Gaza um dos bombardeamentos mais intensos da história?
No dia 7 de Outubro, a milícia do Hamas atacou Israel. Desde então, os militares israelitas têm bombardeado Gaza num esforço para “destruir” a infra-estrutura militar do Hamas. [1] O Dr. Philip Webber e o Dr. Stuart Parkinson, da associação britânica “Scientists for Global Responsibility”, avaliam a escala do ataque militar israelita em comparação com outras guerras e consideram as possibilidades de paz.
O horror da última guerra em Gaza tem dominado a cobertura mediática internacional desde que começou, em 7 de Outubro, sobretudo devido à elevada intensidade do uso de armas numa área geográfica tão pequena e num período de tempo tão curto. Esses factores, sem surpresa, levaram a uma enorme taxa de vítimas.
O objectivo deste artigo é examinar criticamente os principais dados, informações técnicas, análises militares e outros factos comprovados, até à data, respeitantes à guerra, fazendo comparações apropriadas com outros conflitos e dando suporte aos esforços para encontrar uma resolução pacífica.
Os acontecimentos de 7 de Outubro
Há uma longa história, de muitas décadas, de conflito entre Israel, grupos armados palestinos e outras nações da região, abrangendo questões de religião, direitos humanos, direitos à terra e outras com elas relacionadas.[2] De particular interesse na situação actual são as relações de poder assimétricas entre o Estado de Israel e os territórios palestinos, nomeadamente a ocupação militar de longa data desses territórios por Israel (incluindo a recente expansão dos “colonatos” no seu interior), e a sua capacidade de mobilizar rapidamente tecnologias de armas de ponta em grande escala.
A última espiral de violência começou em 7 de Outubro, quando a milícia Hamas de Gaza atacou Israel, matando aproximadamente 840 civis e 350 soldados e pessoal de segurança, e raptando 240 reféns.[3] A escala e a brutalidade deste ataque – que envolveu alvos deliberados contra civis, incluindo crianças, e levou à maior perda de vidas num ataque a uma comunidade judaica desde a Segunda Guerra Mundial – levou a uma condenação generalizada.
Israel – que possui uma extensa rede de serviços secretos militares destinada a descobrir e prevenir tais ataques – foi apanhado de surpresa. No entanto, tinha planos militares bem desenvolvidos para uma retaliação, e estes foram rapidamente postos em acção lançando a “Operação Espadas de Ferro” (“Iron Swords”).
A ofensiva militar de Israel: qual o grau da destruição provocada?
A operação militar de Israel iniciou-se com pesados bombardeamentos aéreos sobre Gaza. Após cinco dias deste ataque, a Força Aérea Israelita (IAF, na sigla inglesa) publicou nas redes sociais [4] que lançara “cerca de 6000 bombas contra alvos do Hamas” – 1200 bombas por dia. Isto equivale a 50 bombas lançadas em cada hora, ou aproximadamente uma por minuto num dia de 24 horas – um enorme ritmo. Uma outra fonte informou, no mesmo dia, que estas 6000 bombas continham no total 4000 toneladas de explosivos [5]. O número 4000 toneladas é consistente com a utilização de bombas da série Mk80 fabricadas nos EUA, com pesos entre 227 e 907 kg, bem como com alguma utilização das bombas ditas de “demolição”, M117, com o peso de 372 kg. (Normalmente, cerca de metade do peso destas bombas são explosivos.) Assumindo que cada alvo é atingido por duas bombas, estes números implicam que 600 alvos por dia foram atingidos cada um por um peso total médio de explosivos de aproximadamente 1300 kg (1,3 toneladas). Também é digno de nota que pelo menos 5000 bombas Mk82 já haviam sido fornecidas a Israel pelos EUA [6].
A IAF também publicou imagens da destruição causada por este bombardeamento [7]. Elas mostram bairros inteiros, incluindo estruturas altas, completamente arrasados, consistentes com bombardeamentos muito intensos com as bombas mais pesadas das séries Mk80 e M117.
Após esta publicação, a IAF passou a referir “alvos” e não “bombas”, possivelmente para evitar projectar uma imagem pública tão chocante [8]. Também deixaram de publicar imagens de áreas inteiras arrasadas, substituindo-as por vídeos e imagens de destruição de alvos específicos.
