RISCOS EXISTENCIAIS: O CASO DAS INTERACÇÕES GUERRA-CLIMA
Frederico Carvalho*
O Relógio do Juízo Final
O Relógio do Juízo Final é um símbolo que representa a probabilidade de uma catástrofe global causada pelo homem. Deve entender-se por “catástrofe global” um evento ou uma sucessão de eventos entre si relacionados que infligiriam danos em grande escala às sociedades humanas podendo mesmo levar à extinção da vida na Terra. O intervalo de tempo que nos separaria do instante em que a catástrofe se torna inevitável é dado pela posição dos ponteiros do relógio simbólico. O Relógio do Juízo Final é um símbolo poderoso nascido no ano de 1947, logo após o bombardeamento atómico das cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki — um dos numerosos crimes de guerra perpetrados no decurso da Segunda Guerra Mundial. O símbolo deve-se a um grupo de cientistas de várias nacionalidades que participou nos trabalhos que levaram à criação da arma nuclear — o chamado “Projecto Manhattan”. Era intenção desses cientistas alertar a opinião pública para as terríveis consequências da utilização não controlada dos avanços tecnológicos para os quais contribuíram. Imediatamente a seguir, o Relógio do Juízo Final foi adoptado pelo Boletim de Cientistas Atómicos fundado por membros desse grupo.
A eclosão de uma hipotética catástrofe global é representada pela meia-noite do Relógio, sendo a opinião do Boletim sobre quão próximo o mundo estará de uma tal catástrofe representada por número de minutos ou segundos a que os ponteiros se encontram da meia-noite. A posição dos ponteiros é reavaliada em Janeiro de cada ano. Em 2022, os ponteiros do Relógio marcavam 90 segundos para a meia-noite. E permanecem desde então a 90 segundos da meia-noite. Não prevemos como será acertada a hora em Janeiro de 2024. Mas as perspectivas não são boas.[1]
Crédito: Jamie Christiani/Bulletin of the Atomic Scientists
Desde a sua criação, no ano de 1947, a ameaça de aniquilação nuclear esteve sempre no centro das preocupações do grupo responsável pelo acerto da posição dos ponteiros do Relógio do Juízo Final. Porém, gradualmente ao longo da última década do século passado e definitivamente a partir do ano de 2007, as alterações climáticas vieram juntar-se à perspectiva da aniquilação nuclear como uma das maiores ameaças à humanidade.
Embora o risco nuclear e as alterações climáticas continuem desde então a ser os principais factores que influenciam a posição dos ponteiros do Relógio, os novos desenvolvimentos do conhecimento científico e certas aplicações tecnológicas emergentes que se considera poderem infligir danos irreparáveis à humanidade, são regularmente monitorizados pelo Conselho de Ciência e Segurança do Boletim. Aí se incluem, entre outros, o desenvolvimento a um ritmo rápido de certas tecnologias ditas disruptivas, nomeadamente no domínio da edição genética, da informática, cibernética e inteligência artificial.
A utilização não regulamentada de tais tecnologias pode levar ao surgimento de novas formas de fazer a guerra, controlar o comportamento humano, perturbar equilíbrios de poder entre nações ou equilíbrios geopolíticos, com graves consequências para a Paz.
Acreditamos na importância de sensibilizar os nossos concidadãos para as ameaças que enfrentamos. É nosso dever como trabalhadores científicos agir de forma responsável nesse sentido. Esta não é uma tarefa fácil quando se vive num ambiente onde ocorre uma furiosa “guerra da informação”.
Há quatro anos, Rachel Bronson, Presidente do Conselho de Ciência e Segurança do Boletim de Cientistas Atómicos, classificou a actual situação de mundial no que respeita a segurança, como uma “nova anormalidade”. Ela escreveu (citação): “O novo anormal descreve um momento em que factos se tornam indistinguíveis da ficção, minando as nossas próprias capacidades de desenvolver e aplicar soluções para os grandes problemas do nosso tempo. O novo anormal corre o risco de encorajar os autocratas e embalar os cidadãos em todo o mundo num perigoso sentimento de indiferença e paralisia política”.[2]
A ameaça da guerra de informação é muito real nos nossos dias. É necessário um esforço da nossa parte – trabalhadores científicos – para conceber e praticar formas inteligentes de combate contra essa ameaça.
