OS CONSERVATÓRIOS DE ARTES E OFÍCIOS
DE LISBOA E PORTO
Foi em 1794, por decreto de 13 de Outubro, que a Convenção Francesa criou, em Paris, o Conservatoire National des Arts et Métiers, a veneranda instituição que todos os interessados pela história das Ciências e das Técnicas conhecem de vista ou por dela terem notícia. O fim da criação do Conservatoire de Paris foi, como o seu nome indica, o de nele se conservarem as peças industriais de toda a ordem, espalhadas por oficinas e fábricas da França, não só com intenção museológica, mas também escolar.
Na designação de “Artes e Ofícios” referem-se as Artes ao conhecimento teórico, com suas regras próprias, em que se fundamentam os trabalhos de oficina, os Ofícios, e a sua inclusão no título do novo organismo justifica-se porque foi simultaneamente criada, em anexo ao Conservatório, uma escola prática onde os educandos recebiam a necessária informação teórica para a utilização consciente da maquinaria de que viriam a servir-se na futura profissão.
O material então inicialmente recolhido no edifício onde o Conservatório foi instalado compunha-se de máquinas, ferramentas e modelos, em grande número, que tinham sido retirados das residências reais e dos palácios de grandes senhores da época, alguns deles condenados às prisões e ao cadafalso, e também a empresas que tinham sido ocupadas ou desmanteladas nos dias turbulentos da Revolução. Não deve surpreender que as residências nobres e reais possuíssem material de técnicas industriais, recordando que se estava no século XVIII, o século em que o interesse dos homens começou a ser despertado para as potencialidades, ainda vagamente previstas na amplitude que viriam a ter, da vária maquinaria já então inventada, e da força motriz que progressivamente ia substituindo a força muscular do servo oficinal. O conhecimento das práticas industriais fazia parte da educação dos príncipes desse século, e há notícia de possuírem colecções de reproduções de máquinas executadas em escala inferior à das verdadeiras máquinas oficinais, modelos, portanto, e de quadros murais de intenção didáctica que mostravam a actividade dos operários nos seus diversos labores de oficinas. Os intelectuais franceses que prepararam a Revolução tinham consciência da importância da produção industrial na sociedade cujas bases se propunham transformar e disso é prova o excepcional relevo que deram às artes industriais e artesanais na planificação da Encyclopédie graças, principalmente, ao entusiasmo de Diderot. A par dos textos da notabilíssima Enciclopédia, foram então publicados, a partir de 1792, nada menos de 11 volumes de estampas que constituem uma peça indispensável para o estudo da história das técnicas.
Recolheram-se, logo de início, para o Conservatório das Artes e Ofícios de Paris, cerca de 4000 peças industriais e artesanais das quais grande número era constituído por máquinas autênticas que funcionavam em instalações fabris. Assim se preservou, para a história da Humanidade, uma imagem viva do que tinham sido as actividades industriais naquela época e antes dela, defendida por homens lúcidos a quem a exaltação das paixões em que se encontravam envolvidos não subverteu a consciência dos valores que deveriam ser conservados.
A magnifica realização dos revolucionários franceses teve eco em Portugal passados 41 anos. Vivera-se também entre nós dias de grande agitação social e dela surgira, entre um número extremamente reduzido de homens intelectualmente válidos, uma das maiores figuras políticas do nosso século XIX que foi Manuel da Silva Passos, mais conhecido por Passos Manuel. Muito tardiamente se ia procurar também, entre nós, preservar o material fabril e oficinal, do passado e daquele presente, atribuindo-lhe valor pedagógico, mais do que museológico, de que beneficiaria o nosso público e, em particular, o operariado.
É de 18 de Novembro de 1836 o decreto de D. Maria II, a conselho de Passos Manuel, criando, em Lisboa, a instituição correspondente à de Paris, de 1794. Lê-se no artigo 1º: “Formar-se-ha em Lisboa hum deposito geral de maquinas, modelos utensilios, desenhos, descripções, e livros relativos às differentes Artes, e Officios, e será denominado – Conservatorio das Artes, e Officios.”. E continua: “§1º. O fim principal do Conservatorio, he a instrucção pratica em todos os processos industriaes por meio da imitação.”, e “§ 2º. O local deste estabelecimento será hum Edificio Publico appropriado, designado pelo Governo, sobre proposta do Director. “
O pessoal superior do estabelecimento começava pelo inspector, que era o próprio Secretário de Estado dos Negócios do Reino, então Passos Manuel, um sub-inspector, um director, dois demonstradores e um desenhador, que seria professor da Academia das Belas Artes. O recheio do Conservatório seria constituído (artigo 3º) pelos “objectos da natureza dos mencionados no Artigo 1º, que se acharem dispersos pelos Arsenaes, e outros Estabelecimentos Publicos”, e (artigo 4º) “serão devidamente classificados conforme a sua natureza, guardada a ordem cronologica da invenção.”
Fazia parte do articulado do decreto organizar-se de dois em dois anos, nas salas do Conservatório, “Huma exposição publica dos productos da Industria Nacional, tanto do Continente, como do Ultramar.”
O edifício escolhido para a sua instalação foi o convento dos Marianos situado à entrada, do lado direito, da rua das Janelas Verdes, e que hoje se pode referenciar pelo respectivo templo onde se encontra estabelecida a Igreja Lusitana Católica Apostólica Evangélica.