Até 2 de Novembro – 26 dias após o bombardeamento – uma estimativa do Euro-Med Human Rights Monitor (EHRM) apontava para que Israel tinha lançado 25 000 toneladas de bombas sobre 12 000 alvos [9]. Embora o número de alvos atingidos seja consistente com as actualizações da IAF, a estimativa para a tonelagem de bombas significaria uma média de mais de 2 toneladas de bombas por alvo, o que é superior às estimativas baseadas numa série de outras fontes. O EHRM faz uma comparação com o poder explosivo da bomba nuclear lançada sobre Hiroshima (equivalente a cerca de 15 000 toneladas de TNT) e sugere que nesta data Gaza tinha sido bombardeada com o equivalente a duas bombas nucleares numa área de 360 km2 – muito inferior à correspondente no caso de Hiroshima com 900 km2 quadrados, em 1945. Esta fonte também se refere ao uso documentado de munições cluster e de fósforo branco proibidas, estas últimas, que causam queimaduras graves.
No entanto, mesmo que tenham sido utilizadas 25 000 toneladas de bombas, é problemático fazer uma comparação directa porque uma bomba convencional (não nuclear) normalmente contém menos de metade do seu peso em explosivos de grande potência e os mecanismos que provocam os danos são muito diferentes. Por exemplo, uma arma nuclear dá origem a uma bola de fogo persistente e a uma onda de choque a que se junta a radiação. No entanto, isto não deverá levar a desvalorizar a enorme escala do ataque israelita.
Em 10 de Novembro, a IAF publicou [10] que: “Mais de 15 000 alvos (…) na Faixa de Gaza foram atacados desde o início dos combates (…) Centenas de alvos são atacados pelas forças de infantaria e pelo braço dos serviços secretos em tempo real e num curto espaço de tempo pela Força Aérea e pela Marinha.” Isto equivale a cerca de 430 alvos por dia, uma taxa média de bombardeamento muito elevada. A IAF também publicou com intermitências, números de alvos atingidos num dia, variando de 250 a mais de 750 por dia durante este período.
Mesmo utilizando a estimativa mais conservadora de 500 kg de bombas por alvo (2 bombas de 250 kg por alvo), tal equivaleria a 7500 toneladas durante este período de cinco semanas (aproximadamente 3750 toneladas de explosivos). Utilizando os dados da IAF de 10 de Novembro combinados com outras fontes – o que será mais consistente – o peso total das bombas poderá atingir as 20 000 toneladas.
Uma medida que alegadamente reduziria o número de vítimas civis foi a criação, pelos militares israelitas, daquilo a que chamaram “corredores de evacuação” para deslocar as pessoas para sul afastando-as das áreas visadas [11]. Na realidade, foi largamente divulgado que estas rotas estavam elas próprias sujeitas a ataques de forças aéreas e terrestres. Até à data, cerca de dois milhões de habitantes de Gaza foram deslocados devido à destruição das suas casas pelos intensos bombardeamentos. Além disso, depois de se deslocarem para sul, esses mesmos habitantes de Gaza sofreram novos ataques à medida que as forças israelitas deslocavam os seus alvos.
Em 6 de Dezembro, uma análise publicada no Financial Times (FT) [12] referia que Israel necessitava de um fornecimento constante de munições dos EUA para manter o seu intenso ataque bombista. O artigo afirmava que “Gaza também ficará na história como alvo de uma das mais pesadas campanhas de bombardeamento convencional da história”. Citou também um novo estudo realizado por académicos baseados nos EUA que sugeria que a taxa de devastação de edifícios no norte de Gaza era comparável à das cidades alemãs durante as campanhas de bombardeamento dos Aliados na Segunda Guerra Mundial. Discutiremos isso mais abaixo.
A elevada taxa de bombardeamento de Israel só foi possível através da utilização de um novo sistema de alvos chamado ‘Habsora’ (que se traduz como ‘O Evangelho’), que ira partido da velocidade e poder computacional da inteligência artificial (IA) [13]. A Habsora foi criada em 2019 pela Divisão de Identificação de Alvos dos militares israelitas para “acelerar a identificação de alvos” e “encurtar os passos das cadeias de morte”. Na prática, isso significa que pode levar menos de 10 minutos a identificar um alvo e depois a atingi-lo com um ataque aéreo. O ex-Chefe do Estado-Maior militar de Israel, Aviv Kochavi, afirmou que Habsora “é uma máquina que, com a ajuda da IA, processa um grande número de dados melhor e mais rapidamente do que qualquer ser humano, e os identifica como alvos a atacar, (,…) tempos houve no passado em que gerávamos em Gaza 50 alvos por ano [sublinhado nosso]”. Uma fonte que trabalhou na Divisão de Identificação de Alvos, afirmou: “Seleccionamos os alvos automaticamente e trabalhamos de acordo com uma lista de verificação (…) É realmente como uma fábrica. Trabalhamos rapidamente e não há tempo para aprofundar a escolha do alvo.”