COMO CONTRIBUI A GUERRA PARA A MUDANÇA CLIMÁTICA?
À medida que se torna consensual considerar as alterações climáticas, a par da perspectiva de uma guerra nuclear, como uma das duas mais perigosas ameaças imediatas à sobrevivência das sociedades humanas num planeta com condições de suportar a vida ou, por outras palavras, condições nas quais a vida organizada continua a ser possível, é natural questionar os efeitos de múltiplos conflitos militares a que se assiste, correntemente referidos como formas de “guerra convencional”.
Conflito convencional
O CO2 é o maior contribuinte para as emissões totais de gases com efeito de estufa (GEE): é responsável por cerca de ¾ do total. As emissões de carbono militares representam uma fracção não desprezável da pegada de carbono das actividades humanas, ou seja, da quantidade de gases de efeito de estufa (incluindo CO2 e metano) libertados na atmosfera em resultado dessas actividades.
Estimar um valor global para a pegada de carbono dos militares não é uma tarefa fácil. Os dados disponíveis são escassos e incompletos. Existem boas razões para isso.
O Protocolo de Quioto de 1997, que estabeleceu pela primeira vez metas de redução das emissões de carbono para os países industrializados, envolveu vários compromissos. Um deles, o de que as emissões das forças militares seriam excluídas das metas acordadas. O principal negociador dos EUA afirmou mais tarde que, em Quioto, a delegação tinha conseguido tudo o que o Departamento de Defesa dos EUA tinha descrito como necessário para “proteger as operações militares”. Nomeadamente, “isentar actividades militares decisivas em território estrangeiro de quaisquer metas de emissões, incluindo isenções para combustíveis de bunker utilizados na aviação internacional e no transporte marítimo e emissões resultantes de operações multilaterais”.[3]
Anos mais tarde, em 2015, a isenção negociada desapareceu formalmente das regras operacionais do Acordo Climático de Paris. Na verdade, foi apenas uma indulgência de faz-de-conta, uma vez que a decisão de incluir ou não as emissões militares de carbono é deixada à vontade de cada país.
Uma avaliação realista da contribuição das forças armadas e da guerra para as emissões de GEE tem de incluir emissões de diversas fontes. O que vem imediatamente ao espírito é aquela que está ligada ao combate real, ou seja, a que resulta do consumo de combustíveis fósseis indispensável à operação de todos os tipos de veículos, no ar, na terra e no mar, quando a guerra está em curso. No entanto, como salientou o Dr. Stuart Parkinson, as emissões resultantes da utilização directa de equipamento militar num teatro de guerra são apenas parte da história[4]. Na verdade, também devem ser contabilizadas as emissões de carbono da indústria de armamento, que produz o equipamento militar, bem como as associadas à extracção das matérias-primas utilizadas por essa indústria. As emissões totais, incluindo todos os aspectos relacionados com as operações militares, devem também considerar o consumo de combustível associado à manutenção e operações de rotina em bases militares e outros estabelecimentos militares. É seguro dizer que, em tempos de paz, o peso destas componentes das emissões de GEE no total das emissões militares é particularmente significativo no caso dos países com maiores despesas militares, ou seja, e nesta ordem, EUA, China, Rússia, Índia e Arábia Saudita. Os EUA são de longe o maior gastador [5]. De acordo com Neta C. Crawford, da Universidade de Boston [6], os estabelecimentos militares que “suportam às operações e a capacidade de projecção de força dos EUA ” envolvem “mais de 560 mil instalações com mais de 275 mil estruturas edificadas em 800 bases, cobrindo cerca de 27 milhões de acres[7] de terra nos EUA e através do mundo“.[8]
Neste ponto, é justo dizer que outros grandes gastadores militares são muito menos transparentes no que diz respeito aos dados disponíveis para uma estimativa das respectivas emissões de carbono militares.
