Investigação: sobre uma revisão do ECIC

Parecer sobre a Proposta de Lei que actualiza o Estatuto da Carreira de Investigação Científica apresentada pelo Ministério da Educação, Ciência e Inovação em 18.06.2024

A presente Proposta de Lei relativamente à qual é solicitado o parecer desta Organização[i] tem por base a Proposta de Lei 305/XXIII/2023 do XXII Governo Constitucional, aprovada em Reunião do Conselho de Ministros de 25 de Março de 2024 e não se afasta dela quer na letra quer no espírito.

Em nossa opinião, as duas questões fulcrais que se colocam, ao analisar a situação do Sistema Nacional de Ciência e Tecnologia, são a da precariedade laboral que afecta a grande maioria do pessoal investigador e a persistente condição de subfinanciamento do sistema. Dir-se-á que esta última não mostra uma relação directa imediata com a estrutura e disposições específicas que enformam o Estatuto da Carreira de Investigação Científica; já o mesmo não acontece com a questão da precariedade estrutural a que o Sistema vem sendo condenado.

Entendemos que o Estatuto aprovado pelo Decreto-Lei n.o 124/99, de 20 de Abril, posteriormente alterado por apreciação parlamentar — Lei no. 157/99, de 14 de Setembro, em vigor — ao alterar a estrutura da Carreira, abriu a porta, a partir da primeira década deste século, ao desmesurado crescimento das situações de precariedade laboral com a normalização do regime de bolsas, fonte provisória e incerta de rendimento do investigador, marcando com um forte selo de instabilidade os seus percursos de vida profissional e familiar.

Hoje, estima-se que cerca de 75% do total dos efectivos de pessoal investigador se encontra em situação de precariedade laboral. Uma tal situação condiciona fortemente a capacidade do potencial científico e tecnológico nacional para contribuir para satisfazer as necessidades económicas, sociais e culturais do País.

Em nosso entender, a Proposta de Lei em apreço, os seus termos e as medidas propostas, em nada contribuirão para alterar a situação descrita vivida no universo que observamos. Algumas constituem um retrocesso a par de outras de alcance indefinido ou de difícil concretização.

A insistência em considerar um investigador não-doutorado como “estudante” é um erro.

Investigadores, doutorados e não doutorados, são trabalhadores da ciência que devem beneficiar, como outros trabalhadores, do regime estabelecido na Legislação Geral do Trabalho ou do Trabalho em Funções Públicas, nos casos em que o empregador é público.

A CARREIRA DE CINCO CATEGORIAS
Defendemos uma estrutura de Carreira da Investigação Científica com cinco categorias, tal como definida no Decreto-Lei 219/92 de 15 de Outubro (XII Governo Constitucional)[ii]. As duas primeiras categorias, dadas como integrando a Carreira de Investigação Científica — Estagiário de Investigação e Assistente de Investigação —eram definidas como categorias de formação (fase de formação da carreira), nas quais a permanência era limitada temporalmente, conferindo ao período correspondente carácter probatório, com esquemas de avaliação institucionalizados (acompanhamento e provas).

Tudo era assim diferente no que respeita a segurança social e de rendimentos, e de previsibilidade de futuro, atenta a qualidade do desempenho profissional.

Importa referir que, nos termos do Decreto-Lei 219/92, (citamos):

Os estagiários de investigação são recrutados por concurso documental, complementado por entrevista ao candidato, de entre licenciados ou diplomados com curso superior equivalente que satisfaçam os demais requisitos constantes do respectivo aviso, a publicar no Diário da República.”

O CASO DOS LABORATÓRIOS DO ESTADO
Nos laboratórios do Estado, onde hoje se encontra a maioria dos investigadores de carreira, a situação não é boa e em alguns casos claramente má, em particular no que toca a recursos humanos. A carreira de cinco categorias tornaria normal um modo de acesso à profissionalização na carreira com importantes vantagens nas circunstâncias do nosso sistema científico e técnico, pois permite às instituições de investigação recrutar jovens licenciados e formá-los no seu seio, moldando-os às exigências específicas do trabalho que cada instituição deve desenvolver para cumprir as missões que lhe foram atribuídas.

As missões e a natureza das actividades dos laboratórios e outras instituições públicas de investigação fora do âmbito do ensino superior, têm aspectos específicos que variam de instituição para instituição, e distinguem-se, no geral, claramente do caso universitário no que respeita à missão e actividades, designadamente, nas condições e exigências da prestação de serviços ao mundo exterior e da própria natureza e conteúdo da investigação que lhe deve dar suporte.

No actual regime, que a Proposta de Lei em apreço mantem, as instituições de investigação não universitárias deverão recorrer para o recrutamento do seu pessoal científico a um “pool” de doutores, na sua vasta maioria formados e confirmados no seio da Universidade. Os laboratórios, todavia, sentem de algum modo o mesmo que sentem as empresas que se interessam pouco por recrutar doutores porque devem desde logo pagar-lhes melhor, mas não reconhecem necessariamente uma real mais-valia dos candidatos doutores, na formação que esse grau académico lhes proporcionou. Preferem então recrutar licenciados sem outros graus académicos e ensinar-lhes na empresa o que eles devem saber para ser produtivos.