À medida que a operação militar israelita prossegue, um número crescente de tropas terrestres, de helicópteros, de artilharia e de munições e forças navais têm estado cada vez mais envolvidos. As publicações oficiais nas redes sociais referem-se frequentemente à estreita integração de todos os ramos das forças armadas.
Os impactos deste intenso bombardeamento e dos ataques combinados terrestres e marítimos foram graves. Até 19 de Dezembro, de acordo com o Ministério da Saúde palestiniano na Cisjordânia ocupada e outras agências, mais de 19 000 pessoas em Gaza tinham sido mortas, incluindo 7700 crianças – centenas delas, bebés. Mais de 52 000 pessoas ficaram feridas, algumas muito gravemente, e mais de 8000 outras desaparecidas [14]. No início de Dezembro, 305 000 unidades residenciais foram danificadas e mais de 46 000 foram completamente destruídas [15].
Comparações históricas
Como é que a “Operação Espadas de Ferro” se compara com outras ofensivas militares israelitas recentes? A Tabela 1 compara a taxa de bombardeamento das quatro ofensivas anteriores com a da actual, utilizando números de fontes militares israelitas [16]. O aumento da taxa de bombardeamento e do total de material bélico utilizado é gritante. Uma taxa de ataque anterior, de 100 a 200 alvos por dia, mais do que duplicou para mais de 400 e – nos primeiros 5 dias – foi seis vezes maior.
Tabela 1 – Comparação das taxas de bombardeamento de recentes ofensivas militares israelitas
NB: Alguns números foram arredondados.
E quanto às comparações com outras campanhas de bombardeamento anteriores? A análise do FT mencionada acima analisou dados da campanha aliada da Segunda Guerra Mundial contra cidades alemãs. Durante um período de dois anos – de 1943 a 1945 – 61 cidades foram visadas. Em média, estima-se que 50% dos edifícios nestas cidades sofreram grandes danos, com os níveis em Dresden e Colónia a atingir cerca de 60% e em Hamburgo 75%. Utilizando dados de radares de satélite, académicos sedeados nos EUA analisaram os danos no norte de Gaza devidos aos bombardeamentos israelitas – até 29 de Novembro – e concluíram que mais de 60% dos edifícios sofreram danos graves, com alguns distritos a sofrer mais ainda.
O bombardeamento de Gaza também foi muito mais severo do que os dos períodos mais intensos da campanha aérea liderada pelos EUA em Mossul, no Iraque, em 2016, quando cerca de 600 bombas foram lançadas numa semana, sendo que a tonelagem de explosivos gasta durante a primeira semana de bombardeamentos em Gaza é superior à correspondente a um ano no caso dos EUA no Afeganistão [17].
O uso deliberado de “força desproporcionada”
O direito humanitário internacional exige que os militares tomem medidas para minimizar as vítimas civis que podem ser causadas por qualquer ataque militar. Como tal, o número de vítimas deve ser “proporcional” ao objectivo a atingir. Embora haja muito debate sobre se tais normas legais são adequadas para proteger os civis, há poucas provas que sugiram que Israel leva a sério a tentativa de aplicar estas normas.
De acordo com Jeremy Binnie [18], especialista em defesa do Médio Oriente no Janes, um grupo de reflexão sobre segurança sediado em Londres, “o ritmo da campanha levanta questões sobre as regras de envolvimento israelitas, o seu processo de selecção de alvos e os níveis de vítimas civis que está preparado para aceitar.” Esta é uma forma educada de dizer que não pode haver supervisão eficaz da definição de alvos para atingir mais de 15 000 alvos no prazo de 5 semanas e que não é possível utilizar uma norma legal de verificação de que em cada alvo é respeitado o direito humanitário internacional.
