UM RETRATO DA SITUAÇÃO DOS TRABALHADORES CIENTÍFICOS E DO TRABALHO CIENTÍFICO EM PORTUGAL
No Dia Nacional do Cientista [1], celebrado no dia 16 de Maio, várias organizações representativas dos trabalhadores científicos organizaram em Lisboa uma importante manifestação contra a precariedade na Ciência. Os manifestantes reuniram-se em frente ao edifício principal da Universidade de Lisboa e marcharam até ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, a cerca de 2 quilómetros de distância.
Na sede do Ministério, uma delegação das estruturas promotoras do protesto foi recebida por um representante da assessoria de imprensa, a quem foi entregue um documento com as suas principais reivindicações, amplamente partilhadas pela classe.
O texto abaixo é uma tradução livre do texto entregue àquele assessor. Retrata de forma abrangente as dificuldades sentidas por uma esmagadora maioria de trabalhadores científicos que trabalham em instituições científicas e de ensino superior portuguesas.
MANIF CONTRA A PRECARIEDADE NA CIÊNCIA
PRINCIPAIS REIVINDICAÇÕES
1 — Garantir a manutenção do financiamento actual para o emprego científico de doutorados
De acordo com os dados do Observatório do Emprego Científico e Docente (OECD) da Direcção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência (DGEEC), desde o início do Programa de Estímulo ao Emprego Científico, em 2017, foram celebrados 5799 contractos com doutorados para o exercício de actividades de investigação científica, de desenvolvimento tecnológico, de gestão e de comunicação de ciência e tecnologia e 1046 contractos de bolsa pós-doutoral. Todos estes contractos foram e são financiados com dinheiro público. Reconhecendo-se que 90% dos actuais contractos e todas as bolsas terminarão nos próximos três anos, o que está em causa em primeiro lugar é garantir que o dinheiro hoje alocado ao emprego científico permanece a financiar o emprego de doutorados. Esta opção permite reconhecer e dar continuidade ao trabalho que estas pessoas desenvolvem no Sistema Científico e Tecnológico Nacional (SCTN).
2 — Garantir um mecanismo permanente de financiamento para a contratação para a carreira de investigação científica
Nos últimos anos, o recurso quase total à contratação a prazo conduziu ao esvaziamento da carreira de investigação científica, colocando em causa o funcionamento do SCTN. É urgente a definição de um mecanismo permanente de financiamento que possibilite a integração na carreira de investigação científica, com a necessária dotação orçamental em sede de Orçamento do Estado e o reforço adequado dos mapas de pessoal. Este mecanismo tem de possibilitar a contratação permanente de novos doutorados na carreira de investigação científica e o imediato ingresso e a progressão de trabalhadores que há décadas garantem o funcionamento do SCTN desenvolvendo as suas actividades com sucessivos vínculos precários acedidos através de concursos internacionais competitivos em Instituições de Ensino Superior e Ciência públicas, públicas de regime fundacional e diferentes tipologias de Instituições Privadas sem Fins Lucrativos (IPSFL).
O SCTN é um todo e o acesso a contractos permanentes não pode ser restringido a apenas uma parte, discriminando trabalhadores e instituições. Só assim será possível ultrapassar um regime contratual inadequado para a necessária sedimentação do desenvolvimento do SCTN e fazer face às aposentações que terão lugar nos próximos anos. O Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (MCTES) sabe-o. Não o pretende fazer por opção política. As Instituições de Ensino Superior e Ciência também o sabem. Não o pretendem fazer por opção estratégico-financeira, preferindo dispor de investigadores a custo zero, beneficiando do seu desempenho científico, do financiamento captado por estes e do seu contributo para a formação de estudantes e orientação científica de investigadores de mestrado e doutoramento.
3 — Revogar o Estatuto do Bolseiro de Investigação e substituir todas as bolsas por contractos de trabalho
A contratação de investigadores através de bolsas de investigação é uma das principais formas de precarização dos trabalhadores científicos. O Estatuto do Bolseiro de Investigação (EBI) não assegura os mais básicos direitos laborais e os investigadores que a este estão sujeitos não são considerados trabalhadores nas suas instituições, apesar de produzirem ciência e contribuírem activamente para o SCTN com o seu trabalho. Esta realidade urge ser alterada, revogando o EBI e substituindo todas as bolsas por contractos de trabalho. Só assim pode ser garantida a consagração de direitos a estes trabalhadores e combater a desprotecção absoluta a que o EBI os relega.
O recurso generalizado a contractos de trabalho para a contratação de investigadores em formação[2] é, de resto, a prática em muitos outros países (e.g. Espanha) e noutros sectores laborais (e.g. medicina).
