JANELAS SOBRE O FUTURO

 

1. Em 4 de Fevereiro último é publicada em Diário da República a Resolução do Conselho de Ministros, que nomeia o novo Conselho Directivo da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, sob proposta do Ministro das Finanças, Mário Centeno, e do Ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, Manuel Heitor (Resolução n.º 4-C/2016, Diário da República, 2.ª série — N.º 25 — 5 de Fevereiro de 2016).

O novo Conselho Directivo vem substituir o que fora presidido por Miguel Seabra até Abril de 2015 que invocou renunciar ao cargo por “razões pessoais”.Tornou-se assim necessário, como explica a Resolução n.º 27/2015, de 16 de Abril, “proceder à nomeação de um presidente para o referido órgão, para completar o mandato em curso, correspondente ao triénio 2013-2015, que termina no dia 31 de Dezembro de 2015.”

A escolha recaiu sobre Maria Arménia Carrondo, que veio a assegurar as funções de presidente entre 7 de Abril e 31 de Dezembro de 2015, data em que, nos termos da lei, cessou o mandato de todos os então membros do Conselho Directivo.

Entretanto, muita coisa se passou até à posse do novo Conselho Directivo, presidido por Paulo Ferrão, actualmente em funções.

Dessa muita coisa é dada notícia a público em 2 de Fevereiro de 2016, em nota onde se informa que a nomeação do novo Conselho “(…) culminou um processo inédito em Portugal de discussão pública (…)” explicando que “esse processo (iniciado em Dezembro de 2015)incluiu a auscultação de um vasto leque de membros e instituições da comunidade científica e do ensino superior, nomeadamente o Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas, o Conselho Coordenador dos Institutos Superiores Politécnicos, o Fórum dos Laboratórios de Estado, os Conselhos Científicos da FCT, representantes dos sindicatos, dos estudantes e dos investigadores”. Acrescenta ainda a nota que o processo “(e)nvolveu ainda a constituição de um Grupo de Reflexão dedicado a estimular a discussão pública, reflectindo sobre as orientações que devem presidir ao futuro próximo da FCT[1]  . Seguem-se notas curriculares pormenorizada dos membros do Conselho Directivo empossado pelo Ministro Manuel Heitor. Da auscultação da comunidade científica resultou, segundo se afirma, “um conjunto diversificado de contributos quanto aos pressupostos e aos princípios que devem orientar a estratégia da FCT[2]  .

 

2.Ainda em Dezembro de 2015, o Ministro da Ciência Tecnologia e Ensino Superior, decide, como primeiro passo daquele processo inédito, constituir um Grupo de Reflexão, integrando“38 investigadores de reconhecido mérito científico, de diferentes áreas de formação e proveniência geográfica”[3.

 O Grupo de Reflexão sobre o futuro da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, foi constituído, em 10 de Dezembro, estabelecendo-se linhas orientadoras para o trabalho do Grupo constantes de um documento oficial designado por “Termos de Referência”.

A primeira reunião do Grupo realizou-se no dia 15 de Dezembro de 2016, sendo indicado que deveria“ produzir, no prazo de 30 dias úteis, um documento que indique os pressupostos e princípios que devem orientar a estratégia da FCT e o perfil da futura direcção”.

No âmbito do debate público sobre o futuro da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) foram recebidos até 3 de Fevereiro de 2016, numerosos contributos que, no entender do Ministro, “ (…) permitiram identificar com clareza o sentimento colectivo da comunidade científica relativamente aos aspectos que estavam em discussão e onde figuravam como prioridades:

– a reafirmação da FCT como o organismo central no sistema científico e tecnológico nacional, com responsabilidade na gestão e implementação das políticas públicas de C&T;

– o envolvimento da comunidade científica na definição e construção social das politicas públicas, nomeadamente a política científica;

– a recuperação da confiança da comunidade científica e da sociedade em geral nos processos de avaliação e atribuição de financiamento às actividades de I&D;

– o reforço da autonomia das instituições científicas e a garantia da sua correcta avaliação e da estabilidade do seu financiamento;

– a garantia do reforço da actividade científica e a articulação entre as políticas de desenvolvimento dos sistemas científico e de ensino superior”.[4]  

Estas prioridades figuravam tal qual nos termos de referência como linhas orientadoras do trabalho do Grupo o que de algum modo, pode ser considerado, à partida, como uma limitação e condicionamento do âmbito da pretendida “reflexão”[5.

