MADRID 2019 “PAZ SEM FRONTEIRAS”
PALÁCIO MUNICIPAL DE CONGRESSOS DE MADRID
15 de Setembro de 2019
Intervenção na Sessão Inaugural
Jeffrey D. Sachs
Conselheiro especial do Secretário-Geral das Nações Unidas
No seu discurso de posse há quase 60 anos, o Presidente John F. Kennedy declarou: “O mundo está hoje muito diferente. Pois o homem tem nas suas mãos mortais a capacidade de acabar com todas as formas de pobreza humana e todas as formas de vida humana”. O que era verdade então é ainda mais nitidamente verdade hoje. Somos suficientemente ricos e conhecedores para acabar com a pobreza e a fome e para garantir que todas as crianças do planeta tenham acesso a uma educação de qualidade.
No entanto, também estamos a ameaçar a nossa própria sobrevivência, não apenas por meio de armas nucleares, como já era verdade no tempo de Kennedy, mas também por meio das mudanças climáticas, poluição e destruição em massa de outras espécies, o que é novo neste nosso tempo.
A floresta amazónica está a arder, tal como as nossas políticas. Demasiados líderes são hoje distribuidores de ódio, de medo, ganância e corrupção. Muitos usam o pretexto da identidade nacional como arma de arremeço contra os fracos e vulneráveis.
No entanto, não estamos hoje aqui para dirigir qualquer apelo aos incitadores de ódio. Estamos aqui hoje para nos unirmos em nome da nossa humanidade comum. Estamos aqui para insistir que a humanidade é dotada de razão, a razão que nos permite escolher o bem comum.
A nossa razão pode superar a guerra e preveni-la no futuro. Temos guerras no nosso tempo causadas pela “arrogância de grande potência”, como quando os Estados Unidos lançaram uma guerra não provocada contra o Iraque, ou enviaram a CIA à Síria para derrubar o governo sírio, ou quando os EUA, a França e o Reino Unido enviaram bombardeiros da OTAN para derrubar o governo líbio. Temos guerras, hoje, porque a pobreza extrema num lugar como o Iémen provoca desespero e cria um caldeirão de conflitos, no qual potências maiores despejam armas e bombas. Temos guerras hoje porque secas e inundações tornadas mais frequentes e intensas pelas mudanças climáticas provocadas pelo homem estão a levar à perda de colheitas, a fome e migração em massa, que por sua vez desencadeiam novas ondas de violência.
E corremos o risco de novas e ainda mais devastadoras guerras porque o presidente dos EUA promove guerras comerciais que geram represálias e escaladas; faz uso do poder da banca dos EUA para criar fome e desespero na Venezuela e no Irão para tentar forçar esses governos a submeterem-se à sua vontade; propõe militarizar o espaço com uma nova Força Espacial dos EUA; retira-se do Tratado sobre Forças Nucleares de Alcance Intermédio; e propõe o lançamento de uma nova geração de armas nucleares em violação da obrigação explícita de desarmamento nuclear das potências nucleares signatárias do Tratado de Não-Proliferação Nuclear.
Antigamente, a humanidade era joguete de tiranos e déspotas, de príncipes e reis, que enviavam homens para a batalha e mulheres e crianças para a ponta das espadas. No entanto, sabemos hoje melhor que a guerra não é o nosso destino, e que a paz e a prosperidade estão ao nosso alcance.
Somos os herdeiros de Platão e Aristóteles, que defenderam o dom da razão; de Jesus, que proclamou que os pacificadores são filhos de Deus; de Immanuel Kant, que imaginou uma união de repúblicas para assegurar a paz perpétua; de Franklin Roosevelt, que lançou as Nações Unidas após a Segunda Guerra Mundial para pôr em prática a visão de Kant; de John F. Kennedy e Nikita Khrushchev, que assinaram o Tratado de Proibição Parcial de Ensaios Nucleares no auge da Guerra Fria e, assim, mostraram o caminho para a paz; e de Martin Luther King Jr., que nos lembrou que “o arco percorrido pelo universo moral é longo, mas inclina-se para a justiça”.
Vamos, portanto, tomar posição contra a irracionalidade, a ignorância e o medo. Tomemos posição contra a arrogância de grandes potências e de pequenos déspotas. Vamos pensar em conjunto.
Aqui estão alguns factos concretos.