Dois meses decorridos sobre o citado decreto estendeu Passos Manuel o seu projecto à cidade do Porto, “desejando dar hum novo testemunho de apreço que faço dos Habitantes do Porto, do muito que me desvelo pela sua felicidade”. Passos Manuel, como todos os liberais, reservava para o Porto uma lembrança carinhosa e grata recordando os tempos do cerco miguelista em que a população portuense colaborou na luta com entusiasmo e espírito de sacrifício.
O Conservatório do Porto, criado exactamente com os mesmos fins do de Lisboa, chamou-se Conservatório Portuense de Artes e Ofícios, e foi criado por decreto de 5 de Janeiro de 1837.
Não temos elementos que permitam apreciar, em pormenor, a execução do projecto de Passos Manuel, a recolha de peças que então se teria feito, a sua distribuição pelas salas do Conservatório, o proveito que desse material tirariam realmente os visitantes e os possíveis alunos que frequentassem as instalações. O assunto é praticamente desconhecido e sobre ele não temos notícia de nenhum estudo efectuado, embora deva existir documentação que lhe respeite. Que o Conservatório das Artes e Ofícios de Lisboa teve um director, com actividades concretas, sabemo-lo, e que se chamava Gaspar José Marques, perito em construção e em consertos de máquinas. Dele nos fala um documento que encontrámos no arquivo da secretaria da Academia das Ciências de Lisboa em que esta instituição solicita ao referido director a sua presença na mesma Academia para observar as máquinas de Física aí existentes e que precisavam de alguns consertos, “não só para observar o que lhes falta, mas também para avaliar os reparos de que necessitão”. À margem da folha de registo do documento (Livro 5B, p. 75), que tem a data de 12-V-1837, portanto próxima da data da criação do Conservatório, está indicado o destinatário: “Para o Director do Conservatório das Artes”.
Sete anos após a instituição dos Conservatórios de Lisboa e do Porto, é decretada, em 20 de Setembro de 1844, agora sob o governo de Costa Cabral, uma reforma geral do ensino, em cujo Título V, “Dos Estabelecimentos de Bellas Artes e Officios” se lê (artigo 92): O Conservatório de Artes e Ofícios de Lis- boa, creado pelo Decreto de 18 de Novembro de 1836 fica incorporado na Escola Polytechnica; e suprimido nelle o lugar vago de Director”. “A inspecção deste Estabelecimento” – diz-se no artigo §1o do citado artigo – ” continuará a pertencer ao Ministério do Reino; e a sub-inspecção delle ficará a cargo do Conselho da Escola Polytechnica.” O §2o acrescenta que o Governo, ouvido o Conselho daquela Escola, “fica authorizado para fazer, no Conservatório de Artes e Ofícios, todos os melhoramentos de que elle fôr susceptível para se realizar o pensamento da sua creação”. Quanto ao Conservatório do Porto informa o artigo 93 que “será incorporado na Academia Polythecnica da Cidade do Porto, no estado em que elle se achar”.
Não foram necessários muitos anos para certamente se ter reconhecido que a incorporação dos Conservatórios em escolas superiores do ensino não permitia a coordenação dos objectivos tão diferenciados dos dois tipos de instituições. Ou por isso, ou pelo que fosse, incluindo o habitual alheamento dos sucessivos governantes quanto ao desenvolvimento cultural da nação, Fontes Pereira de Melo, em Decreto de 30 de Dezembro de 1852, extingue simplesmente os Conservatórios de Artes e Ofícios de Lisboa e do Porto. A extinção consta do artigo 38 do diploma que cria as escolas industriais das referidas cidades, o Instituto Industrial de Lisboa (arto. 10o) e a Escola Industrial do Porto (arto. 17o). Os objectos existentes nos Conservatórios seriam entregues às duas novas escolas, criando-se na de Lisboa (arto.11o) um Museu da Indústria como depósito de máquinas e colecções tecnológicas e comerciais. Determinava-se também (arto 37) que “todos os instrumentos com relação à indústria – modêlos, desenhos, e mais objectos – que pertençam ao Estado, e não sejam de absoluta necessidade no estabelecimento em que estejam, serão depositados no Museu do Instituto Industrial”.
Após a extinção dos Conservatórios foi nomeada uma comissão de três membros, no que respeita ao de Lisboa, com o fim de examinar as peças que nele se guardavam, e de escolher as que estivessem em bom estado e pudessem vir a ser úteis nas suas novas funções no Instituto, para onde seriam então transferidas. Um dos membros dessa comissão, o Professor Francisco da Fonseca Benevides, que veio a ser director do Museu Tecnológico por ele próprio organizado naquele Instituto, em 1867, ao historiar a época em que procedeu à escolha do material que encontrou no Conservatório de Lisboa, escreve (Catálogo das colecções do Museu Tecnológico, Lisboa, 1873): “poucos foram os objectos que a comissão julgou merecerem ser transportados para o instituto e, exceptuando quatro ou cinco modelos de maior valor, os outros eram insignificantes.”
Assim terminou, sem glória, a história de uma instituição que existiu somente 16 anos, e que muito bem poderia ter sido (à semelhança da sua congénere francesa que se aproxima dos dois séculos de existência) um veículo de cultura popular de grande merecimento.
Rómulo de Carvalho
Julho de 1981