SOBRE A AVALIAÇÃO DA APLICAÇÃO DO REGIME JURÍDICO DAS INSTITUIÇÕES DO ENSINO SUPERIOR
O Despacho n.º 764/2023, de 16 de Janeiro, do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior nomeou uma Comissão independente para proceder à avaliação da aplicação do Regime Jurídico das Instituições do Ensino Superior (Lei n.º 62/2007, de 10 de Setembro – RJIES). No âmbito do seu trabalho a Comissão auscultou as opiniões de diversas entidades ligadas a questões do ensino superior por forma a poder informar um relatório conclusivo a apresentar ao Governo até final do corrente ano.
A OTC foi convidada pelo Presidente da Comissão, Professor Alberto Amaral, a participar no referido processo de avaliação. Assim, em 24 de Julho último, teve lugar uma reunião via zoom, em que participaram pela OTC, os membros da Direcção Frederico Gama Carvalho e Mário de Sousa Diniz e a colega Maria Clara Grácio, associada e ex-membro da Direcção.
Ao agradecimento protocolar, dirigido ao Presidente da Comissão, pelo convite oportunamente endereçado à OTC, e conforme o esquema previamente acordado entre os membros da delegação que a representou, seguiu-se uma introdução sumária dando conta, em traços gerais, do nosso entendimento sobre o impacto do regime jurídico em vigor na vida das Instituições de Ensino Superior (IES) no contexto da situação que se vive no sistema nacional de ciência e tecnologia. É dessa introdução, apresentada por Frederico Carvalho, que damos aqui conta, introdução a que se seguiu uma abordagem de aspectos e questões específicas por parte dos colegas Clara Grácio e Mário Diniz, naturalmente assente na vasta experiência que ambos adquiriram ao longo dos seus percursos profissionais.
INTRODUÇÃO
Ao lançar um olhar crítico sobre os princípios fundamentais orientadores da Lei n.º 62/2007, de 10 de Setembro, que estabelece o Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior bem como sobre as disposições nela contidas, é natural, senão inevitável, recordar a legislação anterior que a primeira veio revogar e, muito em particular, a Lei, promulgada 19 anos antes, dita da “Autonomia das Universidades” (Lei n.º 108/88 de 24 de Setembro). Uma como a outra abrem com uma definição de “missão”. Missão da Universidade no caso da segunda; missão do Ensino Superior, no caso da primeira. O conceito de “missão”, o entendimento que dele se tem e o conteúdo que lhe é dado, são em primeiríssimo lugar as pedras de toque que permitem apreciar as intenções do legislador. Em nosso entender é patente o desvio de propósitos que se foi impondo ao longo das referidas duas décadas no seio do que podemos designar por elites dirigentes, no que respeita a “missão”, no domínio em causa, desvio esse de raiz ideológica.
Seguido esse caminho que o passar dos anos (já lá vão 16) confirmou como bom e necessário no espírito das referidas elites, fracas razões haveria, para, cumprindo a lei, proceder atempadamente a uma revisão da lei em vigor. Só flagrantes inconvenientes e um profundo mal-estar decorrente das obrigações da lei poderia levar a que se tomasse tal decisão. Assim foi.
Dito isto, é oportuno voltar a olhar, com a possível isenção, o já sublinhado conceito de “missão”. Amparo-me a duas citações de académicos eminentes reconhecidos entre nós e lá fora.
A primeira citação:
“A ciência, como a universidade, não se destina a prestar serviços a clientes, mas sim a criar um público, a criar públicos.
Grande parte dos ataques à liberdade académica vem de formas burocráticas e autoritárias de governar as instituições. Mas outra parte, igualmente importante, vem da obrigação de alinhar o trabalho científico com tendências de rentabilidade e comercialização, sob pena de demissões ou desqualificação de cientistas.