3. Pela sua importância e significado, tem interesse focar desde já certos aspectos do caminho assim decidido.

É curto o prazo de 30 dias para uma reflexão séria e consequente sobre uma longa série de questões que vêm, há décadas, inquinando a vários níveis a organização e a estrutura do sistema público de Ciência e Tecnologia, a vida das suas instituições e o quotidiano dos que a elas dedicam o seu esforço nos planos profissional e no das suas vidas pessoais. Há questões de fundo, de todos conhecidas, que minam o sistema, limitam a sua produtividade e provocam, incómodo, instabilidade e sofrimento a um número excessivo de trabalhadores científicos, sobretudo jovens: escassez de fundos efectivamente disponíveis; instabilidade de emprego e futuro profissional incerto, mesmo para os melhores; enorme escassez de pessoal técnico de apoio à investigação; injustificada carga burocrática; gestores incompetentes e, em certos casos, cúmplices de interesses alheios às necessidades concretas das instituições e serviços que são chamados a comandar.

Constam da história passada do sector de actividade que aqui se contempla, um já relativamente numeroso conjunto de processos de estudo, análise e proposta de orientações, que, na maioria dos casos, senão em todos, não conduziram a soluções adequadas para os problemas inventariados, não conduziram às indispensáveis melhorias ou nem sequer foram adoptadas mesmo quando apontavam os caminhos correctos. Um caso exemplar é o dos relatórios encomendados a especialistas estrangeiros de renome, em que muito justamente se pode distinguir o grupo internacional de avaliação dos laboratórios do Estado, presidido por Jean-Pierre Contzen criado por José Mariano Gago, e cujo mandato se estendeu de Janeiro a Maio de 2006. De notar que entre 1997 e 2001, já trabalhara e produzira um primeiro relatório, um primeiro grupo internacional de avaliação daqueles laboratórios, chefiado pelo mesmo Jean-Pierre Contzen.[6 Entretanto, no essencial, as medidas propostas não tiveram seguimento, e, mais aceleradamente do que até então prosseguiu e continua hoje, a degradação e perda de capacidades dos referidos laboratórios.

Não foi preciso na altura convocar 38 especialistas de comprovado mérito para trabalhar em grupo durante um mês, pondo assim em prática uma metodologia e um modo de trabalho de duvidoso rendimento. As grandes perversões identificáveis no sistema nacional de Ciência e Tecnologia encontram-se, ainda que com diferentes graus de gravidade, em todas as áreas científicas e nas várias instituições que compõem o sistema.

4. Na vigência do anterior governo levantaram-se no seio da comunidade científica fortíssimas e generalizadas críticas à actuação da FCT, por razões de inquestionável justeza. O Conselho Directivo, encabeçado por Miguel Seabra, e o Ministro da tutela, Nuno Crato, último responsável, pelo exercício de funções daquele Conselho Directivo, foram responsabilizados pelas políticas seguidas naquele período. Entende-se assim que o novo Governo e o novo Ministro se afirmem empenhados na “recuperação da confiança da comunidade científica” e coloquem em evidência esse desiderato nos Termos de Referência do Grupo de Reflexão que foi constituído, como atrás se sublinha. É certo que as orientações aí explicitadas, as quais, mais do que simples propostas de trabalho, parecem assentar obrigações do Grupo nas suas análises e deliberações, vão muito para além dessa “recuperação da confiança”. No entanto a “recuperação da confiança” só poderá ser realidade se e quando se vierem a concretizar outras intenções afirmadas nos Termos de Referência. É aí que se colocam legítimas interrogações.