Quando uma guerra é travada, os impactos da guerra nas alterações climáticas e no ambiente vão muito além do resultado directo do facto de a quantidade de emissões de GEE aumentar inevitavelmente como consequência do dispêndio directo de energia necessário para manter a máquina de guerra em funcionamento. Outros impactos sociais imediatos e de longo prazo devem ser considerados.
Um breve resumo de tais impactos deve incluir [9]:
- Fogos causados pelas operações militares em instalações de extracção ou processamento de petróleo ou outros combustíveis fósseis;
- Incêndios provocados pelo bombardeamento de áreas urbanas;
- Emissões de carbono provenientes de incêndios do coberto vegetal em áreas de conflito, principalmente florestas;
- Cuidados de saúde para sobreviventes (civis/militares);
- Reconstrução pós-conflito: custos de carbono da gestão de detritos, remediação de áreas contaminadas e reconstrução;
- Mudanças radicais e, em alguns casos, duradouras, do uso do solo em consequência de conflitos, e aumento do recurso de emergência a fontes de energia poluentes (carvão e madeira, principalmente).
Stuart Parkinson, Director Executivo da organização independente com sede no Reino Unido “Scientists for Global Responsibility”, já citado acima, alguém que escreveu extensivamente sobre o assunto que estamos a tratar, estima que a pegada de carbono militar total poderia ser 6% da pegada de carbono total do mundo que é cerca de 37 Gt de CO2 equivalente. Como salienta, “isto tornaria o sector, mais poluente do que, por exemplo, a aviação civil”.[10]
Pensamos que deve ser incentivada a investigação no desenvolvimento de metodologias para avaliar os custos climáticos daquilo que entendemos por combate ou conflito convencional. Estimativas conservadoras da contribuição dos militares para as emissões de GEE mostram que tais emissões, de facto, tendem a anular os escassos avanços obtidos através da aplicação de acordos internacionais destinados a reduzir as emissões.
De acordo com um relatório da Oil Change International[11], a guerra do Iraque foi responsável pela libertação de 141 milhões de toneladas de carbono nos seus primeiros quatro anos. Numa base anual, isso superou as emissões de 139 países nesse período, ou, segundo o relatório, quase o mesmo que colocar mais 25 milhões de carros nas estradas dos EUA durante um ano. O documento concluiu que os gastos projectados dos EUA na guerra do Iraque poderiam cobrir todos os investimentos globais em energias renováveis necessários para travar as tendências de aquecimento global no período até 2030.[12]
Na próxima seção trataremos dos efeitos climáticos da guerra nuclear. Já neste ponto, desejamos expressar enfaticamente a convicção de que a guerra convencional é incompatível com o sucesso de quaisquer esforços de mitigação para combater eficazmente a ameaça representada pelas alterações climáticas. Assim, seguir o caminho definido pela prossecução do “business as usual” – que inclui a guerra – é em si mesmo uma ameaça existencial para a humanidade. A sobrevivência dependerá de mudanças revolucionárias na sociedade, da abolição da guerra e do estabelecimento da paz.
Guerra nuclear
A possibilidade de uma guerra nuclear não deve ser excluída. A afirmação de que “uma guerra nuclear não pode ser vencida e nunca deve ser travada” remonta à década de 1980, quando Ronald Reagan e Mikhail Gorbachev se reuniram na Cimeira de Genebra em 1985. Foi retomada recentemente por Joe Biden ao dirigir-se à Assembleia Geral das Nações Unidas em Setembro de 2022 [13]. Entretanto, testemunhamos o desenvolvimento de uma corrida armamentista renovada que inclui o desenvolvimento de versões melhoradas de explosivos nucleares e dos seus vectores de lançamento. Recorde-se também que em Janeiro de 2022, as cinco potências nucleares com assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas, emitiram uma declaração conjunta que espelha a posição de Reagan e Gorbachev. Em 2017, a Assembleia Geral das Nações Unidas adoptou o Tratado sobre a Proibição de Armas Nucleares. O Tratado entrou em vigor em Janeiro de 2021. No entanto, nenhuma das actuais nove potências nucleares assinou o Tratado. Durante as negociações, nenhum estado com armas nucleares manifestou apoio a um tratado de proibição; na verdade, vários deles, incluindo os Estados Unidos e a Rússia, manifestaram uma oposição explícita. Além disso, após a adopção do tratado, as missões permanentes dos Estados Unidos, do Reino Unido e da França emitiram uma declaração conjunta relativa ao tratado indicando que não pretendiam “assinar, ratificar ou alguma vez tornar-se parte dele“.
