Espanha: Nova Lei da Ciência

Fim das Bolsa de Doutoramento: Doutorandos reconhecidos como “trabalhadores”

Em 2 de Junho último o Estado Espanhol adoptou uma nova lei chamada “Lei da Ciência, Tecnologia e Inovação[1 que vem substituir a anterior lei respeitante a estas mesmas matérias que vigorava desde Abril de 1986[2]. Registe-se o atraso com que é publicada não conforme com a intenção manifestada pela Ministra da Ciência e Inovação de Espanha de a concluir o processo em 2009. Aparece agora, depois de um primeiro ante-projecto que não parece muito diferente do texto final. O ante-projecto esteve em consulta pública durante cerca de 3 meses (Março a Junho de 2010).

 

A nova lei é de âmbito largo, abrangendo o conjunto do sistema espanhol de ciência, tecnologia e inovação, em todas as suas componentes, directa ou indirectamente dependentes da Administração Geral do Estado e bem assim as componentes dependentes das Comunidades Autónomas. Vinte e cinco anos separam a presente Lei-Quadro da anterior (1986), intervalo de tempo que terá alterado significativamente o panorama das actividades de I&D e Inovação em Espanha.

 

Em particular a nova lei chama a atenção para “o desenvolvimento das competências em matéria de investigação científica e técnica e de inovação das Comunidades Autónomas, através dos seus Estatutos de Autonomia e da aprovação de normas regulamentares próprias.” Esta evolução, acrescenta-se, veio dar lugar a verdadeiros sistemas autonómicos de I&D e Inovação, com identidade própria, que coexistem com o sistema implantado centralmente pela Administração Central do Estado. Existe assim de facto hoje em Espanha na área da actividade social da Ciência, Tecnologia e Inovação, um “sistema de sistemas” donde impor-se, entre outras, a necessidade de levar à prática novos mecanismos de coordenação e gestão.

 

Em Espanha os chamados OPIs ou Organismos Públicos de Investigação que são o equivalente dos nossos Laboratórios do Estado, são abrangidos pela presente Lei e sempre nesta referidos a par das Universidades, ressalvando embora no caso destas últimas algumas especificidades. Para além das Universidades e dos OPIs, são considerados na lei as entidades designadas por “Centos Sanitários” e também as Empresas, considerando-se que estes quatro grupos são “responsáveis pela maior parte da actividade investigadora” realizada no país. Consideram-se ainda outros agentes integrantes do Sistema de I&D e Inovação a que se atribui “papel muito destacado” na actualidade, designadamente, centros de investigação adstritos às Comunidades Autónomas, à Administração Geral do Estado ou a ambas, como os Centros Tecnológicos, os Parques Científicos e Tecnológicos, e as Instalações Científico-Técnicas Singulares. A lei estabelece para este vasto conjunto de entidades disposições de carácter geral, garantindo em todos os casos aquilo a que chama “princípio de neutralidade, pelo qual nenhum agente deve ser privilegiado em resultado da sua dependência orgânica ou natureza jurídica”.

Merecem especial destaque no conjunto de agentes acima enumerados, as Universidades e os Organismos Públicos de Investigação (OPIs) sendo que a todos estes se aplica a grande maioria das normas contidas na nova Lei.

No preâmbulo da lei pode encontrar-se a lista dos OPI’s, que dependem todos da Administração Geral do Estado, organismos a que é dedicado o capítulo 3 da Lei. São eles: o Conselho Superior de Investigação Científica (CSIC); o Instituto Nacional de Tecnologia Aeroespacial (INTA); o Instituto de Saúde Carlos III (ISCIII); o Instituto Geológico e Mineiro de Espanha (IGME); o Instituto Espanhol de Oceanografia (IEO); o Centro de Investigações da Energia, do Meio Ambiente e Tecnológicas (CIEMAT), o Instituto Nacional de Investigação e Tecnologia Agrária e Alimentar (INIA), e o Instituto de Astrofísica das Canárias (IAC).

O Título II da Lei é dedicado aos “Recursos humanos dedicados à investigação” e contem no seu capítulo primeiro as normas respeitantes ao “Pessoal Investigador ao serviço das Universidades públicas, dos Organismos Públicos de Investigação e dos Organismos de investigação de outras Administrações Públicas”[3]. Diz-se o que se deve entender por pessoal investigador; estabelecem-se os respectivos direitos e deveres; critérios de selecção e de promoção interna; condições de mobilidade intra-institucional. No que respeita a contratação, explicitam-se as modalidades contratuais aplicáveis ao pessoal dito em regime laboral (equivalente ao nosso contrato administrativo a termo certo) e as regras de acesso à funcionarizarão, já que se mantem na lei espanhola a existência de trabalhadores funcionários com carreiras profissionais definidas e regulamentadas.

A lei estabelece como uma das modalidades contratuais específicas do pessoal investigador, a do “contrato pré-doutoral”, limitado a 4 anos. Esta disposição determina o desaparecimento da figura de “bolseiro de doutoramento” no quadro da Administração Pública, incluindo as Universidades públicas[4]. Também a figura da bolsa de pós-doutoramento é substituída pelo “contrato de acesso ao Sistema Espanhol de Ciência, Tecnologia e Inovação”. Neste caso a duração máxima do contrato é 5 anos. Entretanto, a partir do segundo ano de vigência do contrato, o investigador pode sujeitar-se a uma avaliação de desempenho que, se for positiva, funcionará como elemento de valorização curricular relevante em caso de abertura de concurso para uma posição fixa numa qualquer entidade do Sistema. Abre-se assim, nesta segunda modalidade contratual, ao investigador doutorado, o caminho a que os anglo-saxónicos chamam “tenure track”. O pessoal investigador contratado em qualquer destas modalidades goza dos direitos estabelecidos na lei geral (Código do trabalho).