Outras provas das deficiências jurídicas provêm da análise das taxas de vítimas. A análise israelita sugere que mais de 60% das vítimas foram civis [19]. Esta estimativa em si parece ser uma subestimativa. Dos números amplamente divulgados de vítimas em Gaza [20]. 68% dos mortos (quase 13 000) são crianças e mulheres. Mesmo que metade das restantes 6000 vítimas, sendo homens, fossem militantes do Hamas, o que significaria que mais de 3000 civis do sexo masculino foram mortos, a taxa de mortalidade civil seria de cerca de 85% – um nível chocantemente elevado. Uma taxa de mortalidade civil igualmente elevada foi noticiada pelo Times of Israel [21], onde apenas 11% dos mortos nos ataques aéreos “Orla Protectora” de 2014 contra edificações altas em Gaza foram confirmados como tratando-se de “terroristas operacionais” – por outras palavras, uma taxa de mortalidade de civis de 89% neste tipo de ataque aéreo. Um relatório da CNN refere-se a fontes israelitas que afirmam que tinham matado 7000 dos 30 000 “terroristas do Hamas” até 10 de Dezembro [22]. Este número é maior do que o total de mortes relatadas de homens e parece ser uma estimativa exagerada e não confiável. Também destaca que a maioria dos combatentes do Hamas ainda estava operacional.
Na verdade, uma resposta “desproporcionada”, atacando áreas civis e infra-estruturas, é um elemento-chave da actual estratégia militar israelita, como parte da doutrina “Dahiya” desenvolvida em 2006 [23]. De acordo com a revista digital “+972” com sede em Israel [24] que entrevistou funcionários do governo no país, “a doutrina – desenvolvida pelo ex-Chefe do Estado-Maior das FAI, Gadi Eizenkot – (…) membro do actual gabinete de guerra – numa guerra contra a guerrilha grupos como o Hamas ou o Hezbollah, Israel deve usar uma força desproporcionada e esmagadora ao mesmo tempo que visa a infra-estrutura civil e governamental, a fim de estabelecer a dissuasão e forçar a população civil a pressionar os grupos para que ponham fim aos seus ataques”. Esta doutrina também é descrita num documento de 2008 do Instituto de Telavive para Estudos de Segurança Nacional (INSS) [25].
A embaixadora de Israel no Reino Unido, Tzipi Hotovely, afirmou [26] que poderão matar 600 000 civis e invocou repetidamente o bombardeamento de cidades alemãs pelos aliados na Guerra Mundial para justificar os objectivos militares de Israel em Gaza.
Violação do direito humanitário internacional
Parece haver poucas dúvidas de que o direito humanitário internacional foi violado – tanto no ataque do Hamas de 7 de Outubro como na subsequente ofensiva militar israelita.
No final de Outubro, mais de mil dos mais experientes advogados e antigos juízes do Reino Unido assinaram uma série de cartas ao Primeiro-Ministro britânico [27] defendendo que “estamos a testemunhar violações claras do direito humanitário internacional (…) em Gaza”. Depois de apontar as violações cometidas pelo Hamas, afirmaram que estes ataques não podem “justificar a punição colectiva do povo palestino”. Por exemplo, “[as] instruções emitidas pelas autoridades israelitas para a população da Cidade de Gaza abandonar imediatamente as suas casas, juntamente com o cerco total que lhes nega explicitamente comida, água e electricidade, não são compatíveis com o direito humanitário internacional”. Nove Relatores Especiais da ONU alertaram ainda para que a “destruição intencional e sistemática de casas e infra-estruturas civis” por parte de Israel está “a ter como resultando crimes contra a humanidade em Gaza” [28]. Os profissionais do Direito também destacaram as declarações feitas por altos funcionários do governo israelita e por militares imediatamente, antes e durante o ataque militar a Gaza, como prova do desrespeito deliberado do direito internacional. Por exemplo, o antigo chefe do Conselho de Segurança Nacional de Israel, Major-General (na reserva) Giora Eiland, afirmou publicamente que “[c]riar uma grave crise humanitária em Gaza é um meio necessário para atingir o objectivo” e que “Gaza tornar-se-á um lugar onde nenhum ser humano pode viver” [29]. Na verdade, as acções combinadas das forças israelitas em Gaza e no território da Cisjordânia levaram os nove Relatores Especiais da ONU a alertar para o risco de genocídio dos palestinos [30].
