ENERGIA ACESSÍVEL E LIMPA

 


OBJECTIVO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL Nº7 DA ONU
“ENERGIA ACESSÍVEL E LIMPA”
O PAPEL DA ELECTRICIDADE NUCLEAR
Frederico Carvalho

Até hoje, as centrais nucleares civis são utilizadas principalmente para a geração de electricidade. Em todo o mundo, até 1 de Janeiro de 2023, estavam operacionais 411 reactores com uma potência eléctrica líquida de 371 GW(e)[1]. Em 2021, a electricidade gerada em centrais nucleares ascendeu a cerca de 2800 TWh ou 10% do total da produção mundial de electricidade nesse ano, indicando assim um factor de disponibilidade de cerca de 85% [2]. Na mesma data, estavam em construção 58 reactores de potência com uma potência eléctrica líquida total de 600 GW. Desses 58, 20 estavam em construção na República Popular da China (RPC), incluindo 2 reactores reprodutores rápidos (“fast breeder”) e 8 na Índia (um reactor reprodutor rápido). O tempo médio de construção dos reactores que entraram em funcionamento após 2000 foi de 5 a 7 anos [3].

Há vinte anos, a produção de electricidade nuclear representava 17% do total mundial. Desde então, o consumo global de electricidade aumentou quase 2 vezes, de 14 kTWh para 27 kTWh. Assim, a fracção do total fornecido pelas centrais nucleares reduziu-se  por um factor de quase 2. No mesmo período, a contribuição da energia eólica e solar fotovoltaica passou de quase zero para cerca de 10%, enquanto a hídrica permaneceu praticamente inalterada em cerca de 17 %. do total. O mesmo aconteceu com as “fontes sujas”, nomeadamente o carvão e o petróleo, que se mantiveram em 2/3 da produção total de electricidade mundial ou cerca de 65% [4]. Assim, o que os números significam, é que a produção de electricidade a partir de fontes sujas quase duplicou no espaço de 20 anos.

Tendo referido atrás os dois países mais populosos do mundo – Índia e China – é relevante considerar a grande diferença entre os dois quando se olha para o consumo de electricidade per capita (CE) e a forma como este evoluiu no período de tempo em consideração. Os números são os seguintes: o valor do CE per capita na Índia e na RPC eram em 2000, respectivamente, 0,4MWh e 1MWh; em 2021, os números eram 1MWh na Índia e 5,9 MWh na China [5]. Este último valor é igual ao valor do CE per capita tomado para o conjunto da Europa.

No continente africano — que albergará um quinto da população mundial até 2030 — o CE per capita quase não se alterou nas últimas duas décadas, passando de 0,5 para 0,6 MWh entre 2000 e 2021. De um total de cerca de 800 milhões de pessoas que não têm acesso à electricidade no mundo, 600 milhões vivem em África [6].

Temos assim perante nós o problema de como fornecer energia limpa e acessível e, especificamente, electricidade, a todos. A preocupação com este objectivo não tem a ver apenas com justiça social e combate às desigualdades: pode ser, efectivamente, o reconhecimento da necessidade de garantir um futuro viável para a humanidade.

Não surpreenderá ninguém o facto de as necessidades de consumo de electricidade das sociedades desenvolvidas e tecnologicamente mais avançadas, estarem a aumentar constantemente. Um caso que merece atenção é o das crescentes exigências dos centros de dados (“data centres”) associados ao rápido desenvolvimento das aplicações da Inteligência Artificial (IA). Num artigo recente do New York Times, o autor salienta que “com mais centros de dados a entrar online quase todas as semanas, as projecções sobre a energia que será necessária para alimentar a explosão da IA estão a aumentar rapidamente”. Acrescentando que “um estudo, com revisão por pares, sugeriu que a IA poderá representar 0,5% do consumo mundial de electricidade até 2027, ou, aproximadamente, o que a Argentina utiliza num ano. Os analistas do Wells Fargo sugeriram que a procura de electricidade nos EUA poderá aumentar 20% até 2030, impulsionada em parte pela IA[7].

Uma mudança de “humor”

Durante a maior parte das últimas três décadas, a cisão nuclear, como fonte promissora de energia, foi geralmente mal considerada e não gozou do favor da opinião pública. Por uma série de razões, não foi também favorecida pelos decisores económicos e políticos dos países ocidentais mais desenvolvidos. Na década de 90 do século passado, devido ao persistente trabalho de investigação realizado no seio da comunidade científica internacional, a questão das alterações climáticas ganha destaque nas preocupações dos decisores políticos e reflecte-se na opinião pública. A chamada Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas (COP) reúne-se anualmente a partir de 1995 com um enfoque quase exclusivo nas energias renováveis ​​variáveis, como a solar e a eólica, como solução para o aquecimento global. O facto é, contudo, que nos últimos 30 anos a percentagem de combustíveis fósseis no fornecimento global de energia permaneceu praticamente inalterada em cerca de 80 por cento. Entretanto, como sublinhou recentemente Jeffrey Donovan, do Departamento de Energia Nuclear da AIEA, “a única fonte de energia, além da energia hídrica, que demonstrou capacidade para descarbonizar o fornecimento de electricidade a uma escala nacional tem sido, em grande parte, tabu, na reunião global sobre o clima[8]. Donovan referia-se à energia nuclear.