O produto interno bruto mundial atinge este ano 90 milhões de milhões de dólares americanos, mais de 11 000 dólares por pessoa. No entanto, cerca de mil milhões de pessoas ainda vive em pobreza extrema. Com uma transferência de apenas 1% do PIB dos países ricos para os países pobres — cerca de 500 mil milhões de dólares por ano — poderíamos acabar com a pobreza extrema.
A esperança de vida global é agora de 72 anos, mas cerca de 5 milhões de crianças pobres morrerão este ano antes de completar cinco anos porque as suas famílias e comunidades são pobres demais para as manter em vida. Com uma transferência de apenas um décimo de um por cento do PIB do mundo rico, os cuidados de saúde poderiam ser alargados a essas crianças, e a maior parte dessas mortes poderia ser evitada.
O mundo prometeu educação do jardim-infantil ao ensino secundário para todas as crianças do planeta, mas 260 milhões de crianças em idade escolar estão fora da escola. Com apenas um décimo de um por cento do PIB do mundo rico transferido para os países pobres, podemos financiar salas de aula e professores para todas essas crianças.
O património líquido combinado de 2000 bilionários eleva-se a 10 milhões de milhões de dólares. As 15 pessoas mais ricas do planeta possuem uma riqueza de 1 milhão de milhões de dólares. O simples rendimento auferido anualmente por essas quinze pessoas, poderia cobrir a lacuna de financiamento necessário para escolarizar 260 milhões de crianças. Jeffrey Bezos, Bill Gates, Bernard Arnault, Warren Buffett, Mark Zuckerberg e outros: os senhores devem agir.
Os Estados Unidos gastam por ano com as forças armadas mais de 700 mil milhões de dólares — US$ 2 mil milhões por dia. Três dias de gastos militares de um ano, ou seja 6 mil milhões por ano, levariam quase a zero as mortes por malária. Cinco dias de gastos militares por ano, ou US$ 10 mil milhões, financiariam integralmente o Fundo Global de Combate à SIDA, tuberculose e malária. Dizemos ao Pentágono: façam um fim de semana longo, para que possamos livrar o mundo dessas doenças assassinas.
O custo mundial de conflitos armados, gastos militares, gastos com segurança interna e gastos com segurança pessoal, excede, por ano, 5 milhões de milhões de dólares, o suficiente para acabar com a pobreza, proteger a natureza e reconverter o sistema energético mundial assentando-o nas energias eólica, solar, hidroeléctrica, geotérmica e outras fontes de carbono zero. Acompanhamos o profeta Isaías, que nos disse para converter espadas em arados.
Somos um mundo rico, mas perdemos o rumo. Sofremos, disse-nos o Papa Francisco, da “globalização da indiferença”. No entanto, o Papa Francisco não descreveu apenas a nossa condição preocupante — apontou uma luz para a nossa salvação. Ele disse-nos, na sua encíclica magistral Laudato Si’, que “a interdependência nos obriga a pensar num mundo com um plano comum”.
Amigos, podemos forjar esse plano comum. As ferramentas estão à mão.
Devemos começar com a Carta da ONU, que nos convida a resolver conflitos por meio do diálogo, negociação e mediação, não com ameaças ou uso da força por capricho dos políticos.
Devemo-nos basear na Declaração Universal dos Direitos Humanos, a nossa carta moral universal, que reconhece os direitos políticos e civis, mas também os direitos económicos, sociais e culturais.
Devemos alcançar os Objectivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas, que remetem a nossa geração para os direitos económicos da Declaração Universal.
E devemos cumprir o Acordo Climático de Paris, mantendo o aquecimento planetário abaixo de 1,5 graus Celsius, se queremos evitar o desastre de uma mudança climática descontrolada.
Na próxima semana, os governos do mundo reunir-se-ão na Assembleia Geral das Nações Unidas para avaliar o progresso em direcção aos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável e acelerar a acção global sobre as mudanças climáticas. Estamos muito atrasados, pois o tempo vai-se perdendo em inacção, corrupção e ganância. Em Dezembro, os governos do mundo encontrar-se-ão em Santiago do Chile para encorajar medidas em direcção à segurança climática. Em 2020, os mesmos governos reunir-se-ão em Kunming, na China, para abordar a crise urgente de 1 milhão de espécies em risco de extinção causada pelas actividades humanas, como o desmatamento na Amazónia. A nossa função é participar em acções concretas e responsabilizar os nossos governos para que se mantenham fiéis à sua palavra e longe da corrupção e das mentiras que muitas vezes permeiam as nossas políticas.