Em 13 de Outubro, as FAI tornaram público que “dezenas de aviões de combate” atingiram mais de 750 alvos durante a noite, incluindo 12 edifícios de vários andares “utilizados pelo Hamas para fins terroristas”. A Amnistia Internacional apelou a uma investigação de crimes de guerra pela utilização de algumas bombas extremamente poderosas de 1000 kg e 2000 kg usadas para atingir tais alvos devido ao grande número de vítimas civis [31].
O Secretário-Geral da ONU, António Guterres, em 6 de Dezembro, invocou mesmo, de forma incomum, o Artigo 99 da Carta da ONU para alertar para o grave perigo para a segurança global resultante da situação humanitária extremamente precária em Gaza [32]. Desde então, a Organização Mundial da Saúde alertou para o facto de doenças poderem matar ainda mais pessoas no território do que as bombas [33].
A procura de um cessar-fogo e para lá dele
Tem havido apelos repetidos e urgentes a um cessar-fogo por parte de muitos governos nacionais, tanto por iniciativa própria como através das Nações Unidas, bem como por amplos sectores da sociedade civil.
No dia 4 de Dezembro, Mirjana Spoljaric, Presidente do Comité Internacional da Cruz Vermelha, qualificou a situação de “fracasso moral da comunidade internacional” e apelou a todas as partes “para desescalar e encontrar soluções que não sejam militares (…) para proteger os direitos de civis, detidos e reféns”. Ela fez notar que as agências humanitárias no território estavam completamente sobrecarregadas e que somente a acção política poderia aliviar o sofrimento [34].
Nas Nações Unidas, em 12 de Dezembro, 153 nações apoiaram uma resolução não vinculativa da ONU para um cessar-fogo [35]. Numa resolução anterior, de 8 de Dezembro, os EUA usaram o seu veto para bloquear a resolução, apesar de 13 membros do Conselho de Segurança terem votado a favor. O Reino Unido absteve-se [36].
No momento em que este artigo foi escrito, Israel continua a resistir aos apelos de cessar-fogo – mas ainda tem o apoio político e militar dos EUA, do Reino Unido e de muitas outras potências ocidentais, apesar das violações evidentes do direito humanitário internacional (embora nesses países as críticas de alguns responsáveis estejam a subir de tom). A justificação dada, repetidamente, é a de que o Hamas tem de ser “destruído” ou “eliminado” para evitar que ataques como o de 7 de Outubro voltem a acontecer.
Contudo, há provas de que o apoio ao Hamas poderá estar a crescer entre os palestinos [37]. Entretanto, a experiência das recentes guerras no Afeganistão, no Iraque, na Líbia e noutros locais mostra o repetido fracasso da utilização intensa da força contra paramilitares integrados nas comunidades civis. Grupos de monitorização independentes, como o Iraq Body Count, o Airwars e o projecto Costs of War da Brown University, concluem que estas guerras pós-11 de Setembro mataram pelo menos 900 000 pessoas através da violência directa e mais 3,5 milhões indirectamente, com 38 milhões de pessoas deslocadas [38]. Nenhuma destas guerras levou, nem parece provável que leve a uma paz duradoura. O conflito armado continua, no Iraque, na Líbia e na Síria, enquanto o Estado Islâmico e as milícias ligadas à Al Qaeda se espalharam pela região do Sahel em África e para lá dela.
Há poucas razões para acreditar que a situação em Gaza seja diferente, especialmente tendo em conta as quatro campanhas anteriores de bombardeamentos israelitas enumeradas acima, por isso continuar a apoiar outra ofensiva militar, ainda mais intensa, em Gaza – com o extremo número de baixas associado, o sofrimento humanitário e a deslocação de mais de um milhão de habitantes do norte de Gaza – é também um erro fundamental. O professor Paul Rogers, da Universidade de Bradford, entre outros comentadores, qualifica esta resposta como um exemplo de ‘liddism’ * [39] – tentar manter uma ‘tampa’ sobre um problema de segurança em vez de ‘reduzir a pressão’ – isto é, digamos, abordando as causas profundas da violência, utilizando ferramentas políticas baseadas na justiça social, na representação política justa e no desenvolvimento económico. Pensamos que diminuir a temperatura é a única forma de acabar com o ciclo extremamente destrutivo de violência.
