DECRESCER PARA SOBREVIVER

 


Cooperação científica e Paz num ambiente geopolítico instável

SOBRE A NECESSIDADE VITAL DE INCLUIR O DECRESCIMENTO NA AGENDA DA INVESTIGAÇÃO
Contribuição para um debate necessário
Frederico Carvalho

Vivemos tempos difíceis. Não é novidade para ninguém que os recursos da Terra são limitados. Todos os recursos que a humanidade utiliza são limitados. No entanto, não é o risco de exaustão que deve ser a nossa principal preocupação. A principal questão é para que finalidade estão a ser utilizados esses recursos e a que ritmo estão a ser consumidos. Este é um problema civilizacional ou, se se preferir, das formas como as sociedades humanas estão organizadas.

Isto está claramente expresso na seguinte citação:
A economia global está estruturada em torno do crescimento – a ideia de que as empresas, indústrias e nações devem aumentar a produção todos os anos, independentemente de ser ou não necessário. Esta dinâmica está a impulsionar as alterações climáticas e o colapso ecológico. As economias de rendimento elevado, e as empresas e classes ricas que as dominam, são as principais responsáveis por este problema e consomem energia e materiais a taxas insustentáveis”.[1]

As mentes dos decisores são assombradas pela perspectiva de que as taxas de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) nacional possam abrandar. No entanto, é isso que devemos procurar e realmente compreender o que é necessário para garantir uma vida sustentável para as gerações futuras: o que temos de alcançar não são taxas de crescimento do PIB mais baixas, mas sim taxas de crescimento negativas, ou seja, o decrescimento. Não é fácil seguir um tal caminho e temos de o reconhecer, tal como o faz hoje um número crescente de investigadores, nossos colegas, ao procurar uma saída para a actual situação.

Como devem saber, a utilização do PIB como indicador de referência para a saúde das economias nacionais e global, embora ainda largamente utilizado, é controversa e está a ser cada vez mais contestada por vários investigadores proeminentes. activistas sociais e políticos.

Há dois anos, no Relatório “A Nossa Agenda Comum”, o Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres, deixou clara a inadequação da utilização do PIB para aquele fim ao salientar que “absurdamente, o PIB aumenta quando há sobrepesca, desmatamento de florestas ou queima de combustíveis fósseis. Estamos a destruir a natureza, mas contamo-lo como um aumento de riqueza. Há décadas que estas questões são discutidas. É o momento de nos comprometermos colectivamente com índices de avaliação complementares. Sem uma tal mudança fundamental, as metas que fixamos em relação à biodiversidade, à poluição e às alterações climáticas não serão alcançáveis”.[2]
Nem nenhum dos restantes Objectivos de Desenvolvimento Sustentável estabelecidos pela ONU será alcançável – poderia ter acrescentado o Secretário-Geral.

Consideremos por um momento a questão da saúde.
Um relatório publicado pela Organização Mundial da Saúde há cerca de um ano [3]salienta que se os decisores políticos não tivessem uma “obsessão patológica com o PIB”, gastariam mais para tornar os cuidados de saúde acessíveis a todos os cidadãos.
As despesas com a saúde não contribuem para o PIB da mesma forma que, por exemplo, as despesas militares, afirmam os autores do Relatório liderado pela Professora Mariana Mazzucato, Presidente do Conselho da OMS sobre Economia da Saúde para Todos.
Naturalmente centrado nos problemas de saúde, tanto a nível global como local, o relatório refere-se ao PIB como “uma medida inadequada de progresso que recompensa perversamente actividades geradoras de lucros que prejudicam as pessoas e destroem ecossistemas, minando o que realmente valorizamos”. Salienta que o conceito leva, por inerência, a consequências como a sua inflação através de gastos desnecessários em serviços de saúde, medicamentos ou dispositivos, que podem prejudicar ou não fazer diferença para a saúde das pessoas. Ao mesmo tempo, que ignora muitas actividades cruciais vitais para a saúde e para a própria sobrevivência dos seres humanos e do planeta. Para além disso, uma vez que uma economia centrada no lucro não atribui um valor monetário à prestação de cuidados, cuidados não remunerados a crianças e idosos não são tidos em conta e os cuidadores ou assistentes sociais são geralmente mal remunerados. Além disso, a maior fatia do trabalho a nível global – o trabalho não remunerado tradicionalmente realizado pelas mulheres – não é considerado. O Relatório sublinha correctamente o facto de “os sistemas de contabilidade nacionais terem aplaudido e recompensado a destruição e exploração dos ecossistemas da Terra na procura de um PIB maior”.

Como já foi dito, um caminho possível para o decrescimento não é de todo fácil. Exigirá um esforço sustentado de investigação multidisciplinar por parte da comunidade científica. E só poderá ter sucesso se obtiver um grande apoio social. A experiência diz-nos que destas duas condições exigentes, a primeira parece ter maiores probabilidades de ser alcançada.

Alguns de nós talvez se lembrem da publicação, há 50 anos, do livro de 200 páginas “Limites do Crescimento”, que expunha os resultados de um estudo realizado pelo grupo System Dynamics do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, em Cambridge, EUA. O estudo trouxe ao mundo uma mensagem desagradável: o crescimento económico e populacional contínuo esgotaria os recursos da Terra e levaria ao colapso económico global até 2070. O estudo foi provavelmente o resultado dos primeiros estudos de modelização para prever os impactos ambientais e sociais da industrialização[4]. Citando o editorial da revista Nature de Maio de 2022:
Para a época, esta era uma previsão chocante e não caiu bem. (…) Foi quase uma heresia, mesmo nos círculos de investigadores, sugerir que alguns dos fundamentos da civilização industrial – a extracção de carvão, o fabrico de aço, a perfuração de petróleo e a pulverização de fertilizantes nas colheitas – poderiam causar danos duradouros. Os mentores da investigação aceitaram que a indústria polui o ar e a água, mas consideraram tais danos reversíveis”.