Temos os meios, a riqueza, a tecnologia, o saber-fazer e a necessidade de cumprir todas as metas e compromissos que estabelecemos. Em nome de todas as religiões, que se dirigem, todas elas, à nossa humanidade comum, estamos aqui com a razão dada por Deus para prosseguir esses objectivos e afastar gananciosos, arrogantes e perversos.
Juntemos a fé e a razão, teólogos e cientistas, sacerdotes e filósofos, políticos esclarecidos e cidadãos informados, a uma ética do bem comum.
Digamos aos Estados Unidos: acabem com as sanções que estão a causar sofrimento e fome aos povos da Venezuela e do Irão: abstenham-se de uma nova corrida aos armamentos no espaço e às armas nucleares e respeitem a Carta da ONU.
Digamos ao mundo rico: cumpra o compromisso de dar um mero 1% do vosso PIB nacional, em ajuda pública e privada, para atender às necessidades urgentes dos pobres em conformidade com os Objectivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU.
Digamos às poderosas corporações do mundo: vocês são responsáveis por todas as partes envolvidas, não apenas pelos vossos accionistas, e a vossa primeira responsabilidade é não tratar mal os vossos trabalhadores, as comunidades onde operam, os vossos clientes ou o próprio planeta.
Digamos aos bilionários do mundo: o mundo pertence a todos, não apenas a vós. A vossa fortuna, os vossos milhões de milhões de dólares, devem ser usados para socorrer e melhorar a situação dos pobres, os que têm fome e os doentes.
Digamos aos políticos que abusam da religião: não tentem dividir-nos ou colocar-nos uns contra os outros, pois a palavra de Deus exige justiça universal e misericórdia universal.
Recordemos a sabedoria do Papa Paulo VI na sua Populorum Progressio, há meio século atrás, quando declarou que desenvolvimento é o novo nome da Paz. Hoje podemos dizer que desenvolvimento sustentável é o novo nome da Paz.
No seu último discurso nas Nações Unidas, poucas semanas antes de ser assassinado, o Presidente Kennedy lembrou a assinatura do Tratado de Proibição de Ensaios Nucleares, para o qual ele tanto contribuíra. Disse então aos seus homólogos presentes que “se levantaram um pouco as nuvens, para que novos raios de esperança pudessem surgir”. E dirigiu estas belas palavras de estímulo aos líderes mundiais:
“Arquimedes, ao explicar o princípio da alavanca, teria declarado aos seus amigos: ‘Dêem-me um ponto de apoio … e eu moverei o mundo’.” Companheiros habitantes deste planeta: tomemos posição aqui, nesta Assembleia de nações. E vejamos se, nos nossos dias, poderemos levar o mundo a uma paz justa e duradoura.
Por todos nós, aqui em Madrid, gratos à admirável Comunidade Sant’Egidio e ao excelente povo de Espanha por nos ter aqui reunido, comprometamo-nos, nesta assembleia de religiões, a fazer a nossa parte para mover o mundo no sentido do desenvolvimento e do bem comum.
Jeffrey Sachs
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A Intervenção do Professor Jeffrey Sachs pode ser vista aqui:
https://preghieraperlapace.santegidio.org/pageID/31024/langID/en/text/3172/Speech-of-Jeffrey-D-Sachs.html
Jeffrey Sachs é economista, Professor na Universidade de Columbia (EUA) onde dirige o Centro para o Desenvolvimento Sustentável.
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A OTC agradece à Comunidade Sant’Egidio a permissão para reproduzir no seu site a intervenção do Professor Jeffrey Sachs no Encontro internacional promovido pela Comunidade em Madrid, em Setembro de 2019, com o título “Paz sem fronteiras”. Em nosso entender, o seu conteúdo mantem-se actual, três anos passados.
https://preghieraperlapace.santegidio.org/pageID/31024/langID/pt/MADRID-2019–PAZ-SEM-FRONTEIRAS.html
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Sobre a Comunidade Sant’Egidio
Sant’Egidio é uma comunidade cristã nascida em Roma em 1968, logo após o Concílio Vaticano II, num liceu no centro de Roma, por iniciativa de Andrea Riccardi. Com o correr dos anos transformou-se numa rede de comunidades presente em mais de setenta países do mundo. A Comunidade foca-se nas áreas periféricas dos aglomerados humanos que aí se encontram, reunindo homens e mulheres de todas as idades e condições, unidos por um laço de fraternidade, pela palavra do Evangelho e pelo compromisso voluntário e gratuito em prol dos pobres e da Paz.
Ver: https://www.santegidio.org/pageID/30008/langID/pt/A-COMUNIDADE.html