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O ponto de vista da “Scientists for Global Responsibility”
Na sequência da análise acima, a Scientists for Global Responsibility (SGR) considera o bombardeamento israelita de Gaza como desproporcionado, ilegal e contraproducente. Embora condenemos os ataques do Hamas de 7 de Outubro, não podemos apoiar a resposta israelita. Unimo-nos a outros no apelo a um cessar-fogo imediato, à entrega urgente de ajuda humanitária, à libertação de todos os reféns e à prossecução de um novo processo de paz que aborde as injustiças históricas e estabeleça as bases para um futuro seguro para todos na região. Sendo uma organização sediada no Reino Unido, a SGR apela também ao governo do Reino Unido para que reafirme o seu compromisso com o direito humanitário internacional, apoiando um cessar-fogo imediato e pondo fim ao fornecimento de armas e ajuda militar a Israel. Estas acções ajudarão a salvaguardar a vida da população civil e porão fim à actual contribuição do Reino Unido para o cometimento de prováveis crimes de guerra e crimes contra a humanidade, bem como um possível genocídio.
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Artigo publicado em Responsible Science journal, nº.6
Os Autores
Dr. Philip Webber é Presidente da “Scientists for Global Responsibility” (SGR). Dr. Stuart Parkinson é Director Executivo da SGR. Ambos têm escrito com grande frequência sobre questões de ciência, tecnologia e segurança.
A OTC agradece aos autores e à SGR, “Cientistas pela Responsabilidade Global”, associação congénere da OTC, a autorização concedida para republicar o presente artigo no nosso site institucional. A versão original em língua inglesa pode ser lida aqui: https://www.sgr.org.uk/resources/gaza-one-most-intense-bombardments-history#_edn5
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*O termo “liddism”, do inglês “lid” — tampa — é aqui usado para caracterizar um paradigma de controlo que implica “manter uma tampa” sobre um problema em vez de diminuir a pressão, com consequências potencialmente desastrosas. (Nota OTC)
REFERÊNCIAS
[1] DW (2023). 8 October. https://www.dw.com/en/israel-formally-declares-state-of-war-against-hamas/live-67030177
[2] Um resumo útil da história do conflito regional pode ser encontrado em: Conselho de Relações Exteriores (2023). 4 de Dezembro. https://www.cfr.org/global-conflict-tracker/conflict/israeli-palestinian-conflict
[3] “+972 Magazine” (2023). 30 Novembro. https://www.972mag.com/mass-assassination-factory-israel-calculated-bombing-gaza/
[4] IAF (2023a). Post no X, 12 Outubro (traduzido do hebraico). https://x.com/IAFsite/status/1712484101763342772
[5] Al-Jazeera (2023). 12 October. https://www.aljazeera.com/news/2023/10/12/israel-says-6000-bombs-dropped-on-gaza-as-war-with-hamas-nears-a-week
[6] CNN (2023). 13 Dezembro. https://edition.cnn.com/2023/12/13/politics/intelligence-assessment-dumb-bombs-israel-gaza/index.html
[7] IAF (2023a) – ver ref. 4.
[8] Al-Jazeera (2023a). 11 de Novembro. https://www.aljazeera.com/news/2023/11/3/analysis-israels-gaza-bombing-campaign-is-proving-costly-for-israel
[9] Euro-Med (2023). 2 de Novembro. https://euromedmonitor.org/en/article/5908/Israel-hits-Gaza-Strip-with-the-equivalent-of-two-nuclear-bombs
[10] IAF (2023b). Post no X, 10 de Novembro. https://x.com/IAFsite/status/1722971638411444556
[11] IDF (2023). Post no X, 13 de Novembro. https://twitter.com/IDF/status/1724018068131557816
[12] Financial Times (2023). “Military briefing: the Israeli bombs raining on Gaza”. 6 de Dezembro. https://www.ft.com/content/7b407c2e-8149-4d83-be01-72dcae8aee7b [retrito a assinantes]
[13] +972 Magazine (2023) – ver ref. 3.
[14] Múltiplas fontes referidas pela Al-Jazeera (2023). https://www.aljazeera.com/news/longform/2023/10/9/israel-hamas-war-in-maps-and-charts-live-tracker (com indicação das fontes) [acedido em 19 de Dezembro]
[15] The Guardian (2023a). 5 de Dezembro. https://www.theguardian.com/commentisfree/2023/dec/05/israel-disproportionate-force-tactic-infrastructure-economy-civilian-casualties
[16] “+972 Magazine” (2023) – ver ref. 3.