Enquanto o EBI não é revogado é necessário aplicar medidas compensatórias das insuficiências de direitos laborais que este regime implica. As contribuições deficitárias para a Segurança Social exigem um mecanismo de compensação para as reformas de todos aqueles que trabalham ou trabalharam ao abrigo do EBI. Acresce a esta conjuntura o facto de as bolsas terem estado congeladas entre 2002 e 2019, significando uma perda de poder de compra superior a 20%. As actualizações indexadas ao Salário Mínimo Nacional, regulamentadas pela FCT em 2019, são insuficientes face à inflação, além de terem sido efectuadas percentualmente no primeiro ano de descongelamento e de acordo com o valor absoluto desde então (i.e., em 2023, todas as bolsas foram actualizadas em 55€ e não em 7.8%). É, por isso, necessário que exista uma actualização sustentada que corresponda ao aumento do custo de vida, começando por uma actualização extraordinária ainda em 2023. Por último, o aumento exponencial das bolsas em ambiente não académico define uma política científica centrada na criação de valor económico, no privilégio da ciência aplicada em detrimento da ciência fundamental e subverte o princípio da proporcionalidade que sempre definiu a distribuição das bolsas por painel, enquanto alarga este vínculo precário a outros sectores. Esta é, por isso, uma medida que não só não pode ser reforçada ou vir a abranger o Concurso Estímulo ao Emprego Científico, como tem de ser revertida.
4 — Contratar permanentemente trabalhadores que desempenham funções técnicas, de gestão de ciência e funções próximas
O Programa de Regularização Extraordinária dos Vínculos Precários na Administração Pública (PREVPAP) [3] não solucionou um grande número de situações de trabalhadores que, apesar de exercerem funções de carácter permanente nas mesmas instituições, funções técnicas, funções de gestão de ciência e outras funções próximas, permanecem a trabalhar ao abrigo de vínculos inadequados como contractos a prazo, contractos de bolsa e de vínculos pontuais. É urgente alterar esta situação com a integração e valorização funcional e salarial destes trabalhadores.
5 — Contratar permanentemente docentes convidados
Também o número de “falsos” docentes convidados nas Instituições de Ensino Superior (IES) atinge hoje proporções absolutamente inaceitáveis, colocando em causa a qualidade do ensino ministrado. Os limites ao número de convidados determinados no Estatuto da Carreira Docente Universitária (ECDU) e no Estatuto da Carreira do Pessoal Docente do Ensino Superior Politécnico (ECPDESP) são sistematicamente violados pelas IES. Estes trabalhadores têm uma carga lectiva superior à dos docentes de carreira para idêntica percentagem de dedicação e, mesmo quando trabalhando numa mesma instituição em semestres consecutivos, muitas vezes os seus contractos não correspondem à totalidade do ano civil. Esta situação tem implicações directas no salário que auferem e no acesso aos seus direitos laborais.
É da mais elementar justeza a regularização dos vínculos dos falsos docentes convidados, integrando-nos na respectiva carreira, uma medida que simultaneamente dá resposta ao envelhecimento acelerado e aposentações próximas de muitos docentes permanentes das IES.
6 — Pôr fim ao subfinanciamento crónico das Instituições de Ensino Superior e de Ciência
Décadas de políticas científicas desadequadas conduziram ao subfinanciamento crónico das instituições de ensino superior e de ciência. Reconhecendo-se que as transferências orçamentais são insuficientes para garantir condições de trabalho adequadas (espaços laboratoriais; gabinetes de trabalho; bibliotecas; recursos materiais; entre outros) e fazer face à gestão corrente destas instituições (salários, compras, gastos gerais de electricidade e gás, etc.), defende-se um aumento das transferências do Orçamento do Estado.
Portugal tem por meta o investimento em investigação e desenvolvimento de 3% do seu Produto Interno Bruto (PIB) para 2030, mas o investimento actual não excede os 1,7%, quando a média europeia já ronda os 2,6%. Instigamos o governo a responsabilizar-se politicamente por este sector. Não será mantendo um investimento fortemente abaixo da média europeia que o país irá encontrar o caminho do desenvolvimento.
7 — Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior
A aplicação do Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior (RJIES) desresponsabilizou o Estado, proporcionou uma centralização excessiva da gestão e governança institucional, possibilitou a criação de novos tipos organizacionais de direito privado e subjugou a democracia e a liberdade académicas a mecanismos concorrenciais. Estas alterações promoveram uma instrumentalização do ensino e da produção do conhecimento, facilitaram a precarização dos trabalhadores científicos e alargaram assimetrias institucionais, com consequente intensificação de mecanismos endogâmicos, problemas de saúde mental e situações de assédio. Exige-se uma solução que permita ultrapassar estes problemas, garantindo a gestão democrática das instituições e possibilitando a construção de uma academia de ensino e de formação humanística e onde a reflexão crítica desempenhe um papel central.
Fim do documento
NOTA: O Manifesto, aqui reproduzido, contendo as “Principais reivindicações” dos promotores do Manifesto de 16 de Maio de 2023, foi redigido e contou com o apoio de diversas organizações portuguesas representativas dos trabalhadores científicos, incluindo as três organizações — FENPROF, ABIC e OTC – filiadas. na Federação Mundial dos Trabalhadores Científicos que co-organizaram acolheram a 94ª reunião do Conselho Executivo do FMTC em Évora, Portugal, de 2 a 7 de Julho de 2023.
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[1] O dia 16 Maio foi declarado “Dia Nacional dos Cientistas” por Resolução da Assembleia da República de 15 de Novembro de 2016
[2] https://www.eurodoc.net/sites/default/files/attachements/2017/133/eurodoc2017-juniorsresearchersdefinitionand challenges.pdf
[3] Lei https://dre.pt/dre/detalhe/lei/112-2017-114426584