Da bondade do RJIES e da contra-ordenação e crime que potencia

Da bondade do RJIES e da contra-ordenação e crime que potencia

Carlos A. M. Gouveia
Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras
Universidade de Coimbra, CELGA-ILTEC

Comunicação apresentada na Mesa-Redonda “Os caminhos do ensino-superior à luz do RJIES”, promovida pela OTC-Organização dos Trabalhadores Científicos, no ICS-Instituto de Ciências Sociais, em Lisboa, a 29 de Março de 2023.

A Lei nº 62/2007, de 10 de Setembro, conhecida como Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior, e ainda mais vulgarmente conhecida por RJIES, tem, como seu objetivo e âmbito, estabelecer “o regime jurídico das instituições de ensino superior, regulando designadamente a sua constituição, atribuições e organização, o funcionamento e competência dos seus órgãos e, ainda, a tutela e fiscalização pública do Estado sobre as mesmas, no quadro da sua autonomia.”.  No seu âmbito, estabelece, ainda, que o que nela se dispõe “aplica-se a todos os estabelecimentos de ensino superior, ressalvando” situações especiais do ensino superior público especial (Art.º179º) e de estabelecimentos canónicos (Art.º 180º).
Muito determinada por este quadro e pela revogação de várias leis e disposições dispersas que este novo regime vinha substituir, reunindo num só enquadramento a constituição, as atribuições, a organização, o funcionamento e a competência dos estabelecimentos de ensino superior e dos seus órgãos, a entrada em vigor do RJIES provocou uma onda de choque nas instituições de ensino superior, todas elas de repente confrontadas com a necessidade de produção de novas normas estatutárias para o seu funcionamento e das suas unidades orgânicas. Tal onda de choque, porém, cingiu-se a esta adaptação estatutária sem grande questionamento da bondade ou maldade do RJIES e dos seus efeitos na gestão das instituições. É certo que a aplicação da lei motivou algumas reações, sobretudo associadas à possibilidade de existência de “instituições de ensino superior públicas de natureza fundacional”, consagrada no cap. VI da lei (Art.ºs 129º a 137º). Efetivamente, grande parte da discussão subsequente à publicação da Lei cingiu-se a este aspeto e à discussão das vantagens e desvantagens do regime fundacional, dada a possibilidade da sua existência e da necessidade de se optar por um outro regime de funcionamento, que não apenas o tradicional, transformado pela aplicação da nova Lei.
Mas o RJIES, que na sua bondade, vinha de facto regulamentar práticas, modelos e comportamentos muito irregulares e díspares, visando a sua uniformização no conjunto das (muito) diversas instituições de ES do país, merecia maior discussão aquando da sua aplicação e sobretudo uma maior compreensão dessa sua bondade. Quinze anos após a sua implementação, é muito claro para a comunidade académica que uma maior discussão deveria ter ocorrido aquando da publicação do RJIES, em vez da sua aceitação tácita pelo grosso da comunidade. Foi esta aceitação tácita, na agitação da onda de choque de adaptação estatutária e regulamentar das instituições, que potenciou aquilo a que chamo as maldades do RJIES. Tais maldades, a meu ver, não são tanto do RJIES em si mesmo, mas da sua interpretação e transposição para as normas estatutárias e regulamentares das universidades e das suas unidades orgânicas. Na sua bondade, o RJIES deu o flanco e permitiu uma delegação excessiva de poderes, que foi tomada por certos sectores das instituições como um sinal de abertura e de tomada de poder autocrático do tipo “posso, quero e mando e quem não gostar que se cale.”

Estabelecendo um paralelo com a sociedade portuguesa, em particular, e o mundo, em geral, diria que o que aconteceu nas instituições de ES, no que a gestão e funcionamento diz respeito, foi mais ou menos homólogo ao que aconteceu na vida pública e política portuguesa e mundial: desconfiança, saturação e alheamento, o subsequente avanço de extremismos e de tentativas de tomadas de poder autocráticas e neofascistas, e a proliferação de discursos fomentadores do ódio e de discriminação, ao mesmo tempo que insistem na defesa da honra, da dignidade humana e da autoridade do estado. No caso da academia, esses discursos insistiam na valorização da instituição, da sua autonomia, da sua importância estratégica e da necessidade de valorizar o trabalho docente e de investigação, contra a participação saturada e excessiva em reuniões infindáveis de gestão administrativa, científica e pedagógica. Demonizavam-se assim práticas de gestão democrática e de reflexão crítica sobre a realidade e defendiam-se práticas autoritárias, ditas de resistência e de amplitude geral, unanimistas e de união. Foi, por exemplo, um período de existência de listas únicas para as eleições dos órgãos de gestão e de segregação e discriminação de todos quantos defendiam a pluralidade democrática nas mesmas eleições. Era a união a favor da salvação da integridade da escola, contra todos os que ousassem sequer um movimento, um gesto ou uma palavra de pendor adversativo. Na minha escola, os outros, nos quais me incluía, os que ousaram tentar levar a eleições uma segunda lista, eram referidos como os ressabiados, ou seja, como os desconfiados, espantados, assustados. E se estávamos assustados! Assustados com o rumo que a escola estava a tomar. E tomou, infelizmente