5. Tem interesse olhar a composição do “Grupo dos 38” à luz das políticas de Ciência e Tecnologia passadas e das que se poderão perspectivar para o futuro. Importa dizer que se trata aqui de uma análise que nada tem a ver com o maior ou menor mérito científico dos curricula daquelas ou daqueles que foram convidados a integrar o Grupo e aceitaram integrá-lo. A primeira nota é a seguinte: 12 dos 38 membros do Grupo exercem actividades de docência e investigação na área das Humanidades e Ciências Sociais. Esta proporção é muito aproximadamente a que se retira do chamado Inquérito ao Potencial Científico e Tecnológico Nacional (dados mais recentes: Outubro de 2015) o que se afigura correcto. A distribuição geográfica e por escolas, por seu lado, afigura-se algo desequilibrada [7.Por outro lado, o Ministro não considerou útil chamar à “reflexão” no seio do Grupo, investigadores mais jovens ou menos jovens, com currículos científicos significativos, em situação precária, alguns há mais de uma década, e que, nomeadamente, se manifestaram activamente contra as políticas de anteriores governos, que suportaram e sofreram com esquemas de trabalho e comportamentos aberrantes da responsabilidade da Fundação para a Ciência e Tecnologia. Esses puderam, é certo, à distância, fazer chegar as suas posições e propostas às personalidades que tiveram assento no Grupo, o que não é todavia de modo algum o mesmo que participar presencialmente num debate. Acontece que esse universo excluído da directa participação é não só o mais numeroso, como carrega as tarefas mais diversas, e sob certos parâmetros é o mais produtivo.

Há ainda uma importante nota a fazer: a completa ausência dos laboratórios do Estado, ausência gritante que revela a marca de uma política de abandono e descrédito no seio do poder executivo, de um conjunto de instituições que, em qualquer país desenvolvido, constituem um dos pilares em que assenta o sistema científico e técnico, instituições de cuja vitalidade e capacidade de intervenção depende o desenvolvimento económico, social e cultural do país em causa. A política que secundariza o papel dos laboratórios públicos, nas várias áreas de especialidade em que se inserem, é uma política de vistas curtas que vem infelizmente marcando há várias décadas a acção governativa em Portugal, e que foi notavelmente agravada nos consulados de José Mariano Gago. As estatísticas estão aí para o demonstrar, seja no que concerne aos efectivos de pessoal, investigador, técnico e operário, seja no que toca aos aspectos financeiros, quer aos montantes quer à autonomia de gestão. Tem significado o facto de se contarem entre os membros do Grupo de Reflexão, vários altos responsáveis pela gestão do sistema, designadamente da Fundação para a Ciência e Tecnologia, que exerceram funções em governos anteriores. Não é, seguramente, um bom prenúncio ou pré-anúncio de efectivas mudanças de rumo no funcionamento e na organização do sistema nacional de Ciência e Tecnologia.

6.O RELATÓRIO DO “GRUPO DE REFLEXÃO”

Ao abordar o conteúdo do Relatório[8 é natural procurar saber como ele se apresenta no quadro da actividade desenvolvida pelo Grupo, ou, noutros termos, como se passa da árvore ao fruto que dela provem.

A primeira reunião do Grupo, constituído a 10 de Dezembro, teve lugar a 15 desse mesmo mês. A segunda e derradeira reunião realizou-se, um mês depois, a 16 de Janeiro.

No Prefácio do Relatório explica-se que foi preparada pelos relatores designados para o efeito[9 “uma proposta preliminar (…) com base nas intervenções na 1ª reunião (do) grupo e nas contribuições recebidas (…)”. Estas “incluíram contribuições individuais e institucionais” que “envolveram a participação de muitos outros membros da comunidade científica.”Aquela proposta preliminar do Relatório recolheu, em 16 de Janeiro, o apoio geral do Grupo, recebendo algumas “observações sobre pontos específicos” que se considerou poderem ser clarificados. Os relatores prepararam uma proposta final, enviada aos membros do Grupo em 25 de Janeiro, Esta voltou a suscitar apoio geral com “algumas sugestões pontuais que foram consideradas (na) versão final”.

É manifesto que os mentores do processo de elaboração do Relatório consideram ter sido este, fruto de um trabalho muito participado e logo significativamente representativo de consensos existentes no seio da comunidade científica nacional. Teria envolvido ― afirma-se no Relatório final ― “várias centenas de investigadores”[10.

7.OBJECTIVOS DO RELATÓRIO

Encontrando-se a FCT desde 31 de Dezembro de 2015 em processo de gestão corrente gerida por uma direcção cujo mandato terminara naquela data, entende-se que houvesse urgência em normalizar a situação no mais curto espaço de tempo. Aliás, a definição do perfil da futura direcção foi colocado ab initio como um objectivo do Grupo de Reflexão, porventura ― poderá pensar-se ― o mais importante.

