Nota introdutória
A “Carta” que aqui se transcreve, traduzida do inglês [1], foi dada a público on-line no sítio da prestigiada revista HARPER’S MAGAZINE, publicação mensal fundada em 1850. Neste momento, manifestam-se no seio da sociedade norte-americana fenómenos de diferente natureza, de notável amplitude e com implicações sociais, económicas e políticas iniludíveis, cuja evolução importa acompanhar pois não podem deixar de ter reflexos e consequências que interessam à comunidade internacional no seu conjunto dada a importância e o peso da grande nação americana.
Entre os cerca de cento e cinquenta signatários da “Carta”, vinda a público, contam-se, entre outros intelectuais, numerosos investigadores e académicos de conhecidas universidades norte-americanas.
Ao divulgar a Carta que é uma peça de opinião, temos consciência de que certos termos usados e certas passagens podem suscitar alguma perplexidade e podem não ser susceptíveis de um claro entendimento do pensamento dos autores pois reflectirão idiossincrasias específicas de uma sociedade com características próprias que, em diversos aspectos, a distinguem da nossa.
“Carta sobre Justiça e Livre Debate”
“As nossas instituições culturais atravessam um momento difícil. Poderosos movimentos de protesto por justiça racial e social estão a conduzir à reivindicação há muito necessária de uma reforma das polícias, a que se juntam outras de maior alcance por mais igualdade e inclusão em toda a sociedade, incluindo no ensino superior, no jornalismo, na filantropia e nas artes. Mas esse acerto de contas necessário também intensificou um novo conjunto de atitudes morais e compromissos políticos que tendem a enfraquecer as nossas normas de debate aberto e de tolerância da diferença em favor de uma conformidade ideológica. Aplaudindo o primeiro fenómeno, levantamos as nossas vozes contra o segundo. As forças do iliberalismo estão a ganhar força em todo o mundo e têm em Donald Trump um poderoso aliado, que representa uma ameaça real à democracia. Mas a resistência não deve fixar-se no seu próprio dogma ou propósito coercivo – que os demagogos da direita já estão explorar. A democracia inclusiva que desejamos só pode ser alcançada se nos pronunciarmos contra o clima de intolerância que se instalou à nossa volta.
A livre troca de informações e ideias, a força vital de uma sociedade liberal, está a ser diariamente mais constrangida. Enquanto nos habituávamos a esperá-lo da direita radical, a censura está também a espalhar-se mais amplamente na nossa cultura: uma intolerância a visões opostas, uma onda de condenação pública e ostracismo e a tendência para dissolver questões políticas complexas em certezas morais cegas. Sustentamos o mérito do contraditório em termos fortes e mesmo cáusticos de onde quer que venha. Mas agora é mais do que comum ouvir o apelo a punição rápida e severa em resposta a apontadas transgressões no discurso ou no pensamento. Mais preocupante ainda, líderes institucionais em pânico, num espírito de controlo de danos, estão a aplicar sanções apressadas e desproporcionais, em vez de reformas ponderadas. Editores são demitidos por publicar peças controversas; livros são retirados por alegada falta de autenticidade; jornalistas são impedidos de escrever sobre certos tópicos; os professores são investigados por citar obras literárias na sala de aula; um investigador é demitido por fazer circular um estudo académico revisto por pares; e dirigentes de instituições são expulsos por erros que não passam por vezes de simples descuido. Quaisquer que sejam os argumentos à volta de cada incidente em particular, o resultado tem sido um progressivo estreitar dos limites do que pode ser dito sem a ameaça de represálias. Estamos já a pagar o preço com uma maior aversão ao risco entre escritores, artistas e jornalistas que temem pelos seus meios de subsistência se se afastarem do consenso ou até se não mostrarem com suficiente zelo a sua concordância.
Esta atmosfera sufocante acabará por pôr em risco as causas mais vitais do nosso tempo. As restrições ao debate, seja por um governo repressivo ou por uma sociedade intolerante, prejudica invariavelmente aqueles que não têm poder e torna todos menos capazes de uma participação democrática. O caminho para combater as más ideias passa pela exposição, a discussão e a persuasão, não por procurar silenciá-las ou desejar que desapareçam. Recusamos qualquer falsa escolha entre justiça e liberdade, que não podem existir uma sem a outra. Como autores, precisamos de uma cultura que nos deixe espaço para a experimentação, para correr riscos e até errar. Precisamos de preservar a possibilidade do desacordo de boa-fé sem a ameaça de terríveis consequências no plano profissional. Se não defendermos aquilo mesmo de que depende o nosso trabalho, não devemos esperar que seja o público ou o estado a defendê-lo por nós.
Os signatários
7 de Julho de 2020”
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