Posto isto, e retomando os termos do resumo desta comunicação e do que nela me propus fazer, diria que o RJIES é ainda hoje uma lei cuja bondade tem de ser reconhecida. Porém, não tanto por aquilo que determinou legalmente, mas pelo que tal determinação potenciou em termos de entendimento, compreensão e ações institucionalmente situadas, o RJIES demonstrou à saciedade as razões da premência da sua profunda revisão. Gostaria de apontar, então, alguns aspetos de má-interpretação do RJIES quem têm sido lesivos do bom funcionamento das instituições de ensino superior, constituindo-se quase sempre em contraordenações ou crimes, ou melhor dito, em ilicitude. Este é o caso das interpretações sobre a constituição, as competências e o funcionamento dos órgãos quer das Universidades quer das unidades orgânicas que as constituem. É também o caso da eleição e exercício de mandatos unipessoais sem qualquer controlo ou supervisão.
Começando pelas atribuições, organização, funcionamento e competência dos órgãos. Para o Conselho Geral das ES, o RJIES determina que, no máximo, este seja constituído por 35 membros. Mas depois indica percentagens, que, se cumpridas (mais de 50% de docentes e investigadores, pelo menos 15% de estudantes e pelo menos 30% de membros externos), não deixam espaço para a representação de “membros eleitos pelo pessoal não docente e não investigador”, representação expressa no RJIES de forma enviesada e de estatuto não obrigatório: “O conselho geral pode incluir, nos termos dos estatutos, membros eleitos pelo pessoal não docente e não investigador” (Nº 7, Art.º 81º). (Note-se a modalidade de possibilidade, não a certeza.) E se deixarem espaço para tal representação, ela será, no máximo, de um representante (5% de 35). O RJIES considera, portanto, naturalizando tal ideologia nas instituições, que “pessoal não docente e não investigador” é irrelevante na gestão das academias e que, por exemplo, os membros externos, coadjuvados (pelo menos 10, num CG de 35 conselheiros) são mais importantes.[1]
Note-se que para órgão correspondente nas unidades orgânicas, isto é, o vulgarmente chamado Conselho de Escola, o RJIES admite a eventualidade da sua não existência, por meio de uma formulação de condição e possibilidade: “Caso exista um órgão colegial representativo:” (alínea b), Art.º 97º). A existir, este órgão, que tem, no âmbito das suas competências, a da eleição do Diretor/Presidente da unidade orgânica, “i) Não deve exceder 15 membros; ii) Deve ter pelo menos 60 % de docentes e investigadores; iii) Deve incluir representantes dos estudantes; iv) Pode incluir [note-se outra vez a modalidade de possibilidade, não a certeza] representantes dos trabalhadores não docentes e Não investigadores, bem como entidades externas;”. No caso da minha escola, este órgão, de um mínimo possível de 9 docentes (60% de 15), tem 12 docentes (80%), 2 estudantes e 1 funcionário. Quem elege o diretor são, portanto, 12 docentes, normalmente de uma lista única concorrente às eleições para o Conselho de Escola, porque, com lista única para o universo dos docentes, ter dois estudantes e um funcionário no Conselho é completamente irrelevante para a eleição do Diretor. E se pensarmos que o Diretor eleito é simultaneamente, como no caso da minha escola, o Presidente do Conselho Científico (possibilidade dada pelo nº 8 do Art.º 102º do RJIES), vemos concentrados num órgão unipessoal poderes cuja supervisão é deixada a 12 docentes, alguns dos quais sem qualquer motivação para estarem no órgão e cuja presença no mesmo foi negociada em razão do seu silêncio e desprendimento.