Outo aspecto relevante da lei é a inclusão do pessoal técnico de investigação nas disposições específicas relativas ao pessoal que trabalha nos OPI’s. Assim, estabelece-se na Lei (Art.º 27) que “se considera pessoal de investigação ao serviço dos Organismos Públicos de Investigação da Administração Geral do Estado o pessoal investigador e o pessoal técnico”. São descritos extensivamente os direitos e deveres do pessoal técnico que presta serviço nos OPI’s e definidas para o pessoal técnico funcionário as correspondentes carreiras específicas, em número de seis, sem prejuízo da possibilidade da contratação a termo de pessoal técnico para a realização de projectos específicos de investigação científica e técnica. São as seguintes as seis carreiras acima referidas[5]:

a) Tecnólogos de Organismos Públicos de Investigação;

b) Técnicos Superiores Especializados de Organismos Públicos de Investigação;

c) Cientistas Superiores da Defesa;

d) Técnicos Especializados de Organismos Públicos de Investigação;

e) Ajudantes de Investigação de Organismos Públicos de Investigação;

f) Auxiliares de Investigación de Organismos Públicos de Investigação.

 

É aberta a possibilidade de “promoção interna” entre carreiras técnicas e carreiras científicas com vista a facilitar o desenvolvimento de uma carreira profissional pessoal.

 

São citados no texto da Lei agora aprovada os princípios acolhidos na Carta Europeia do Investigador e no Código de Conduta para a contratação de investigadores (2005/251/CE).

 

No que toca aos aspectos cruciais da política científica importa referir o seguinte.

É criado um instrumento de definição de objectivos e planificação de acções que integram a assim designada “Estratégia Espanhola de Ciência e Tecnologia”, com carácter plurianual e que obriga não só a Administração Geral do Estado como também as Comunidades Autónomas. A elaboração deste instrumento é da responsabilidade do Ministério da Ciência e Inovação que trabalhará em colaboração com um “Conselho de Política Científica, Tecnológica e de Inovação”. Este pronunciar-se-á sobre o documento tal como deverá acontecer nos termos da Lei com o “Conselho Assessor de Ciência, Tecnologia e Inovação” nela definido, com os órgãos de planificação económica da Administração Geral do Estado, a “Comissão Delegada do Governo para a Política Científica, Tecnológica e de Inovação” e ainda outros órgãos interessados. O documento será finalmente levado ao Governo e às Cortes Gerais (Parlamento) para aprovação.

É também criado um “Comité Espanhol de Ética da Investigação” adstrito ao Conselho de Política Científica, Tecnológica e de Inovação. Trata-se de um órgão colegial, independente, com funções consultivas em matérias relacionadas com a ética profissional na investigação científica e técnica.

A “Estratégia Espanhola de Ciência e Tecnologia” é um instrumento de política geral que é complementado no que respeita às actividades de I&D e Inovação prosseguidas no âmbito da Administração Geral do Estado, por um “Plano Estatal de Investigação Científica e Técnica” e por um “Plano Estatal de Inovação”. Estes planos são elaborados pelo Ministério de Ciência e Inovação ouvidos os órgãos consultivos já mencionados atrás e incluem aspectos orçamentais respeitantes às actividades consideradas.

De notar, que já anteriormente, na vigência da legislação de 1986, eram elaborados documentos de planificação estratégica das actividades de Ciência, Tecnologia e Inovação dos quais o principal era designado por “Plano Nacional de Investigação Científica y Desenvolvimento Tecnológico” (ver Textos e Documentos).

Importantes aspectos da lei foram objecto de crítica no seio da comunidade científica espanhola que há muito se vinha manifestando, nomeadamente contra a precariedade laboral do pessoal investigador, mas também contra a escassez de fundos disponíveis para a ciência, a falta de definição clara de objectivos e prioridades de trabalho e as demoras e incertezas burocráticas na aprovação de projectos e a persistente escassez e imprevisibilidade da oferta de emprego público de que depende a funcionarização do pessoal de investigação.

A estabilidade de carreira para o pessoal investigador continuará com a nova lei a depender das oportunidades de acesso a lugares de contrato sem termo e de acesso à funcionarização. De assinalar que a obrigatoriedade da aplicação dos mecanismos contratuais que a nova lei institui só afecta as empresas privadas que recebam financiamentos públicos, mantendo-se assim aberta a porta que permite que fora do sector público continuem a existir bolsas e bolseiros a trabalhar em projectos de investigação.

Entretanto, vêem-se verificando em anos recentes se cortes orçamentais que afectam a generalidade do sector, e em especial os OPIs que apresentam para 2011 um recuo acumulado desde 2009 de mais de 18%.

O principal organismo de financiamento da I&D em Espanha será a Agência Estatal de Financiamento, cuja criação é prevista na nova Lei mas cujos estatutos se desconhecem sendo dado ao governo um ano para os publicar. Esta Agência parece ser o organismo homólogo em Espanha da Fundação para a Ciência e a Tecnologia portuguesa.

8 de Julho de 2011


[2] Ley 13/1986, de 14 de abril, de Fomento y Coordinación General de la Investigación Científica y Técnica

[3] Refere-se, certamente, às Administrações Públicas das Comunidades Autónomas.

[4] No caso das Universidades públicas é feita a ressalva de que a contratação só é permitida nos casos em que  a universidade seja “receptora de fundos cujo destino inclua a contratação de pessoal investigador”

[5] Importa lembrar que há alguns anos atrás a OTC elaborou uma proposta de Carreiras Técnicas de Investigação que não foi acolhida pelo governo da altura. (ver Textos e Documentos)