Neste contexto, vale também a pena notar que não foram tomadas até hoje quaisquer medidas no sentido de levar à prática as disposições do Artigo 6 do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares. E, por último, mas não menos importante, ao longo dos últimos 20 anos, o complexo de tratados bilaterais Rússia-Estados Unidos que impunham limitações à composição em número e qualidade dos arsenais nucleares das partes signatárias veio a ser consistentemente desmantelado.
O actual cenário geopolítico, onde assistimos a um confronto global multiforme entre grandes potências mundiais, não justifica grande optimismo quanto ao futuro.
Na verdade, alguns observadores bem colocados acreditam que no sistema de defesa global dos EUA – e temos em mente: os militares, o governo, os grupos de reflexão ou “think tanks” e a indústria – muitos promovem a percepção de que uma guerra nuclear pode ser travada e vencida[14]. Os autores aqui citados acrescentam: “Além disso, fazem-no com uma voz influente, respeitada, bem financiada e tratada com deferência. As mensagens metódicas da liderança da defesa dos EUA dirigidas à sua força de trabalho ajudam a moldar as opiniões desse enorme círculo eleitoral multissectorial que inclui membros da advocacia, futuros dirigentes e decisores. Promove uma visão das políticas de armas nucleares que intensifica e acelera a nova corrida armamentista nuclear que toma corpo entre os Estados Unidos, a China e a Rússia”.
Contudo, muitos especialistas acreditam, tal como nós, que “é pouco provável que uma guerra nuclear limitada permaneça limitada. O que começa com um ataque nuclear táctico ou uma troca nuclear retaliatória entre dois países, pode evoluir para uma guerra nuclear total, terminando com a destruição imediata e total (das partes beligerantes)”.[15]
Tal cenário é compatível com a extinção da vida no planeta, pelo menos nas suas formas biologicamente mais evoluídas.
Efeitos de uma explosão nuclear isolada
Consideremos os efeitos da deflagração no ar, digamos, a cerca de 800 m acima do solo, de um único explosivo nuclear de 300 kt equivalente de TNT – um valor que é cerca de dez vezes o da potência combinada das bombas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki.[16]
A explosão nuclear tem efeitos imediatos, efeitos de curto prazo e efeitos de longo prazo. Os efeitos imediatos são a consequência de reacções nucleares no interior da bomba que levam a uma emissão de radiação durante uma fracção de segundo, constituída principalmente por raios gama altamente energéticos e neutrões rápidos. No caso do explosivo de 300 kt equivalente de TNT, as consequências letais desta emissão de radiação de curta duração podem fazer-se sentir numa área de cerca de 2 km de raio centrada no “ponto crítico” — “ground zero” em inglês — ponto em que a vertical do centro da explosão toca o solo.
Alguns microssegundos após a explosão, parte da energia é libertada na forma de raios X. Os raios X provocam um intenso aquecimento do ar no ambiente circundante. Dentro de alguns segundos, uma bola de fogo de ar superaquecido é criada dentro da qual um plasma quente é formado devido à temperatura e pressão extremas. A temperatura é semelhante à temperatura no núcleo do sol (10 milhões de graus centígrados). A bola de fogo ascende no ar originando posteriormente a conhecida nuvem em forma de cogumelo. Esta, que pode ter um diâmetro superior a 600 m, permanece intensamente brilhante por vários segundos causando cegueira da vista desprotegida. Também provocará incêndios e causará queimaduras graves até 13 km do ponto crítico.[17]
A bola de fogo sobreaquece a atmosfera ao seu redor. Como consequência, o ar expande-se formando-se uma poderosa onda de choque de grande poder destrutivo que começa a afastar-se do local da explosão a uma velocidade que é inicialmente mais rápida que a velocidade do som, mas diminui rapidamente à medida que transfere energia para as camadas circundantes da atmosfera. Menos de 10 segundos após a explosão, a cerca de 5 km do ponto crítico, uma sobrepressão de ar de 0,3 atmosfera ainda é suficiente para destruir a maioria dos edifícios e grandes estruturas e causar mortes generalizadas.