É de realçar que, sendo estatutariamente consagrado como presidente do Conselho Científico, e não eleito pelo órgão, o Diretor /Presidente da unidade orgânica não pode ser demitido das suas funções de presidente do Conselho Científico, enquanto for Diretor/Presidente, numa circularidade de procedimentos de concentração de poderes nada democrática e sobretudo excessivamente permissiva de exercícios autocráticos. Neste Conselho Científico, a que preside, o Diretor/Presidente trabalha com um conjunto máximo de 24 conselheiros, de acordo com o RJIES (Nº 6, Art.º 102º). Embora imponha condições sobre a elegibilidade dos membros do CC, nomeadamente no que respeita ao tipo de contracto de trabalho com a instituição e/ou à pertença a unidades de I&D da unidade orgânica, de financiamento externo, o RJIES não estabelece condições de representatividade científica, isto é, não determina cotas de elegibilidade de conselheiros associadas às várias áreas científicas de uma unidade orgânica. Ora, considerando que se trata de um órgão de natureza científica, que decide sobretudo sobre matérias científicas, nomeadamente processos de aberturas de concursos de contração de pessoal docente e de investigação ou de constituição dos júris de provas de doutoramento, agregação e de concursos académicos, é no mínimo estranho que o RJIES seja omisso quanto à existência de cotas associadas a áreas científicas. Tal existência é deixada para a definição estatutária das unidades orgânicas, onde a definição de tais cotas pode ou não estar estabelecida. A sua definição ou não nos estatutos pode, porém, dar azo a ilicitudes várias, nomeadamente na aprovação de propostas de júris de concursos académicos, em particular dos chamados concursos com fotografia ou concursos com júris ilegalmente constituídos.
No caso da minha escola, os estatutos definem que na “atribuição dos mandatos, o Regulamento Eleitoral assegurará que no Conselho Científico estejam sempre presentes pelo menos dois professores ou investigadores de cada Área”. Considerando que são quatro as Áreas em que se constitui a escola, cada uma agregando diferentes “unidades de ensino, de investigação e de extensão à comunidade”, torna-se difícil que o conselho científico seja representativo de todas as áreas de conhecimento e de especialização da escola. No limite, os vinte e quatro conselheiros podem ser todos de uma ou duas áreas, sendo as restantes duas áreas representadas por apenas dois conselheiros cada. A pergunta que se coloca é: qual a legitimidade deste conselho científico – deste em particular, mas também os de outras escolas – para decidir, por exemplo, sobre concursos académicos para áreas de que não dispõe de representantes eleitos?[2] Os ilícitos são vários e constantes, constituindo-se muitos deles em crime. A legitimidade dos conselhos científicos para decidir em matéria de júris está de tal forma naturalizada, que nem sequer é questionada nos termos em que acabo de o fazer. Isto é, os júris são quase sempre tacitamente aprovados no pressuposto da legitimidade e legalidade do órgão para o fazer. E quando são objeto de impugnação, é, em resposta, invocada a legitimidade do órgão para a tomada de decisão sobre a constituição do júri, mesmo que este tenha incorrido em ilegalidade, isto é, em contraordenação do disposto no Estatuto da Carreira Docente Universitária, que na alínea c) do seu Art.º 46º -, define como condição para os júris “Serem todos pertencentes à área ou áreas disciplinares para que é aberto o concurso”.

A máquina burocrática é implacável e o RJIES veio potenciar a expressão dessa dimensão implacável da máquina burocrática. Veja-se a título de exemplo, o seguinte excerto de um parecer da Assessoria Jurídica da Reitoria da Universidade de Lisboa, a uma reclamação ao Reitor sobre os resultados de um concurso:

O requerente questiona a legalidade da constituição do júri do concurso, alegadamente por um dos seus membros não ser da área posta a concurso.
No que respeita a esta questão entendemos que a competência estatutariamente atribuída ao Conselho Científico para propor, ao Reitor, a constituição dos júris dos concursos para recrutamento do pessoal docente e de investigação visa, precisamente, assegurar que a área de formação dos membros do júri indicados se coaduna com área disciplinar do concurso.
Assim, a aprovação reitoral da proposta apresentada pelo órgão que atua habilitado com conhecimentos, conceitos e regras próprias da ciência ou da técnica em avaliação, não merece censura, porquanto dá integral cumprimento à provisão legal.