INVESTIGAÇÃO E DOCÊNCIA
O ECIC ainda em vigor (D.-L. 124/99) prevê, no que toca ao regime de prestação de serviço, que o pessoal investigador em regime de dedicação exclusiva — situação que, quanto a nós, deve ser privilegiada — possa prestar serviço docente em estabelecimento de ensino superior (e por tal ser remunerado) mediante certas condições, a saber: ”que daí não decorra prejuízo para o exercício de funções durante o período normal de serviço e que o serviço não exceda, em média anual, um total de quatro horas semanais de actividade lectiva”.

Também, neste particular, a formulação constante do Proposta em apreço, não merece a nossa concordância.

Não significa isto que desvalorizemos ou, ainda menos, consideremos prejudicial, uma interacção regular do investigador com colegas discentes, alguns possivelmente mesmo futuros investigadores. Consideramos, sim, que uma actividade docente do investigador, preferencialmente informal e em contexto laboratorial, é importante e necessário estímulo para qualquer das partes. Opomo-nos, todavia, a que se trate de uma obrigação imposta contra a vontade expressa do investigador, logo a uma subordinação deste a abusos de poder que podem manifestar-se nos locais de trabalho.

O CASO DAS CHAMADAS INSTITUIÇÕES PRIVADAS SEM FINS LUCRATIVOS (IPs/FL)
As IPs/FL, no essencial, surgem formalmente e tornam-se nos últimos 20 anos instrumento de primeira importância no panorama do Sistema Nacional de Ciência e Tecnologia. Poderá dizer-se que as condições se tornaram favoráveis a esse surgimento e evolução, sobretudo, a partir do que poderíamos designar por “reforma Mariano Gago” que se vai acompanhar de uma explosão dos chamados “bolseiros de investigação”. Estes fenómenos têm muito a ver com a situação de crónico subfinanciamento das IES e os condicionamentos à realização de despesas decorrentes da obrigatoriedade de respeitar as regras da contabilidade pública, e à própria execução orçamental.

Entretanto esta nova configuração da unidade de investigação, é favorável à ocorrência de situações de abuso de poder e de subordinação hierárquica susceptíveis de degradar ambientes de trabalho bem como de normalizar regras, directa e indirectamente, impeditivas da desejável participação dos interessados na gestão democrática das instituições. Convém referir que estas considerações são em boa medida extensivas às universidades que optaram pelo chamado regime fundacional ao abrigo das disposições do chamado RJIES (actualmente, julga-se, em processo de revisão).

O ANEXO II
Entendemos que a Proposta de Lei em apreço é uma construção híbrida que pretende regulamentar não uma, mas (pelo menos) duas Carreiras de Investigação Científica. A segunda, a que respeita o Anexo II, poderá descrever-se como uma tentativa inovadora sui generis de regulamentar “o estatuto das carreiras próprias de investigação científica em regime de direito privado”, adiantando-se que as disposições são de aplicação facultativa (“salvo quando imposto pelo projeto público financiador”) e se aplicam “aos investigadores contratados na modalidade de contrato de trabalho sem termo”. Acrescenta-se que “a contratação de investigadores na modalidade de contrato de trabalho a termo certo ou incerto (seria) realizada nos termos do Decreto-Lei n.º 57/2016, de 29 de agosto, na redação atual, ou nos termos do presente estatuto”.

Pode depreender-se, por exemplo, entre outras dúvidas suscitadas, que uma empresa pública que desenvolva normalmente actividades de I&DE e, um dia, receba fundos do Estado para um projecto, logo irá colocar os seus investigadores na Carreira de Investigação Científica tal como regulamentada no Anexo II a que nos reportamos. Concluído o projecto (ou despendidos os fundos) voltaria ao seu normal.

Este Anexo II não parece ter futuro. O que reputaríamos necessário seria algo de natureza completamente diferente, mas de conteúdo inaceitável pelos paladinos do neoliberalismo hoje dominante.

Assim, as carreiras dos investigadores das Instituições Privadas Sem Fins Lucrativos (IPSFL) detidas e/ou participadas pelas IES públicas, deveriam ser regidas pelo ECIC e os investigadores passariam a constar dos mapas de pessoal da IES correspondente, tal como acontece no caso das respectivas instituições (incluindo Laboratórios do Estado) com os investigadores de carreira que, estes, não representarão hoje mais do que cerca de 4 a 5% do número total de investigadores activos no Sistema. A despesa incorrida seria suportada pelo Orçamento de Estado (Receitas de Impostos). O mesmo aconteceria com Despesas correntes e de capital. Recorrendo neste caso também, como habitual, a Fundos europeus e Receitas próprias.

CONCLUSÃO
Em nosso entender, a Proposta de Lei que actualiza o Estatuto da Carreira de Investigação Científica apresentada pelo Ministério da Educação, Ciência e Inovação em 18.06.2024, não dá quaisquer garantias de contribuir de algum modo significativo para a resolução da chaga da precariedade laboral que atinge a vasta maioria dos investigadores activos na componente pública ou pseudoprivada do Sistema Nacional de Ciência e Tecnologia, situação que se afigura ser, a par do crónico subfinanciamento das instituições públicas de ensino superior e de investigação, um dos obstáculos maiores ao desenvolvimento saudável do Sistema no plano das condições de vida e trabalho dos seus agentes e, naturalmente, da sua produtividade.

A Direcção
5 de Agosto de 2024

[i] O Parecer foi solicitado pela Secretária de Estado da Ciência por email de 29 de Julho. A Proposta de Lai em apreço pode ser lida aqui.
[ii] XII Governo Constitucional (31/10/1991 a 31/19/1995) — Aníbal Cavaco Silva, Luís Valente de Oliveira, Manuel Fernandes Thomaz.