96º Conselho Executivo da Federação Mundial dos Trabalhadores Científicos
Pequim-Huzhou, 12-17 de Agosto de 2024
Exposição introdutória (parte 1)*
Jean-Paul Lainé
Membros das autoridades políticas e académicas
Caros colegas
Caros convidados
Senhoras e Senhores
Preâmbulo
Em nome da Federação Mundial dos Trabalhadores Científicos, quero agradecer às autoridades políticas e académicas que nos deram a honra de acolher este 96º Conselho Executivo, bem como as nossas outras actividades desta semana, em particular o Simpósio que se realizará na quarta-feira nestas mesmas instalações, um simpósio aberto ao público e intitulado “Cooperação científica, motor do desenvolvimento verde e de baixo carbono”.[1]
Gostaria de esclarecer desde já que, na sequência das decisões tomadas na Assembleia Geral de Marraquexe, em 2022, a presidência é bicéfala: esta exposição, faço-a em nome de Elies Molins, professor e Director de Investigação no CSIC, de Espanha, e em meu próprio nome, professor catedrático e investigador num laboratório associado ao CNRS, de França. Apoia-se nos Secretariados mensais e no Gabinete, responsável pelo acompanhamento das decisões e a preparação das reuniões.
Em Marraquexe, foi também decidido que se realizariam dois Conselhos Executivos por ano, um presencial (híbrido, na verdade) e outro, exclusivamente por videoconferência. Voltaremos a este desenvolvimento exigente, propício ao trabalho em equipa, mas que consome muito tempo. A organização deste encontro na China beneficiou de um gabinete reforçado, mas insuficiente.
Aproveitamos falar da organização para agradecer aos nossos amigos da CAST, a nossa organização anfitriã, que, concretamente, organizou esta semana de trabalho em estreita colaboração com o nosso gabinete. Há vários meses que realizamos videoconferências. Queremos sublinhar o vosso empenhamento em meios humanos, tal como queremos agradecer o vosso esforço financeiro, que permitiu fazer vingar a democracia ao cobrir custos de alojamento e de deslocação e assim facilitar a vinda de alguns participantes.
Congratulamo-nos com o facto de mais de metade dos membros do Conselho Executivo (CE) se ter inscrito apesar dos constrangimentos de tempo e dinheiro, e apesar do contexto, e queremos agradecer a todos os convidados presentes, seja a título individual seja em representação de organizações amigas: no total, inscreveram-se mais de 50 pessoas representando cerca de 30 organizações, de 15 países e 4 continentes. Numa altura em que as nossas organizações filiadas têm a sua própria agenda, estão preocupadas com a defesa individual e colectiva dos colegas, com o reconhecimento das nossas missões mais necessárias do que nunca, este encontro é para nós um encorajamento.
Partes desta apresentação são redundantes para muitos dos participantes, para aqueles que são membros do CE ou que o foram num mandato anterior, mas acreditamos que esta sessão inaugural, aberta ao público, aos colegas, aos trabalhadores científicos daqui, aos estudantes, a vós que sois convidados ou novos delegados, é também uma oportunidade para nos darmos a conhecer.
Breve apresentação da FMTC
A Federação Mundial dos Trabalhadores Científicos (FMTC) é uma organização internacional não governamental parceira oficial da UNESCO. Foi fundada em 1946 por iniciativa de cientistas de renome no domínio das ciências físicas e de um sindicato britânico, a British Association of Scientific Workers. A existência da FMTC foi e continua a ser, acima de tudo, um apelo a toda a comunidade científica para que se empenhe em colocar a ciência e a tecnologia ao serviço da paz e do bem-estar da humanidade, um apelo a não mais reviver as tragédias das guerras mundiais, tanto mais que, “graças” à ciência e à tecnologia, novas armas com capacidades destrutivas sem precedentes podem ser utilizadas, o que acabou por acontecer em Hiroshima e Nagasaki.
Duas preocupações principais convergiram, assim, a favor da criação da FMTC, em 1946: a paz e o bem-estar de todos num espírito de justiça.
A FMTC é, de facto, uma rede de associações profissionais, ONG´s e sindicatos e já não é uma federação, terminologia utilizada aquando da sua criação e que era mais verdadeira na altura. É uma rede, na medida em que, por um lado, as decisões não são vinculativas e resultam de um consenso e, por outro lado, porque actuamos como um fórum. Reúne no seio das suas estruturas filiadas trabalhadores da investigação pública e privada. Acolhe também personalidades a nível individual. A sua actividade principal – para além da actividade na UNESCO – reside na actividade de grupos de trabalho ad hoc ou permanentes, cujas áreas de intervenção incluem a paz, o desarmamento e a cooperação, o desenvolvimento sustentável, o clima e a energia, as condições da investigação e dos investigadores e investigadoras, as condições das trabalhadoras e dos trabalhadores científicos, sendo que o termo “trabalhadores científicos” engloba todas as profissões da investigação e do ensino superior, desde o técnico ao director de laboratório.
