Ciência no Mundo actual: uma visão global de futuro

Ciência no Mundo actual: uma visão global de futuro
Mesa-Redonda
XXV Encontro da Rede de Estudos Ambientais de Países de Língua Portuguesa REALP
Universidade de Évora, 5 de Setembro de 2025
Frederico Carvalho

Caras e caros colegas,
Vivemos tempos difíceis.
Nos dias de hoje pesam sobre as sociedades humanas e o mundo natural riscos e ameaças que podem pôr em causa a própria continuidade da vida sobre a terra. Falamos de riscos existenciais.
Em nosso entender, destacam-se duas grandes ameaças: o risco de um conflito nuclear entre grandes potências e a intensificação dos fenómenos naturais ligados às alterações climáticas em curso e as disrupções ecológicas que as acompanham. São esses os mais graves perigos que se colocam hoje às sociedades humanas e à própria sustentabilidade da vida sobre a Terra, pelo menos das suas formas mais evoluídas. Partilham desta visão associações de cientistas e outros intelectuais, com créditos firmados no plano internacional, como o Future of Life Institute, ou o Bulletin of Atomic Scientists (este responsável pelo chamado “Relógio do Juízo Final” ou “Doomsday Clock”, criado em 1947), ambas com sede nos EUA, ou ainda a “Scientists for Global Responsibility”, esta do Reino Unido. Gostaria também, neste contexto, de dar particular destaque à Federação Mundial dos Trabalhadores Científicos, com sede em Paris, na qual a minha associação está filiada e à qual eu próprio estou ligado há mais de 40 anos, entidade que nasceu em 1946 e teve como primeiro Presidente Frédéric Joliot-Curie, um cientista e ser humano excepcional.

O que me interessa agora sublinhar é que estes riscos existenciais, de origem antropogénica, a sua emergência e grau de perigosidade, estão estreitamente ligados aos formidáveis avanços do conhecimento científico dos últimos cem anos, por um lado, e, por outro, à prevalência de um sistema económico caracterizado pela propriedade privada dos meios de produção, pelo lucro e pela concorrência.
Permito-me uma opinião pessoal: a de que, nem a abolição das guerras (continuação da política por outros meios) nem os esforços de mitigação dos efeitos das alterações climáticas, poderão ter êxito, sem que ocorram transformações sociais profundas de carácter revolucionário.

Voltemos ao papel da ciência.
No seu “Manifesto em Defesa da Ciência, da Liberdade Académica e dos Trabalhadores Científicos”, recentemente dado a público, a Organização dos Trabalhadores Científicos relembrando (cito) que “sem ciência não há futuro” manifesta a convicção de que “Nenhum país pode enfrentar as crises actuais — climática, sanitária, económica, geopolítica — sem valorizar, proteger e investir no conhecimento”. Entretanto todos devemos estar conscientes, e importa sublinhá-lo, de que a Ciência é uma arma de dois gumes. Avanços do conhecimento científico podem dar lugar a aplicações perversas que trazem consigo sérios riscos para a humanidade. Recordo o pensamento de François Rabelais, notável humanista, escritor e médico francês da primeira metade do século XVI: “ Ciência sem consciência mais não é que ruína da alma”. Outros, muito mais tarde e num momento crítico da história universal, reflectiram a mesma preocupação. A notável cientista Lise Meitner pioneira na interpretação física do fenómeno da cisão nuclear, acolhida na Suécia em fuga à perseguição nazi, recusou-se a trabalhar no Projecto Manhattan, em Los Alamos, declarando: “Não terei nada a ver com uma bomba!“. Na sua pedra tumular pode ler-se a inscrição: “Lise Meitner: uma física que nunca perdeu a sua humanidade”. Einstein que numa carta escrita em 1939 incentivara Roosevelt a desenvolver a bomba, viveu atormentado com as consequências desse gesto. Pouco antes de falecer escreveu a um amigo que esse fora “o maior erro da sua vida”.

Quando dizemos “Que sem ciência não há futuro”, importa lembrar os perigos de uma ciência desprovida de princípios éticos. A frase atribuída a Einstein: “Tornou-se terrivelmente óbvio que a nossa tecnologia excedeu a nossa humanidade”, leva-nos a ter presente que a busca pelo conhecimento deve sempre ser acompanhada da reflexão sobre as suas implicações e impactos na sociedade. Designadamente, o emprego deliberado ou acidental da arma nuclear, um fruto da ciência, poderá afinal pôr em causa o futuro — o futuro da vida sobre a Terra.