Nos termos deste “curioso” parecer jurídico, o Conselho Científico poderia até ter nomeado para o júri deste concurso, perdoem-me a expressão, um fantoche ou um papagaio, que a sua legalidade e legitimidade não seria nunca questionada pelo Reitor, uma vez que foi aprovado pelo órgão “que atua habilitado com conhecimentos, conceitos e regras próprias da ciência ou da técnica em avaliação”. Que o ilícito exista, que o órgão tenho errado não é sequer uma possibilidade colocada sobre a mesa, por este agente da máquina burocrática, por muito que o requerente insista nesse ponto.
A importância dos Conselhos Científicos na gestão científica das academias é completamente descurada no RJIES e permite que os ilícitos e contraordenações existiam. Mas não é apenas de ilicitude do tipo contraordenação que vive a academia; ela vive também do ilícito do crime, quando, por exemplo, se trata de práticas de assédio. Num recente encontro sobre Assédio na Universidade de Lisboa, promovido por um grupo de docentes e investigadores constituído em Movimento – Movimento U da Universidade de Lisboa – o representante de um dos sindicatos de professores do ensino superior dizia, na discussão após uma mesa-redonda, que as queixas que chegam ao sindicado aumentaram na direta proporção em que a democracia nas academias diminuía. E como é sabido, e tem sido amplamente discutido, a democracia nas escolas diminuiu por força da implementação do RJIES.
A abertura de concursos e a nomeação dos respetivos júris são terrenos propícios à ilicitude, no âmbito das atividades dos conselhos científicos. Pontualmente, resultam em atos de contraordenação, como no caso do exemplo que referi do requerente que invocava a violação de um artigo do ECDU, na nomeação do júri do concurso a que concorreu. Mas, e pegando em casos semelhantes ao citado, a ilicitude resulta de facto em crime, porque o assédio, à luz do código penal, é crime e muitos dos casos de abertura de concursos académicos são atos de assédio, porque resultam em formas de exclusão e de segregação de forma continuada, com o objetivo de obstruir e dominar a carreira de alguém. Assim se instala o medo, meio através do qual o assédio funciona e se possibilita.

A culpa não é toda do RJIES, convenhamos, mas a maldade que este potencia está toda lá. E uma vez potenciada, essa maldade encontra justificação, em outras leis ou em regimentos e dispositivos legais entretanto produzidos, como os estatutos das unidades orgânicas, os regulamentos eleitorais ou os despachos assinados pelo Reitor. Por exemplo, i) impossibilitar que haja mais do que uma lista concorrente aos órgãos de gestão da escola, criando regulamentos eleitorais completamente blindados; ou ii) delegar nos diretores ou presidentes das escolas as presidências de júris de concursos académicos, sabendo do caciquismo que os afeta. Tudo isto contribui para a exercício da prepotência nas escolas, transformadas em unidades em que reina o medo, o favoritismo e o nepotismo ideológico ou de classe, de credo ou de emoção.
É o jogo de uma mão lava a outra. Como afirma Foucault (1975 [2013, p. 430]): “A disciplina recompensa apenas pelo jogo das promoções, permitindo alcançar níveis e lugares; pune fazendo recuar ou despromovendo”. Ou seja, assediando.
A autonomia das unidades orgânicas, supostamente científica, pedagógica e administrativa, tornou-se também, com o RJIES, autonomia de repressão e controlo. É a máquina burocrática e de vigilância exposta por Michele Foucault, no mesmo Vigiar e Punir (p. 336):

A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos “dóceis”. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos económicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência) (…). (…) a coerção disciplinar estabelece no corpo o laço coercivo entre uma aptidão aumentada e um domínio acrescido (Foucault, 1975 [2013, p. 336]).

Para concluir, referindo a motivação desta mesa-redonda, os caminhos do ensino superior em Portugal à luz do RJIES têm sido difíceis e, com o RJIES sem profunda revisão, continuarão sendo difíceis.

Referências
Foucault, M. (1975). Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão. Tradução portuguesa, com introdução de António Fernando Cascais. Edições 70, 2013.

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[1] A prática de 15 anos de implementação do RJIES demonstrou, porém, que os membros cooptados, se forem de facto externos à instituição e às suas práticas, raramente se envolvem ou participam das reuniões do Conselho Geral.
[2] Em particular, qual a legitimidade de uma Comissão Coordenadora do Conselho Científico, constituída pelo Diretor e quatro Diretores de Área, para usurpar competências do Conselho Científico e fazer aprovar júris de concursos académicos, como acontece na minha escola, a única das 18 escolas da Universidade de Lisboa (e talvez a única no país) em que existe uma Comissão Coordenadora do Conselho Científico?

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NOTA OTC
A publicação, hoje, do texto da comunicação apresentada pelo autor na Mesa-Redonda “Os caminhos do ensino-superior à luz do RJIES”, promovida pela OTC, há cerca de um ano, tem todo o sentido, já que a questão da necessária revisão do RJIES permanece na ordem do dia, agora, em cima da mesa do novo governo empossado a 2 do corrente mês de Abril de 2024. Agradecemos ao Professor Carlos Gouveia a cedência do texto para publicação. A imagem de capa é da responsabilidade da OTC.