À medida que a bola de fogo sobe na atmosfera, arrefece, tornando-se a cabeça da conhecida nuvem em forma de cogumelo. A nuvem transporta um grande número de diversas espécies atómicas altamente radioactivas formadas durante a explosão em resultado de reacções nucleares que ocorrem dentro dos materiais estruturais do invólucro da bomba. À medida que a nuvem é soprada pelo vento, estas “cinzas” radioactivas começam a depositar-se no solo, espalhando a contaminação radioactiva por uma vasta área. No caso de uma arma de 300 kt, a área contaminada pode abranger milhares de quilómetros quadrados na direcção do vento em relação ao local da detonação. Para além dos perigos devidos à irradiação externa directa do corpo ocorrida nos instantes iniciais, existe um risco biológico a longo prazo associado à possível inalação de poeiras radioactivas ou à ingestão de água ou alimentos contaminados.
O caso de um conflito nuclear
Quando falamos de “conflito nuclear” temos em mente um conflito em que são lançadas armas nucleares por pelo menos duas potências nucleares concorrentes. Queremos centrar-nos nas consequências a longo prazo de um conflito deste tipo, conhecidas como “inverno nuclear”. O conceito de inverno nuclear surgiu na década de 80 do século passado, quando alguns cientistas da então URSS e dos EUA pesquisaram o assunto usando os modelos então disponíveis que permitiam prever os efeitos climáticos globais da deflagração de uma série de explosivos nucleares em sequência rápida. Cientistas americanos mostraram pela primeira vez que um inverno nuclear poderia ocorrer em consequência da emissão de fumos produzida pelos enormes incêndios florestais desencadeados pelas explosões nucleares. Mais tarde, dois cientistas russos conduziram a primeira modelação climática tridimensional, mostrando que as temperaturas globais cairiam mais em terra do que nos oceanos, causando potencialmente um colapso agrícola em todo o mundo [18]. Os resultados demonstraram a importância de prosseguir estes esforços de investigação, de modo a obter resultados mais precisos que justifiquem uma maior confiança nos resultados das simulações.
Os modelos evoluíram com o tempo e cálculos recentes mostram que os efeitos da guerra nuclear seriam mais duradouros e mais sérios do que se pensava anteriormente.
É lamentável que, como parece, os círculos dirigentes das principais potências dêem pouca atenção ao fenómeno do inverno nuclear. Os decisores e o público podem estar na ignorância das consequências climáticas globais mais graves de uma guerra nuclear, que poderá levar a uma fome global. Assim, chamar a atenção dos seus concidadãos para os perigos da guerra nuclear, de uma forma responsável, é um dos principais desafios enfrentados por trabalhadores científicos socialmente responsáveis.
Apresentaremos aqui brevemente a sequência de eventos que podem levar à catástrofe de um inverno nuclear. Abaixo, utilizamos extensivamente informações colectadas do excelente artigo de François Diaz-Maurin intitulado “Sem ter para onde fugir. Como uma guerra nuclear o levaria à morte — e a quase todos os outros”, publicado no “Boletim dos Cientistas Atómicos” (ver nota 17 abaixo).
Uma sequência de explosões nucleares irá gerar tempestades de fogo em áreas urbanas, bem como incêndios florestais massivos. O fumo dos incêndios injectará grandes quantidades de fuligem[19] na estratosfera, a segunda camada da atmosfera, que se estende desde cerca de 7 a 17 km da superfície da Terra e atinge cerca de 50 km na sua parte superior. Acima da estratosfera encontra-se a mesosfera, última camada da atmosfera. Os movimentos do ar na estratosfera são horizontais o que propícia a distribuição de quaisquer poeiras por toda a superfície terrestre. A fuligem injectada na estratosfera inferior, é aquecida pela luz solar e eleva-se a grandes altitudes. Modelos recentes utilizados para simular o fenómeno mostram que a fuligem das tempestades de fogo provocadas pelas explosões nucleares subiriam muito mais alto na estratosfera do que se imaginava, até uma altitude à qual os mecanismos de remoção de fuligem sob a forma de “chuvas negras” são lentos[20]. Uma vez aquecida pela luz solar, a fuligem pode elevar-se a altitudes de até 80 quilómetros, penetrando na mesosfera [21]. A fuligem injectada na alta atmosfera pode impedir que a luz solar atinja a superfície da Terra, levando a uma diminuição das temperaturas que podem permanecer anormalmente baixas durante vários anos no caso de detonação massiva de explosivos nucleares.