O trabalho científico, nos nossos dias, é fortememnte constrangido por poderosos interesses corporativos que, em numerosos casos, exercem uma influência dominante sobre os poderes públicos transformando numa ficção o próprio conceito de democracia: “governo do povo, pelo povo, para o povo” citando o discurso de Gettysberg de Abraham Lincoln, de 1863. Nos nossos dias, uma significativa maioria dos trabalhadores científicos trabalha no sector privado o que naturalmente condiciona os objectivos do seu trabalho. Por outro lado, no sector público, para além da existência de agências do Estado com o foco explicito na área eufemisticamente dita da “defesa”, como a americana DARPA (Defense Advanced Research Projects Agency), vem crescendo significativamente a influência dos militares sobre as agendas de investigação das universidades. De acordo com a associação Scientists for Global Responsibility, atrás referida, “é muito difícil encontrar universidades no Reino Unido que não recebam financiamento militar”. As áreas particularmente visadas são as chamadas STEM-Science, Technology, Engineering and Mathematics”.
Na área não militar, todos temos conhecimento da influência de poderosos lobbies de interesses económicos na orientação de trabalho de investigação pura e aplicada em domínios que interessam aos seus negócios, sem as desejáveis preocupações éticas. É o caso, designadamente, da grande indústria farmacêutica (a Big Pharma) ou das grandes empresas do petróleo e do gás (Big Oil) que por vezes procuram contrapor resultados de trabalhos de investigação próprios, de duvidosa consistência, a outros promovidos por entidades independentes e assentes em bases sólidas. Situações análogas dão-se com as grandes tabaqueiras que procuram promover os seus produtos financiando investigação que visa minimizar os efeitos negativos do tabagismo na saúde humana. No plano internacional iniciativas promovidas ou patrocinadas pela ONU com o objectivo de encontrar soluções para problemas globais que afectam o nosso futuro ou simplesmente mitigar os efeitos de certas actividades humanas não têm sucesso ou ficam muito aquém de atingir os objectivos propostos. São exemplo a sucessão das chamadas COPs — aproxima-se a sua trigésima edição — ou a tentativa de chegar a um acordo sobre um tratado global para combater a poluição por plásticos.
Neste caso a última ronda de negociações, em Agosto último, saldou-se em mais um insucesso devido à oposição dos grandes produtores de petróleo e do lobby das indústrias químicas. 

Perante este quadro, importa perguntar-nos: o que fazer, como poderemos agir enquanto trabalhadores científicos.
Em nosso entender, importa focarmo-nos na “educação—formação” das novas gerações, procurando nela reflectir correctamente os desafios que temos pela frente e os caminhos que importa seguir para os enfrentar. Desafios globais que mais tarde ou mais cedo porão em causa a estabilidade das sociedades humanas e mesmo o futuro de uma vida sobre a terra que valha a pena viver.

Julgamos que a apresentação e debate isento dos 17 Objectivos de Desenvolvimento Sustentável que são o coração da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas, deve fazer parte dos curricula escolares no superior e no secundário. Importa explicar a sua necessidade e os obstáculos que se levantam à sua concretização. Também aqui há razões para crer que esses objectivos não serão atingíveis sem mudanças sociais profundas que dependem de uma alteração da relação de forças a nível global ou, se quisermos, de mudanças no plano geopolítico.

A par disto importa desenvolver uma acção militante de formação /informação junto do cidadão comum, que requer tempo, dedicação e põe à prova o talento didáctico de cada um de nós. Se se quiser: a capacidade de exposição em termos simples de questões complexas.
Recordamos personalidades que são fonte de inspiração nesse caminho, como Bento de Jesus Caraça, Rómulo de Carvalho ou Galopim de Carvalho. Todavia é a acção organizada ou de grupo que se mostrará mais influente. Esse papel cabe às associações que congregam trabalhadores científicos, sobretudo às ONGs de carácter não sindical que, estas, obrigatoriamente, devem dar prioridade à defesa das condições de trabalho e de vida dos seus associados.

Entretanto, a uma sociedade estável, desmilitarizada, assente nos valores da Paz e da cooperação entre os povos, colocar-se-á, a nosso ver, uma questão essencial que é a da estabilização e ulterior diminuição do PIB mundial, caminho esse imposto, naturalmente, pela necessidade de salvaguardar os recursos naturais do planeta. Seguir esse caminho exigirá a alteração dos padrões de consumo nos países ricos e deverá a acompanhar uma redistribuição da riqueza produzida sem o que dificilmente poderá ter sucesso o necessário combate às gritantes desigualdades hoje existentes, e que se aprofundam, no seio de cada país e entre países.

Termino citando um lema, lema da União Internacional de Cientistas, que reza assim:
O nosso trabalho pode servir a humanidade ou contribuir para a sua ruína — e nós escolhemos defender a humanidade

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NOTA OTC:
“Pessoas e Natureza: Investigação em Sustentabilidade
A REALP | AMIGO 2025 organizou 4 Mesas Redondas sobre temas actuais abrangentes, que estão na base da criação da Rede de Estudos Ambientais – REALP e do Projecto ERASMUS Ambiente e Gestão – AMIGO
(
https://www.realpamigo2025.uevora.pt/mesas-redondas/)
Composição da Mesa Redonda III
“Ciência no Mundo actual: uma visão global de futuro”
Frederico Carvalho, Presidente Direcção Organização dos Trabalhadores Científicos
Aidate Mussagy, Editora-Chefe Unidade Editorial da Revista Científica da Universidade Eduardo Mondlane (UEM)
Henrique dos Santos Pereira, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazónia
Moderação: Mourad Bezzeghoud
Sala de Docentes, Colégio do Espírito Santo, Universidade de Évora