Gostaria de voltar à ideia fundadora de oposição à utilização para fins militares dos avanços do conhecimento: uma das primeiras acções da FMTC foi participar e encorajar os seus filiados a subscrever o “Apelo de Estocolmo”, lançado em 1950 e assinado por milhões de pessoas em todo o mundo, o que certamente impediu Truman, então Presidente dos Estados Unidos, de recorrer à arma nuclear durante a guerra da Coreia.
Devo salientar que quando falamos de Ciência, nos referimos a todo o conhecimento fundamental e aplicado, tanto das ciências humanas e sociais como das ciências da natureza e das matemáticas. Uma constante nestes 3/4 de século de história é a manutenção do diálogo e da cooperação entre cientistas de países com culturas, histórias e regimes políticos diferentes. Este rumo foi mantido no tempo da Guerra Fria e deve continuar a sê-lo hoje, numa altura em que muitos líderes políticos, económicos e mediáticos procuram dividir, identificar adversários e aplicar sanções. Verificamos ter entrado num mundo multipolar; não nos situamos num qualquer campo, mas isso não nos impede de nos exprimirmos e de trabalharmos com todos os que têm boa vontade, a nível bilateral, multilateral, na UNESCO ou em outro lugar. Por exemplo, estamos chocados com a licença para ignorar as resoluções da ONU, a licença para matar, para massacrar dezenas de milhares de civis, para continuar a colonização, concedida pelas potências ocidentais ao governo de Israel.
Os eixos prioritários – a actividade
Ano após ano, apontamos o rol das ameaças que pesam sobre a humanidade, que são outros tantos desafios que esta enfrenta melhor ou pior e que vêm sublinhar a importância crescente da relação Ciência-Sociedade no nosso tempo e por isso mesmo nos interpelam.
Na minha exposição introdutória do ano passado, destaquei os seguintes grandes desafios: o recurso crescente à guerra, o desafio ambiental, nomeadamente o aquecimento global, o esgotamento dos recursos e o declínio da biodiversidade, os riscos para a saúde, o aprofundamento das desigualdades, o desenvolvimento do retraimento identitário, da xenofobia, da intolerância e da irracionalidade, a questão dos refugiados, das migrações, assim como todo um conjunto de questões que dizem respeitam à chamada revolução digital.
Em quase todos os aspectos, a situação está a tornar-se dramática, se não mesmo incontrolável. Já não estamos então a falar de ameaças, mas de situações dramáticas; e tanto mais dramáticas quanto certas situações são causa ou consequência de outras.
As ideologias, as crenças e o comportamento político dos povos e dos seus dirigentes, tanto como os saberes, as ciências e as técnicas, são questões particularmente exemplares desta dialéctica. A ambivalência intrínseca e a ambiguidade mantida, provocam estragos, em particular no cérebro das pessoas para quem a principal preocupação é o comer à noite ou o final do mês, mas também naqueles que têm medo, medo de ver os seus filhos em piores situações, medo de serem marginalizados.
Como fazer para que a preocupação ambiental, percepcionada como mais “distante”, seja compatível com a questão social, como tornar inteligíveis as questões macroeconómicas e geopolíticas. Está fora de alcance, está fora de questão, termos grupos de trabalho sobre cada um destes temas, mas é útil, pelo menos, estarmos atentos a eles.
Em 2023-2024, mantivemos o esquema iniciado em Moscovo em 2013, enriquecido em Dakar em 2017 e, depois. em Marraquexe, em 2022. Trata-se de trabalhar em grupo sobre os temas que caracterizam verdadeiramente o nosso ADN: 1) a paz, o desarmamento e a cooperação internacional; 2) o clima, a energia e o desenvolvimento sustentável; 3) as condições da investigação e a condição dos investigadores, nomeadamente, das mulheres, dos jovens e dos precários. Esta tarde, dedicada ao trabalho em comissão, os três grupos de trabalho irão reunir-se. Mas não esqueçamos outros grupos que se lhes juntaram: o apelo à criação de um fundo específico para a investigação em África; as mulheres e a ciência; os jovens investigadores; as regras de funcionamento interno; a política de comunicação, a FMTC e as redes sociais; e a ambição constante de expandir e desenvolver quantitativa e qualitativamente a nossa Federação. Sem esperar pelas sessões do CE propriamente ditas, poderíamos acrescentar esta tarde uma comissão dedicada à FMTC como instrumento ou ferramenta de trabalho.