Seguiu-se então o processo de nomeação de um novo Conselho Directivo da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, em que obrigatoriamente intervém o designado CRESAP – Comissão de Recrutamento e Selecção para a Administração Pública. Limitou-se a CRESAP a sancionar nomes propostos pelo Governo. Poderá questionar-se se, em verdade, a CRESAP teria competência científica e técnica para essa avaliação curricular fundamentada. Posto que a selecção de quadros dirigentes de estruturas e instituições das quais depende o bom funcionamento do sistema público de Ciência e Tecnologia, em vista da sua importância e especificidade, justificaria um olhar atento e um tratamento singular. É, claramente, o caso da Fundação para a Ciência e Tecnologia. Do novo Conselho Directivo assim nomeado por Resolução do Conselho de Ministros, fazem parte quatro elementos, dos quais, por sinal, metade, provêm de uma mesma Escola.

Vejamos então que outros objectivos se propôs atingir o Grupo de Reflexão e em que medida o seu trabalho terá sido útil para abrir caminho à sua concretização futura.

É expressamente referido que o Relatório se limita a ser “um conjunto de recomendações (…) sem preocupação de ordenação por prioridades de importância ou temporalidade”. Esclarece-se que tais “recomendações” se dirigem ao futuro, sem que se façam preceder “(…) de um levantamento dos problemas observados no passado recente da FCT e das respectivas análise e crítica, nem de um enquadramento conceptual sobre o que é a investigação científica e tecnológica, como se faz, como se avalia, como se financia, como se coordena, etc., ou sobre o sistema nacional de Ciência e Tecnologia”. Perante tal afirmação, porventura inesperada mas talvez não surpreendente, não será despropositado dizer-se que se teve um Grupo a trabalhar num perfeito vazio de realidade. Não é crível que tenha sido assim. Fernando Pessoa escreveu no seu ‘Livro do Desassossego’ :  “Vivo sempre no presente. O futuro, não o conheço. O passado, já o não tenho.” Outros disseram: “um povo sem História é um povo sem futuro”. São devaneios literários com um fundo forte de verdade. Como podemos construir um sistema nacional sólido de Ciência e Tecnologia, sem análise, sem crítica, dos erros mas também dos acertos passados?

Olhemos então agora para os frutos do trabalho do Grupo apresentados à comunidade científica e ao país: AS RECOMENDAÇÕES.

8.AS RECOMENDAÇÕES

Há desde logo nas recomendações de que agora nos ocupamos dois aspectos a ter em consideração: o que lá está e o que lá não está. Entendemos que o segundo é claramente mais importante. E o que é que lá não está?

O que lá não está são propostas de medidas concretas (e realizáveis) para resolver ou atenuar as grandes perversões e os persistentes males de que sofre o nosso sistema nacional de Ciência e Tecnologia. Importa sublinhar que o mandato do Grupo era o de recomendar orientações para a FCT “no futuro próximo”. Dir-se-á que se se aceita que a resolução ou atenuação daquelas perversões e persistentes males, não está ao alcance da FCT ou não dependerá apenas das orientações que vier seguir na sua acção, já não parece aceitável que a mesma FCT não tenha papel activo nessa área. Tanto mais que é afirmada (pág. 4 do Relatório) “a centralidade da FCT no sistema nacional de C&T, realizando a missão que tem de coordenar a concretização das políticas públicas nacionais de C&T” (sublinhado nosso).

São descritas como assumindo prioridade especial (pág.4),no que toca a pessoas, “ultrapassar a precariedade contratual e promover o rejuvenescimento do corpo de investigadores; atrair e fixar talento, estancando a “fuga de cérebros” ”.

É bonito, sem dúvida, mas não é barato! Como se faz isto? No que toca a outra questão, também dita prioritária e que o é realmente ― a do financiamento ― diz-se: “Apoiar o aumento de financiamento e regularizar as transferências de fundos, com o objectivo de ultrapassar o excessivo sub financiamento actual por investigador em comparação com outros países da União Europeia e da OCDE”.É curiosa a utilização do adjectivo “excessivo” para caracterizar…o sub financiamento. Provavelmente não se quis ferir sensibilidades mais delicadas.

Efectivamente, a DIDE per capita de investigador ETI, é entre nós inferior a 1/3 do valor médio na União Europeia a 28 o que tem, entre outras consequências, a de “fechar” o acesso da actividade nacional de I&D a certas áreas de trabalho, designadamente, em áreas capital intensivas nos domínios das ciências exactas e naturais e das tecnologias. O Grupo recomenda a este respeito que a FCT apoie o aumento de financiamento. É uma bonita intenção. Acrescenta: “regularizar as transferências de fundos”. Entretanto a simples “regularização (d)as transferências de fundos”não basta para alterar aquele rácio. Importa estabelecer uma meta de aumento de financiamento e um período temporal para a atingir, no sentido da convergência com o valor médio europeu.