Na estratosfera, a presença de aerossóis de carbono negro altamente absorventes resultaria em temperaturas estratosféricas consideravelmente aumentadas. Tal levará a um esgotamento da camada de ozono que protege os seres humanos e outras formas de vida, na Terra, dos graves efeitos ambientais e de saúde da radiação ultravioleta. Este fenómeno poderia manter-se durante vários anos.
As mudanças na atmosfera, nas áreas emersas e nos oceanos, resultantes de uma guerra nuclear, terão consequências profundas e de longo prazo na produção agrícola global e na disponibilidade de alimentos.
Além disso, os impactos directos a longo prazo da radioactividade nos seres humanos ou a contaminação radioactiva generalizada dos solos e alimentos que se seguiria a uma guerra nuclear têm de ser considerados, além dos efeitos disruptivos acima mencionados sobre o sistema Terra, que inclui terra, oceanos, atmosfera e pólos, e os. ciclos naturais do planeta – o carbono, a água, o azoto, o fósforo, o enxofre e outros ciclos – e os processos profundos da Terra.
O limiar do número de detonações de explosivos nucleares necessário para desencadear o inverno nuclear é significativamente inferior ao das armas existentes nos arsenais mundiais. Estima-se que os EUA dispõem de uma capacidade destrutiva total de todo o arsenal nuclear (operacional e em armazém) de pouco menos de 780 Mt equivalente de TNT. Admitindo que a Federação Russa tenha uma capacidade total comparável, então os três cenários descritos no infográfico abaixo representam 0,1%, 1,6% e 28% do total combinado dos arsenais nucleares dos dois estados[22]. Como mostra o gráfico, o número de mortes por fome generalizada pode situar-se entre 10 e 20 vezes o número de mortes directas. Os resultados que o gráfico apresenta devem ser tratados como indicativos sugerindo a importância de prosseguir o trabalho de investigação no sentido do aperfeiçoamento dos modelos climáticos usados [23] pelos autores
Paul Ingram, do “Centro para o Estudo de Risco Existencial” da Universidade de Cambridge, construiu o infográfico aqui reproduzido para uso no quadro de uma sondagem de opinião destinada a avaliar o grau de consciência da população sobre os prováveis efeitos climáticos globais do “inverno nuclear” decorrentes de uma utilização massiva de explosivos nucleares. A conclusão tirada foi a de que o grau de consciência dos inquiridos é baixo e não corresponde à gravidade dos riscos existentes.
Frederico Carvalho
12 de Setembro de 2023
*O presente artigo é uma versão revista do trabalho apresentado na 94ª Reunião do Conselho Executivo da Federação Mundial dos Trabalhadores Científicos que teve lugar em Évora de 2 a 7 de Julho de 2023: https://otc.pt/wp/2024/06/29/war-climate-interactions/
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[1] A hora, logo a posição dos ponteiros do Relógio, é decidida em conjunto pelos membros do chamado Conselho de Ciência e Segurança do Boletim dos Cientistas Atómicos e um Conselho Consultivo constituído por um conjunto de notáveis nos domínios da ciência e da segurança que, neste momento, inclui dez personalidades galardoadas com o Prémio Nobel
[2] https://thebulletin.org/doomsday-clock/2019-doomsday-clock-statement/
[3] https://www.sgr.org.uk/resources/carbon-boot-print-military-0
[4] Ver a nota anterior
[5] Fonte: SIPRI. Dados de 2022. A despesa militar dos EUA corresponde a 60% da despesa total do total dos 5 países. O Reino Unido, a Alemanha e a França, importantes produtores e exportadores de armas, aparecem em 6º, 7º e 8º lugares, respectivamente.