Recordo algumas ideias-força apresentadas.
O armamento: os orçamentos disparam, as armas são cada vez mais sofisticadas, de sofisticação técnica e eficácia crescentes; em 2003, foram várias centenas de milhar os iraquianos vítima da intervenção americana e, em 2022-23, a intervenção russa deverá atingir os mesmos números, com a ameaça acrescida do recurso à arma ou às armas nucleares.
O recurso à guerra voltou a ser opção. A aliança militar da NATO é ressuscitada. A ONU, tal como o direito internacional (respeito das fronteiras e dos direitos humanos), são desdenhados. Não basta contentar-nos com lamentações. Há que analisar as causas. Arrisco uma pista.
Em todas estas guerras, há luto e sofrimento, mas há também efeitos “positivos” para alguns, em particular para os complexos militares-industriais, neste caso, no caso da guerra na Ucrânia, os dos EUA, da Europa Ocidental e da Rússia.
A humanidade está a descobrir que as catástrofes estão a passar do futuro para o presente. Muitos dirigentes contentam-se com pequenas medidas e mesmo alguns, motivados sobretudo pelo sucesso eleitoral, juntam-se ao movimento do cepticismo climático. Nos últimos dois anos, concentrámo-nos nos oceanos e criámos um grupo de peritos internacionais que lidera um grupo de trabalho com cientistas a que chamo “generalistas”, ou seja, como nós, colegas do nosso Grupo de Trabalho 2. Esta abordagem está de acordo com a nossa ambição de actuar como elo de ligação entre a ciência e a sociedade e de ser uma força influenciadora.
Estamos a assistir a surtos de “degradação política e moral”. Por degradação política e moral, entendemos o desenvolvimento de atitudes de fechamento, egoísmo, intolerância e irracionalidade. Isto obriga-nos a enfrentar duas tentações diametralmente opostas mas igualmente nocivas: por um lado, a tentação da anti-ciência, o sucesso das fake news e do “irracional” e, por outro, o excesso oposto, o cientismo, a crença ingénua em soluções técnicas, “encontraremos, a seu tempo, os meios para absorver os gases com efeito de estufa, os materiais e as fontes de energia indispensáveis”.
Estou a levantar aqui a grande questão da educação em ciência e da Educação, em geral, no sentido de “saber ser” e não apenas no sentido de “saber” e de “saber fazer”. Temos de ter sempre presente a ambivalência da ciência que é produzida pelos homens e, portanto, como eles, navega entre o “bem-fazer” e o “malfazer”.
Esta é uma das entradas possíveis para a noção, a exigência de promoção da Ciência Aberta, bem como para a análise das convulsões ligadas à globalização digital. Fomos um dos principais contribuintes para a elaboração da Recomendação adoptada pela UNESCO sobre este assunto. Estamos, evidentemente, a prosseguir a nossa parceria neste domínio; voltarei ao assunto dentro de momentos.
O desafio ambiental não pode ser enfrentado se as medidas tomadas forem ou parecerem focadas nos mais pequenos e nos mais fracos, em cada país e no conjunto do planeta.
Esta “ecologia punitiva” é inaceitável! Ela é vivida como uma injustiça quando as disparidades de rendimentos se acentuam e quando a maioria das políticas actuais consiste em criar novos mercados para gerar lucros muito elevados a taxas de dois dígitos.
Hoje, mais do que nunca, as relações entre nações e entre comunidades baseiam-se na lógica do confronto para ganhar quotas de mercado o que vai em sentido oposto aos desafios que enfrentamos e ao que eles exigem para ser ultrapassados: a necessidade de desenvolvimento de uma cooperação assente nos “bens-comuns”[2].
Devemos relançar o apelo à criação de um fundo específico para a investigação em África. A curiosidade, dizem-nos, era a maior qualidade do “homo sapiens”; em todo o caso, esta criatura conseguiu, sobretudo ao longo dos últimos séculos, fazer da descoberta do seu ambiente, desde o imediatamente próximo até aos confins do universo, desde o infinitamente pequeno até ao infinitamente grande, uma verdadeira epopeia que reúne homens e mulheres de todas as culturas e civilizações. Mas com enormes desigualdades, tanto na fase de criação como na partilha dos resultados.
Aqui interrompo os meus exemplos de temas para actividades e debates, que justamente por se tratar de exemplos, me pareceram úteis! Temos toda a tarde para “aprofundar” e “identificar” prioridades e projectos.
