neste contexto, a atomização e o isolamento, a descrença no papel dos sindicatos e outras organizações representativas dos trabalhadores académicos — no estudo da Fenprof acima mencionado, mais de metade dos inquiridos não eram sindicalizados nem mostravam qualquer interesse em sê-lo —, o resignado desalento e o fatalismo derrotista que predominam na academia tornam-se ainda mais trágicos.
A fragmentação torna difícil a construção de uma agenda transformadora partilhada e, enquanto cada um olhar apenas e só para os seus problemas individuais, está a fragilizar as lutas que é preciso travar. Público contra privado. Universidades contra Politécnicos. Investigadores contra docentes. Vínculos precários contra contratos permanentes. Construir pontes e forjar solidariedades parece uma missão impossível. Não surpreende, pois, que aqueles que Fleming designa como «zombies académicos», seres apáticos e taciturnos, que deambulam pelos corredores das instituições de ensino superior, se tornem cada vez mais habituais, e que o «escapismo individual» (5) se torne mais frequente.
Silêncio das instituições, despedimentos a chegar
No plano institucional, a situação não é melhor. Para as instituições com maiores responsabilidades neste sector — Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas (CRUP) e Conselho Coordenador dos Institutos Superiores Politécnicos —, o silêncio é a regra e a sua intervenção pública pauta-se por um corporativismo atávico e conservador. Como se viu aquando do Programa de Regularização Extraordinária de Vínculos Precários na Administração Pública (PREVPAP) e na cada vez mais urgente necessidade de encontrar uma resposta para os despedimentos que estão para chegar, quando os contratos a termo dos investigadores contratados ao abrigo da norma transitória do Decreto-Lei n.º 57/2016, de 29 de Agosto, cessarem. A tendência, particularmente evidente quando se trata do CRUP, é ser forte com os fracos e fraco com os fortes.
Ao mesmo tempo, a sociedade continua a ter uma percepção idealizada da academia, algo que também contribui para diminuir as possibilidades de construção de uma maioria social de apoio às transformações que é necessário operar na academia portuguesa. Os académicos continuam a ser vistos como uma casta de privilegiados, algo que, efectivamente, tem o seu fundo de verdade numa sociedade com níveis elevados de desigualdade, onde os baixos salários são a regra, e em que os mais jovens têm de possuir níveis de flexibilidade laboral dignos de uma contorcionista do Cirque du Soleil. No entanto, importa sublinhar, como tem feito o economista Eugénio Rosa, que, ao longo da última década, a perda de poder de compra dos docentes do ensino superior universitário, politécnico e do pessoal de investigação científica chega a atingir os dois dígitos (6).
Mas a precariedade laboral é o maior dos flagelos. Tal como Ana Ferreira (7), concebemos a precariedade como um instrumento utilizado para dominar e disciplinar a força de trabalho que, acrescentamos, se tem imbricado de forma insidiosa na academia portuguesa, tornando-se tão natural como o ar que respiramos. Sendo um fenómeno mais expressivo no campo da investigação, onde não é incomum a existência de estudantes pós-graduados que são persuadidos a assegurar trabalho docente, porque se acena com a possibilidade de abertura de concursos para ingresso na carreira e é preciso adicionar linhas aos já bojudos curricula vitae, tem vindo a crescer também no campo do ensino. Em Portugal, existem instituições de ensino superior onde o número de docentes convidados é equivalente, senão mesmo superior, ao dos docentes de carreira, situação altamente preocupante que deveria merecer uma intervenção firme por parte do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (MCTES). Afinal de contas, está em causa a qualidade dos processos de ensino-aprendizagem, da investigação científica e da gestão democrática das instituições. Estranhamente, neste domínio continua a assobiar-se para o ar. A precariedade cresce e, como afirma Mark Fisher em Realismo Capitalista (8), «o trabalho e a vida tornam-se inseparáveis. O capital segue-nos quando sonhamos. O tempo deixa de ser linear, torna-se caótico, esboroando-se em divisões punctiformes (…) Os períodos de trabalho vão sendo alternados com períodos de desemprego. Tipicamente, damos por nós empregados numa sequência de trabalhos de curto prazo, incapazes de planear o futuro» (p. 57).