[17] The Guardian (2020). https://www.theguardian.com/us-news/2020/jan/28/us-afghanistan-war-bombs-2019
[18] FT (2023) – ver ref. 12.
[19] The Guardian (2023b). 9 de Dezembro. https://www.theguardian.com/world/2023/dec/09/civilian-toll-israeli-airstrikes-gaza-unprecedented-killing-study
[20] Ver ref. 14.
[21] Times of Israel (2015). https://www.timesofisrael.com/israeli-strikes-on-gaza-homes-killed-mostly-civilians-report-says/
[22] CNN (2023a). 10 de Dezembro, 7:18 am ET. https://edition.cnn.com/middleeast/live-news/israel-hamas-war-gaza-news-12-10-23/
[23] Rogers P (2023a). 5 de Dezembro. https://www.theguardian.com/commentisfree/2023/dec/05/israel-disproportionate-force-tactic-infrastructure-economy-civilian-casualties
[24] “+972 Magazine” (2023) – ver ref. 3.
[25] INSS (2008). https://www.inss.org.il/publication/disproportionate-force-israels-concept-of-response-in-light-of-the-second-lebanon-war/
[26] Talk TV (2023). Vídeo clip, YouTube, 19 de Outubro. https://www.youtube.com/watch?v=zphG6Eokke4 ; BBC Radio 4 (2023). Audio clip, Yahoo News, 16 de Outubro. https://uk.news.yahoo.com/israels-uk-ambassador-compares-24-080710104.html
[27] UK Lawyers (2023). “Open Letter Concerning Gaza”, 26 de Outubro. https://lawyersletter.uk/ and https://lawyersletter.uk/wp-content/uploads/2023/10/theletter.pdf
[28] Comité Internacional da Cruz Vermelha (2023). 13 de Outubro. https://www.icrc.org/en/document/israel-and-occupied-territories-evacuation-order-of-gaza-triggers-catastrophic-humanitarian-consequences .
As observações do Secretário-Geral da ONU ao Conselho de Segurança em 24 de Outubro são concordantes com esta avaliação: “Proteger os civis não significa ordenar a evacuação para sul de mais de um milhão de pessoas, onde não há abrigos, nem comida, nem água, nem medicamentos, nem combustível, e de seguida continuar a bombardear o próprio sul.”
“Sonnenseite” (2023). https://www.sonnenseite.com/en/politics/even-war-has-rules-says-un-secretary-general-guterres/ Ver também: “Amnistia Internacional” (2023). 25 de Outubro.
https://www.amnesty.org.uk/press-releases/israelopt-israeli-army-threats-ordering-residents-northern-gaza-leave-may-amount-war
[29] Ynet News (2023). 12 de Outubro. https://www.ynetnews.com/article/sju3uabba
[30] OHCHR (2023). 19 de Outubro. https://www.ohchr.org/en/press-releases/2023/10/gaza-un-experts-decry-bombing-hospitals-and-schools-crimes-against-humanity
[31] CNN (2023b). 7 de Dezembro. https://www.msn.com/en-us/news/world/amnesty-investigation-claims-us-made-weapon-used-in-two-israeli-airstrikes-in-gaza-that-killed-43-civilians/ar-AA1l7dJN
[32] UN News (2023a). 6 de Dezembro. https://news.un.org/en/story/2023/12/1144447
[33] Al-Jazeera (2023b). 28 de Novembro. https://www.aljazeera.com/news/2023/11/28/disease-could-kill-more-in-gaza-than-bombs-who-says-amid-israeli-siege?
[34] ICRC (2023). Post no X, 4 de Dezembro. https://x.com/ICRCPresident/status/1731761900994621721
[35] UN News (2023b). 12 de Dezembro. https://news.un.org/en/story/2023/12/1144717
[36] UN News (2023c). 8 de Dezembro. https://news.un.org/en/story/2023/12/1144562
[37] Palestinian Center for Policy and Survey Research (2023). Public Opinion Poll No. 90, 13 December. https://pcpsr.org/en/node/961
[38] Brown University (2023). “Costs of War project”. https://watson.brown.edu/costsofwar/figures
[39] Rogers P (2023b). 8 de Novembro. https://www.theguardian.com/commentisfree/2023/nov/08/israel-hamas-war-palestine-military-solutions-political-problems