[6] Neta C. Crawford é professora catedrática de Ciência Política na Universidade de Boston e co-directora do projecto “Custos da Guerra” nas universidades de Brown e Boston.
[7] Aproximadamente 110 mil km2 ou cerca de 120% da área de Portugal continental
[8] Neta C. Crawford, “Pentagon Fuel Use, Climate Change, and the Costs of War”, Boston University Updated and Revised, 13 November 2019
https://watson.brown.edu/costsofwar/files/cow/imce/papers/Pentagon%20Fuel%20Use%2C%20Climate%20Change%20and%20the%20Costs%20of%20War%20Revised%20November%202019%20Crawford.pdf
[9] Ver “How does war contribute to climate change?”, CEOBS-Conflict and Environment Observatory, June 14, 2021 Conflict and Environment Observatory (https://ceobs.org/how-does-war-contribute-to-climate-change/ ) e “The carbon boot-print of the military”, Stuart Parkinson, Responsible Science Journal nº2, Jan. 8, 2020 (updated 2022) (https://www.sgr.org.uk/resources/carbon-boot-print-military-0
[10] Ver nota anterior
[11] https://priceofoil.org/
[12] “A Climate of War The war in Iraq and global warming”, ADVANCE EDITION, Oil Change International March 2008, see also https://www.theguardian.com/environment/2015/dec/14/pentagon-to-lose-emissions-exemption-under-paris-climate-deal
[13] https://www.whitehouse.gov/briefing-room/speeches-remarks/2022/09/21/remarks-by-president-biden-before-the-77th-session-of-the-united-nations-general-assembly/
[14] “US defense to its workforce: Nuclear war can be won”, Alan Kaptanoglu, Stewart Prager, The Bulletin of the Atomic Scientists, February 2, 2022 (https://thebulletin.org/2022/02/us-defense-to-its-workforce-nuclear-war-can-be-won/ )
[15] Ver Nota 17 mais abaixo
[16] Esta é a energia de explosão da carga nuclear de um míssil Minuteman III actualmente em serviço no arsenal nuclear dos EUA
[17] “Nowhere to Hide. How a nuclear war would kill you —. and almost everyone else”, François Diaz-Maurin, The Bulletin of Atomic Scientists, October 20, 2022
https://thebulletin.org/2022/10/nowhere-to-hide-how-a-nuclear-war-would-kill-you-and-almost-everyone-else/#section1
[18] Ver Nota anterior
[19] A fuligem é uma substância pulverulenta ou escamosa de cor negra profunda que consiste em grande parte de carbono amorfo, resultante da queima incompleta de matéria orgânica.
[20] “Environmental consequences of nuclear war”, Owen B. Toon; Alan Robock; Richard P. Turco, Physics Today 61 (12), 37–42 (2008)
[21] “Nuclear Winter Responses to Nuclear War Between the United States and Russia in the Whole Atmosphere Community Climate Model Version 4 and the Goddard Institute for Space Studies ModelE”, Joshua Coupe, Charles G. Bardeen, Alan Robock, Owen B. Toon, Journal of Geophysical Research: Atmospheres, Volume 124, Issue 15 p. 8522-8543, July 23, 2019
[22] “Public awareness of nuclear winter and implications for escalation control “, Paul Ingram, Centre for the Study of Existential Risk, University of Cambridge, 14 February 2023 https://www.cser.ac.uk/media/uploads/files/Poll-final.pdf
Ver também: “Global food insecurity and famine from reduced crop, marine fishery and livestock production due to climate disruption from nuclear war soot injection”, Xia, Lili, Alan Robock, Kim Scherrer, Cheryl S. Harrison, Benjamin Leon Bodirsky, Isabelle Weindl, Jonas Jägermeyr, Charles G. Bardeen, Owen B. Toon, and Ryan Heneghan, 2022: Nature Food, 3, 586-596, doi:10.1038/s43016-022-00573-0
https://www.nature.com/articles/s43016-022-00573-0
[23] Ver nota anterior
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