A insuficiência e a instabilidade dos financiamentos veicula dos através da FCT têm estado associadas a uma obsessiva, obstrutiva e errática metodologia de avaliação dos respectivos destinatários, mediante múltiplos painéis de avaliação, que seleccionam e propõem dotações unidade a unidade, projecto a projecto, candidato a candidato. Painéis cuja constituição parece dever-se mais ao arbítrio do Conselho Directivo da Fundação do que à intervenção, esperada e natural, dos Conselhos Científicos instituídos. Na linha do desinteresse e desleixo de sucessivos governos, a FCT não assume orientações políticas definidas que levem as unidades de investigação (e instituições de acolhimento) a assegurar o cumprimento de missões e a prosseguir linhas de trabalho consistentes, restringindo aos seus investigadores (dos mais responsáveis aos mais jovens)a possibilidade de prosseguir linhas de trabalho promissoras e construir futuros profissionais minimamente previsíveis. É toda uma problemática, voluntária ou deliberadamente ignorada, que não é objecto de uma análise consequente que possa abrir caminho à adopção de orientações tendentes a resolvê-la.

A política científica nacional corrente, pode-se, se se quiser, caracterizar como o atento seguimento do que lá fora se considera interessante e possa estar ao alcance dos nosso parcos meios, humanos, materiais e financeiros. Se assim se entender é abusivo falar em política científica nacional. Não se vê como a FCT pode desempenhar a missão, que lhe é aparentemente atribuída, de “coordenar a concretização das políticas públicas nacionais de C&T”. No que diz respeito à necessária definição e concretização de uma política científica pública nacional, há que fazer notar que um seu instrumento, para esse efeito privilegiado, ― os laboratórios do Estado, nas várias áreas de especialidade e com diversas tutelas ministeriais ― são, pode dizer-se, ignorados no Relatório. São nomeados por duas vezes (págs. 7 e 17) em ambos os casos dentro de parênteses, em que são referidos em conjunto como “instituições científicas (…) no sistema nacional de C&T”, a saber, “unidades de I&D, laboratórios associados e laboratórios do estado” (Estado, singularmente, com “e” minúsculo). Esta formulação é significativa pois implica o não reconhecimento da especificidade de funções própria dos laboratórios do Estado, designadamente, como instrumentos do poder político, para a elaboração e concretização de acções de serviço público, nos planos científico e técnico.

Ainda no que toca às “recomendações” apontadas como assumindo “prioridade especial”, importa referir que também aqui se reflecte aquilo que é uma ideia-chave constantemente destacada nos documentos e intervenções públicas de responsáveis políticos e altos dirigentes que comandam osdestinos do sistema nacional de Ciência e Tecnologia. Trata-se da referência, repetida à exaustão, da necessidade de “sustentar continuadamente a afirmação internacional da capacidade em C&T”. Volta a aparecer nas chamadas “Recomendações estratégicas”, assim: “Projecção internacional da capacidade nacional de C&T, abrindo acesso a novo conhecimento e a mercados, atraindo investimento estrangeiro em empresas com inovação de base científica e tecnológica, fomentando a internacionalização da criação e transferência de conhecimento, promovendo a coordenação nacional das acções da própria FCT e das instituições científicas e do ensino superior, reforçando a participação de Portugal nas organizações de I&D internacionais”.E nas “Recomendações operacionais”: “aumento da participação de investigadores e instituições portuguesas em projectos com financiamento externo, principalmente da UE, reforçando a presença e a negociação em Bruxelas”.

Confunde-se aqui “causa” e “efeito”. Na raiz da afirmação ou, se se preferir, da projecção, internacional, da capacidade nacional de Ciência e Tecnologia, tem que estar, necessariamente, um Sistema Científico e Técnico nacional forte, bem estruturado, com gestores competentes, e bem municiado em pessoas e meios, materiais e financeiros, tendo como primeiro e imediato objectivo contribuir para o desenvolvimento económico, social e cultural do país e que, naturalmente, colaborará e participará em acções e projectos estrangeiros ou internacionais. A “internacionalização”não deve ser um objectivo mas uma consequência da existência de um tal sistema nacional. Um sistema burocratizado, desestruturado e empobrecido, poderá “internacionalizar-se” pela exportação de cérebros mas não serve o país.