Por outro lado, quando se trata da valorização das carreiras, o uso do plural pode ser enganador. Na verdade, a carreira de investigação existe apenas de jure. Em Portugal, a investigação, actividade cuja relevância social ficou recentemente patente, por exemplo, quando foi necessário enfrentar a pandemia, é levada a cabo por um verdadeiro exército de trabalhadores precarizados. E é este precariado, que o CRUP considera que deve exercer a sua actividade profissional num quadro de «elevada rotatividade», que desenvolve a maior parte da investigação científica em Portugal, nas mais das vezes em condições de rígida subordinação hierárquica e com autonomia limitada. O aumento generalizado, e nalguns casos impressionante, dos principais indicadores de desempenho científico está longe de ser feito «sobre os ombros de gigantes». É feito sobre os ombros de trabalhadores precarizados, contratados no âmbito de uma grande diversidade de modalidades de contratação atípica, e nem a recente substituição das bolsas de investigação por contratos a termo pode escamotear esta situação. Sendo certo que traduz alguma valorização e dignificação do trabalho, está longe de corresponder à situação mais adequada e justa que deve passar, necessariamente, pela assunção clara de que a criação de condições efectivas para o ingresso na carreira de investigação deve ser o caminho a seguir. A paixão que cada investigador sente pela actividade que desenvolve não pode servir para reproduzir e perpetuar condições laborais indignas.
Mas a valorização das carreiras passa também por outras medidas fundamentais como, por exemplo: i) a revisão dos estatutos das carreiras docentes de modo a que os docentes do ensino superior politécnico tenham cargas lectivas iguais às dos seus colegas universitários, uma mesma remuneração para a categoria de ingresso na carreira (professor adjunto) e vejam da mesma forma reconhecidas salarialmente as vantagens de obtenção da agregação; ii) a separação entre ingresso e promoção na carreira, devendo aquele ocorrer por via de um concurso aberto internacional e esta passar por mecanismos de avaliação de desempenho adequados e justos que permitam a um número maior de docentes aceder ao estatuto reforçado de estabilidade no emprego, como está previsto no Estatuto da Carreira Docente Universitária (ECDU) de 2009 (9); iii) uma maior uniformização dos regulamentos de avaliação de desempenho docente, de modo a que não existam tantas discrepâncias entre instituições de ensino superior e entre as unidades orgânicas de uma mesma instituição, e a que se promovam formas de avaliação que não fiquem reféns do fundamentalismo bibliométrico que, cada vez mais, revela as suas fragilidades e limitações. A obsessão com as métricas (índices de satisfação de estudantes, rankings de editoras, número de citações, índices h, rankings de empregabilidade, prestígio…) tornou-se a regra, contribuiu para reforçar o individualismo académico e o primado do tempo curto da ciência rápida, ambos problemas relevantes a que importa dar resposta.
Por fim, não se esgotando neste gesto, a democratização das instituições de ensino superior implica necessariamente que se proceda à revisão do Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior (RJIES). Desde a sua entrada em vigor, em 2007, assistiu-se a um fortalecimento das formas de gestão autocrática, a uma crescente falta de democracia interna e à concentração de poder num número cada vez mais reduzido de protagonistas. Aquilo que alguns designam por «mandarinato» enraizou-se no tecido institucional da academia portuguesa, a desafeição de muitos académicos relativamente à vida democrática das instituições onde trabalham acentuou-se, bem como o distanciamento entre aqueles (poucos) que ocupam cargos de direcção e aqueles (muitos) que antes eram seus pares. Opacidade e falta de transparência parecem ter-se tornado a regra e não a excepção. Normalizou-se um clima em que os académicos são olhados com suspeição, como se estivessem à espera da mais pequena oportunidade para se furtarem aos seus deveres e responsabilidades. A vida quotidiana de instituições tão hierarquizadas como são as do ensino superior é cada vez mais marcada por um leque diversificado de actividades que podemos associar a uma hiper-burocratização da academia (preenchimento de plataformas, formulários, requisições, pedidos de autorização e outros procedimentos diversos…), algo indissociável de um sistema que premeia, como sugere Fleming, a ordem e a obediência acima de qualquer outra coisa. Qualquer crítica ou dissensão podem gerar represálias e ler um livro, por exemplo, é hoje um luxo visto como desnecessário por muitos burocratas frenéticos, especialistas em multi-tasking constante. Daqui resulta uma sensação de permanente fracasso por parte de muitos académicos. Não andamos longe de um certo neofeudalismo de face digital.