A comercialização é necessária, mas “depois”, isto é, após o trabalho científico, se este se revelar benéfico. O que devemos combater é uma ciência comercializada. Neste sentido, urge reforçar o polo público para reequilibrar o equilíbrio entre a eficiência (e comercialização) e o público, para que não se percam dimensões centrais da ciência”.
A segunda citação:
“A universidade deve ser protegida de movimentos que querem transformá-la em instrumento da sociedade capitalista, mero instrumento de formação da mão de obra necessária às empresas, reduzida de instituição social a organização prestadora de serviços”.
“A retórica da universidade, que até recentemente se baseava na qualidade científica e na liberdade académica, está a ser substituída por uma de gestão e eficiência. O resultado é uma diminuição da liberdade académica e uma redução do pensamento crítico”.
Fim de citação.
São pensamentos-guia, estes, que devemos, o primeiro, ao Prof. António Sampaio da Nóvoa, o segundo, ao Prof. Alberto Amaral, ambos retirados da intervenção proferida pelo primeiro na abertura do Simpósio internacional, organizado pela OTC em parceria com a FENPROF e a ABIC, realizado este mês em Évora no quadro da 94ª Reunião do Conselho Executivo da Federação Mundial dos Trabalhadores Científicos.
Diremos que não poderia identificar-se tão bem nem de forma mais clara as duas grandes questões que o regime instituído em 2007 coloca, em moldes que suscitam generalizado repúdio por parte da comunidade científica. A saber: o marcado retrocesso na democraticidade da gestão das instituições de ensino superior, por um lado, e, por outro, as limitações à sua autonomia no que respeita à definição de conteúdos das actividades de docência e de investigação que naturalmente decorrem de uma maior dependência de interesses particulares, exteriores às instituições, ligados aos vários sectores da economia. A situação é geral, mas particularmente agravada nas instituições que optaram pelo chamado “regime fundacional”, a cavalo, passe a expressão, entre o público e o privado, procurando tirar partido do melhor (ou do pior, conforme o ponto de vista) de cada um deles. Dinheiros públicos por um lado, desregulação laboral pelo outro.
E aqui, vem muito a propósito colocar a questão do trabalho de investigação: onde é feito e quem o faz. A Lei 62 de 2007, invoca ao definir a missão do ensino superior e cito “a produção e difusão do conhecimento”. A produção do conhecimento (passe a estranheza da formulação) é o objecto próprio da investigação e dos investigadores ou melhor dizendo, dos trabalhadores científicos. E há-os nas instituições de ensino superior. O legislador sabe-o, pois, logo abaixo refere: “as instituições de ensino superior valorizam a actividade dos seus investigadores”. Na prática não será bem assim, mas o que o legislador não ignora com toda a certeza é que, pela mesma altura temporal, se iniciou entre nós uma desabrida cavalgada para a constituição de umas chamadas “Instituições Privadas sem Fins Lucrativos”, instituições essas onde se encontra de facto o grosso dos efectivos do grupo profissional dos investigadores cujo trabalho e currículo profissional vai servindo às universidades para se valorizarem nos rankings internacionais.
Ao debruçarmo-nos sobre a bondade ou os malefícios da Lei 62 de 2007, estaria entre o ingénuo e o perverso, esquecer as condições em que os investigadores científicos laboram nas referidas IPs/FL. O RJIES não se lhes aplica o que nos coloca perante uma inaceitável perversão da estrutura do sistema nacional público de ciência e tecnologia. Entretanto, quer a opção pelo referido regime fundacional quer a proliferação das instituições e centros de investigação pseudo-privados a que nos referimos, não resolveram, não resolvem nem se vê que venham a resolver, a questão fundamental do crónico subfinanciamento das instituições de ensino superior e do sistema público de ciência e tecnologia sem o que a legislada autonomia científica e de gestão das instituições do sistema, não passa de uma miragem.
Pela Direcção a OTC
Frederico Carvalho
24 de Julho de 2023
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