Duvida-se, de resto, que alguém acredite que em países desenvolvidos, seja a Alemanha, os Estados Unidos, a França ou a China, por exemplo, esta insistente preocupação com a “internacionalização” determine a orientação das políticas de Ciência e Tecnologia respectivas.

O nosso país carece absolutamente de criar riqueza. O Sistema Científico e Técnico nacional deve dar uma contribuição significativa para a criação de condições que levem ao aumento da taxa de criação de riqueza, Pode ter aí um papel importante se ultrapassar vícios e constrangimentos que existem, vêm de longe e se mantêm no interior do próprio sistema.

A questão da precariedade por exemplo com a proliferação de contratos a termo e trabalho sem direitos, que os responsáveis políticos sempre que vem a propósito se empenham em lamentar sem todavia dar qualquer passo realmente determinante para alterar a situação existente. Volta a ser o caso neste “Relatório” dos 38.

Como a OTC vem há muito defendendo, devem ser restabelecidas as categorias de entrada na Carreira de Investigação Científica, revertendo as alterações introduzidas pelo Ministro Mariano Gago que desfiguraram a Carreira.

Outra das distorções graves que afectam o Sistema Científico e Técnico Nacional é a extrema escassez de pessoal qualificado, a vários níveis, designadamente de pessoal técnico de apoio à investigação. Esta questão é completamente ignorada no Relatório tal como as necessidades de reequipamento dos laboratórios, unidades e centros de investigação ― equipamentos vetustos, instalações precárias. Dir-se-á que são questões estranhas aos termos de referência que foram definidos. Entretanto, pareceria dever merecer atenção quando se fala na “centralidade da FCT no sistema nacional de C&T” e se lhe aponta a missão de “(…)coordenar a concretização das políticas públicas nacionais de C&T, assente numa ampla base de investigadores e instituições, inclusiva, capaz de sustentar continuadamente a afirmação internacional da capacidade em C&T”, Como é isto possível sem um adequado povoamento das instituições com o pessoal técnico indispensável? Aliás, a situação agravar-se-ia ainda se se concretizasse o desiderato expresso de “promover o rejuvenescimento do corpo de investigadores”.

9.CONCLUSÃO

As actividades de Ciência e Tecnologia e o sistema nacional de C&T não são um enfeite para estrangeiro ver. Devem, sim, ser um instrumento de promoção da qualidade de vida das portuguesas e dos portugueses. Não devem depender da visão de uma elite restrita, com um futuro profissional e laboral estabilizado, que pode até encarar com inconfessado agrado a manutenção de um exército de trabalhadores precários, disponíveis, descartáveis e involuntariamente submissos, mas que do mesmo passo ameaça a sua própria sobrevivência.

O reconhecimento e a valorização pela sociedade das actividades científicas, dos investigadores e do seu impacte na vida nacional, não são compatíveis com situações de precariedade generalizada. Não se consolidam áreas estratégicas sem continuidade temporal de equipas, com grupos fortes e estáveis.

A Direcção

Lisboa, 9 de Maio de 2016

 

Observação: A OTC não adopta o Acordo Ortográfico de 1990; nas passagens citadas, a ortografia foi alterada de acordo com esta posição.



[4]  Vide nota 3

[6]   Resolução do Conselho de Ministros nº 198/2005, de 24 de Novembro

[7] A Universidade de Lisboa está representada por 12 elementos (4 do Instituto Superior Técnico); a Universidade Nova de Lisboa por um único. As escolas “periféricas” aparecem com um elemento, à excepção do Minho que conta com dois e a Beira Interior com nenhum. As escolas sediadas na Grande Lisboa, Porto e Coimbra, contribuem, no conjunto, com 30 dos 38 elementos.

[9]    Relatores: Luís Magalhães (coordenador), Salwa Castelo Branco, João Crespo e Nuno Sousa. Dois dos relatores exerceram cargos directivos na FCT, em anteriores Governos Constitucionais

[10]    Segundo os dados estatísticos mais recentes o número de investigadores (pessoas) no sector não empresarial ascendia a 57 669 dos quais 27 633 possuíam o grau de doutor (ICTN-1993).