A existência de um protocolo negocial entre o MCTES e os sindicatos do ensino superior cria condições para, ao longo da actual legislatura, enfrentar alguns dos desafios anteriormente discutidos. Mas convém não embarcar em euforias excessivas nem ingenuidades pueris. Num contexto de maioria absoluta do Partido Socialista (PS), com crescentes laivos de maioria absolutista e acentuada degenerescência «social-liberal», o risco de retrocessos nalgumas áreas não é inexistente. Antes pelo contrário como, aliás, sugere a recente divulgação cirúrgica (encomendada?) de um relatório da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) que defende o aumento das propinas em função dos rendimentos.
Como tal, é fundamental que a comunidade académica permaneça vigilante e interveniente, se mobilize e se envolva em dinâmicas de acção colectiva capazes de pressionar o MCTES e o governo para que os processos de mudança em curso se traduzam em ganhos para docentes e investigadores. Doutra forma, será um passeio no parque para o governo e as suas políticas mais lesivas. E isso, nós não podemos permitir.
André Carmo
Geógrafo, professor auxiliar na Universidade de Évora e dirigente sindical do SPGL/FENPROF
O presente artigo foi publicado originalmente no Le Monde diplomatique – edição portuguesa, de Janeiro de 2023. Agradecemos à sua Direcção e ao Autor a autorização para a republicação do artigo no nosso site. A publicação original pode ser acedida aqui: https://pt.mondediplo.com/2023/01/ensino-superior-e-investigacao-combater-a-precariedade-valorizar-as-carreiras.html
Imagem composta: fotos ABIC e OTC
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(1) Peter Fleming, Dark Academia: How Universities Die, Pluto Press, Londres, 2021.
(2) Ana Ferreira, «Ensino superior e ciência: onde “excelência” rima com precariedade», JFSup, n.º 307, Dezembro de 2021, pp. 20-24.
(3) Edgar Cabanas e Eva Illouz, A Ditadura da Felicidade. Como a ciência da felicidade controla as nossas vidas, Temas e Debates, Lisboa, 2019.
(4) Richard Hall, The Hopeless University: Intelectual Work at the end of The End of History, Mayfly Books, Londres, 2021.
(5) Asli Vatansever, At the Margins of Academia. Exile, Precariousness, and Subjectivity. Brill, Leiden, 2020.
(6) Ver www.eugeniorosa.com/shared/docs/2022/07/28-2022-salarios-publicos-privados.pdf?ts=1672402748.
(7) Ana Ferreira, «Living on the Edge. Continuous Precarity Undermines Academic Freedom but Not Researchers’ Identity in Neoliberal Academia», em Asli Vatansever e Aysuda Kölemen (ed.), Academic Freedom and Precarity in the Global North, Routledge, Londres / Nova Iorque, 2023, pp. 79-100.
(8) Mark Fisher, Realismo Capitalista. Não Haverá Alternativa?, 2ª ed., Vasco Santos Editor, Lisboa, 2022.
(9) O ECDU estipula a existência de 50% a 70% de professores com estatuto reforçado de estabilidade no emprego. Actualmente, apenas cerca de um quinto dos professores do ensino superior têm esse estatuto.