Com o passar dos anos e com o que acredito ser o impacto nas consciências do agravamento progressivo dos efeitos das alterações climáticas, a forma como as coisas são vistas hoje é substancialmente diferente. Na verdade, um número crescente de membros da comunidade científica incluiu desde então o decrescimento na sua agenda de investigação.

Deixem-me chamar a vossa atenção para “Research on Degrowth”[5], um artigo publicado na Annual Review of Environment and Resources, uma revista científica com revisão por pares que publica artigos de revisão sobre ciência ambiental e engenharia ambiental[6]. Este não é o lugar nem o momento para discutir o conteúdo do artigo que trata extensivamente do assunto e transmite ao leitor abundante informação de referência. Limitar-nos-emos a reproduzir aqui uma selecção do “sumário de questões” apresentado pelos autores no final do artigo:

  • As economias podem ser estabilizadas sem crescimento se as instituições monetárias, fiscais, laborais e de bem-estar social básicas, forem transformadas (redução de horas de trabalho, os novos investimentos em sectores limpos compensados pelo desinvestimento em sectores sujos, juros da dívida gastos ou socializados, redistribuição da riqueza assegurada, declínio dos bens materiais compensado pelo crescimento dos bens relacionais[7]).
  • O capitalismo tal como o conhecemos é incompatível com o decrescimento.
  • O crescimento perpétuo é ecologicamente limitado e, muito provavelmente, desastroso.
  • O decrescimento planeado é politicamente improvável, dados os interesses estabelecidos e as relações de poder.
  • É provável que surja uma variante autoritária e mais desigual do capitalismo após um período de estagnação, a menos que as forças sociais se organizem politicamente para produzir alternativas mais democráticas.

Deixem-me acrescentar, por mim mesmo, que nem o capital privado liberal nem o capital estatal, tal como o conhecemos, podem acomodar-se ao decrescimento

Como nota final, salientemos o facto de que, em vários países, cientistas das gerações mais jovens estão a organizar-se activamente para participar na luta comum por um futuro viável.

Uma iniciativa notável que envolve a comunidade científica é a associação académica denominada “Investigação e Decrescimento”. dedicada à pesquisa, consciencialização e organização de eventos à volta do tema do decrescimento[8].
Actualmente, desenvolve a maior parte das suas actividades locais em Espanha e França, ao mesmo tempo que organiza e co-organiza eventos internacionais em vários pontos da Europa e fora dela. O grupo directamente envolvido em investigação e desenvolvimento (I&D) conta actualmente com cerca de quinze membros activos baseados em Barcelona e França. Criou uma rede informal com membros em mais de 60 países.
Nas suas próprias palavras, “no processo de decrescimento, a I&D preocupa-se com democracia, cooperação internacional e entendimento, em oposição a segregação social, fragmentação e autoritarismo”. Trabalham “para aproximar cientistas, sociedade civil, profissionais e activistas, para, em conjunto, pensar, imaginar, discutir e criar propostas para o decrescimento sustentável”.

Então, tenhamos esperança.

Obrigado pela vossa atenção.
Frederico Carvalho
5 de Julho de 2023

Nota: O texto acima é a versão traduzida da intervenção do Autor no Simpósio “Scientific Cooperation and Peace in an Unstable Geopolitical Environment“ integrado no programa da 94ª Reunião do Conselho Executivo da Federação Mundial dos Trabalhadores Científicos que teve lugar em Évora de 2 a 7 de Julho de 2023
___________________________________________________

[1]Degrowth can work — here’s how science can help”, Jason Hickel, Giorgos Kallis, Tim Jackson, Daniel W. O’Neill, Juliet B. Schor,  Julia K. Steinberger, Peter A. Victor, Diana Ürge-Vorsatz, Nature, December 12, 2022  https://www.nature.com/articles/d41586-022-04412-x
[2] https://www.un.org/en/content/common-agenda-eport/assets/pdf/Common_Agenda_Report_English.pdf
[3]Valuing Health for All: Rethinking and building a whole-of-society approach” – The WHO Council on the Economics of Health for all – Council Brief No. 3”, 8 March 2022
https://www.who.int/publications/m/item/valuing-health-for-all-rethinking-and-building-a-whole-of-society-approach—the-who-council-on-the-economics-of-health-for-all—council-brief-no.-3
Ver também a nota seguinte
[4] See “Limits to growth? It’s time to end a 50-year argument”, Editorial, Nature, 17 May 2022
[5]Research on Degrowth”, Giorgos Kallis, Vasilis Kostakis, Steffen Lange, Barbara Muraca, Susan Paulson and Matthias Schmelzer, Annual Review of Environment and Resources, Vol. 43:291-316 (Volume publication date October 2018), First published as a Review in Advance on May 31, 2018
https://doi.org/10.1146/annurev-environ-102017-025941
[6] A partir de 2020, a Annual Review of Environment and Resources é publicada em acesso aberto sob o modelo de publicação Subscribe to Open (S2O).
[7] Os bens relacionais são bens imateriais que só podem ser produzidos e consumidos dentro de grupos e que estão intrinsecamente ligados às relações sociais e afectivas e à interacção com os outros. https://en.wikipedia.org/wiki/Relational_goods
[8] https://degrowth.org/

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