E por fim será altura de abordar os últimos capítulos: o que se passa com a FMTC e com a “ferramenta-FMTC”? Responder a estas perguntas para responder sobretudo a “para que servimos”? Quais são as expectativas das nossas organizações-membro, e, reciprocamente, as nossas?
Antes de passar a palavra a Elies Molins, que olhará mais para o futuro, gostaria de referir brevemente dois sectores que se baseiam em dois grupos a que chamamos sectores porque são não-temáticos e requerem uma atenção constante: a actividade na UNESCO e a comunicação. Estes sectores reúnem-se regularmente e marcam pontos nos nossos Jogos Olímpicos particulares. Com a UNESCO, prosseguimos os trabalhos desenvolvidos por ocasião da elaboração das recomendações sobre a Ciência (autonomia e liberdade dos investigadores, precariedade do emprego), com a divisão de Ciências Humanas, e, sobre a Ciência Aberta, com a divisão de Ciências Duras. Além disso, estão a tomar forma dois projectos sobre a inteligência artificial e sobre a análise crítica das publicações do GIEC e da relação entre ciência e política, com base nos trabalhos do nosso colega Marc Delepouve.
No domínio da Ciência Aberta, a parceria FMTC-UNESCO está a conduzir a resultados concretos. Com efeito, o trabalho de organização do Fórum projectado sobre a situação no mundo árabe foi concluído. O Fórum terá lugar em 28 e 29 de Novembro na Universidade de Rabat. É de salientar o bom entendimento com os responsáveis da UNESCO, tanto em Marrocos como em Paris.
A Comunicação foi organizada e desenvolveu-se consideravelmente graças ao investimento de vários colegas. Listas de correio actualizadas, armazenamento em nuvem, um site Web actualizado: estes são progressos muito bem-vindos.
Gostaria de passar a palavra ao meu homologo Elies Molins e, em seguida, aos porta-vozes dos departamentos e dos grupos de trabalho. O nosso tesoureiro, Pascal Janots, encerrará esta sequência de relatórios das nossas várias estruturas: Conselho Executivo, Secretariado Internacional, Grupos de Trabalho e Sectores, e o Gabinete.
Desejo a todos bons debates e bom trabalho nos próximos seis dias.
Pequim, 12 de Agosto de 2024
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* A exposição obedeceu ao plano seguinte:
– Preâmbulo —Jean-Paul Lainé
– Breve apresentação da FMTC — Jean-Paul Lainé
– Eixos prioritários e actividade — Jean-Paul Lainé
– O Mundo, hoje: ameaças existenciais — Elies Molins
– O futuro da FMTC, o roteiro — Elies Molins
(A intervenção de Elies Molins pode ser lida aqui: https://otc.pt/wp/2025/01/02/elies-molins-sobre-a-federacao-mundial-dos-trabalhadores-cientificos/)
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Este artigo encontra-se disponível na página institucional da FMTC na sua versão original em francês: https://fmts-wfsw.org/2024/12/expose-introductif-jean-paul-laine-pekin-2024/
Tradução do francês: Elisabete Nunes
Revisão: Frederico Carvalho
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N.B. As notas abaixo são da responsabilidade da OTC
[1] Na realidade. o Simpósio, organizado numa parceria da FMTC com a associação anfitriã CAST-China Association for Science and Technology, teve lugar a 15 de Agosto na cidade de Huzhou, província de Zheijiang, a cerca de 1200 km a sueste de Pequim.
[2] “De acordo com um entendimento que supera a mera definição técnica, os bens comuns (commons) são os que se revelam indispensáveis para a garantia da vida de todos – a água, as sementes, o ar – e os serviços públicos necessários a que essa vida seja digna. Nas sociedades pré-capitalistas, os bens comuns tinham uma importância económica e social clara. A não apropriação privada da terra ou da água repercutia-se numa concepção não individualista da pastorícia, da agricultura ou da pesca. A sacralização capitalista da propriedade privada como matriz de organização da relação entre as pessoas e as coisas, e a transformação de todas as coisas em mercadorias potenciais, acarretou uma quase extinção da realidade dos bens comuns em favor da sua apropriação privada. Ora, a essa histórica orientação privatizadora, o neoliberalismo contemporâneo acrescentou uma voragem inédita e instalou-a no campo dos bens e dos serviços essenciais à vida digna de todos, desde a água às florestas, à educação ou à saúde”.
(https://www.ces.uc.pt/observatorios/crisalt/index.php?id=6522&id_lingua=1&pag=7665)