Há notícia de que na reunião da COP 28 no Dubai, em Dezembro de 2023, representantes de 25 Estados participantes terão chegado a acordo sobre a necessidade de triplicar até 2050 a capacidade nuclear instalada, considerando que a revitalização da componente energética nuclear será fundamental para atingir o objectivo de redução das emissões de carbono para perto de zero nas próximas décadas [9].

Entretanto, uma análise da forma como têm sido levados à prática compromissos assumidos no decurso das reuniões anteriores da COP, deverá levar-nos a ser cautelosos na avaliação do futuro deste último. Interessa notar que nem a Federação Russa, herdeira da URSS – pioneira mundial na engenharia nuclear – nem a RPC, onde estão em construção 20 novos reactores de potência, aderiram à declaração[10]. No entanto, é um facto que todos, excepto quatro, dos 31 reactores que começaram a ser construídos depois de 2017 foram projectados pela Rússia ou pela China, esta preparando-se para se tornar o principal produtor de energia nuclear até 2030[11].

Um grande obstáculo a ultrapassar no caminho para um “renascimento” nuclear significativo é o da dimensão do investimento necessário. Este não será provavelmente possível sem mudanças radicais na ordem mundial vigente – um mundo onde a paz prevaleça e uma cooperação internacional sem constrangimentos se torne a regra. Vamos dar corpo a esta ideia recorrendo a alguns números. Os 2,4 milhões de milhões de despesas militares mundiais em 2023 seriam, numa estimativa aproximada, o equivalente ao custo de colocar em funcionamento 240 novos reactores nucleares com una potência unitária de 1000 MW [12]. Após uma estagnação de quase três décadas no investimento em novas centrais eléctricas nucleares, há outras questões que merecem consideração. Nomeadamente a da formação de uma mão-de-obra qualificada e diversificada em grande número, bem como a necessidade de alcançar uma estandardização e regulamentação mais eficazes da indústria.

Não nos deteremos na questão dos chamados Pequenos Reactores Modulares (SMR) que, segundo a AIEA, “poderiam dar um contributo fundamental para alcançar os objectivos climáticos e a segurança do abastecimento energético” se for possível enfrentar o desafio da sua implantação a tempo de enfrentar o desafio das alterações climáticas. Mais uma vez, de acordo com a Agência, mais de 80 projectos diferentes estão actualmente em desenvolvimento em 18 países[13]. De qualquer modo, o tempo médio de construção das unidades de energia de maior dimensão parece ser, à vontade, compatível com a urgência que a situação exige[14].

No actual contexto, tem interesse chamar a atenção do público para o facto de que, além da produção de electricidade, a energia nuclear é uma excelente fonte de calor de processo para diversas aplicações industriais, incluindo a dessalinização, a produção de petróleo sintético e não convencional, a refinação de petróleo, a produção de etanol a partir de biomassa e, no futuro, produção de hidrogénio. Na verdade, para a maioria das principais aplicações de calor industrial, a energia nuclear é a única opção credível sem carbono[15]. Em 2019, existiam 79 reactores nucleares utilizados para dessalinização, aquecimento urbano ou calor de processo, totalizando 750 anos de experiência de operação nestes reactores, principalmente na Rússia e na Ucrânia[16].

Uma questão importante frequentemente levantada quando se considera o futuro da energia nuclear é a da eliminação de resíduos radioactivos e da gestão do combustível irradiado.

Há trinta anos, a 27 de Junho de 1954, a primeira central nuclear do mundo, em Obninsk, foi ligada à rede eléctrica de Moscovo[17]. Desde então, segundo a AIEA, quase 400 000 toneladas de combustível irradiado, constituído principalmente por urânio, plutónio e tório, foram descarregadas de reactores em funcionamento. Cerca de um terço foi reprocessado e reutilizado. O restante é mantido em armazém[18]. As descargas anuais de combustível irradiado dos reactores de potência mundiais totalizam cerca de 10 200 t[19]. Em termos do volume global, a radioactividade de cerca de 95% dos resíduos radioactivos existentes é de nível muito baixo (VLLW) ou baixo (LLW), enquanto cerca de 4% são resíduos de nível intermédio (ILW) e menos de 1% resíduos de alto nível (HLW) [20].

Em todos os casos, os resíduos devem ser mantidos em segurança em instalações concebidas para níveis adequados de contenção e isolamento, garantindo uma protecção adequada das pessoas e do ambiente contra as radiações durante longos períodos de tempo. Até aos dias de hoje, os resíduos são mantidos em depósitos de superfície ou próximo da superfície, adjacentes ou localizados nas imediações dos reactores em funcionamento. Esta prática é considerada temporária e requer vigilância e cuidados de manutenção regulares. Previstos para deposição final permanente estão os chamados depósitos geológicos. O primeiro depósito deste tipo no mundo, no qual os resíduos nucleares podem ser armazenados em segurança durante pelo menos 100 000 anos, foi anunciado pela Finlândia para entrar em funcionamento em 2025[21].

Os riscos para a saúde humana e para o ambiente associados a uma utilização extensiva da cisão nuclear como fonte de energia para fins pacíficos, tendem a ser negligenciáveis ​​em comparação com os riscos associados a uma vasta gama de outras actividades humanas, como explorações mineiras ou os transportes. E são, definitivamente, insignificantes se comparados com as consequências para a humanidade e para o mundo natural dos eventos extremos associados às alterações climáticas.

Um facto, porém, é que uma série de actores que detêm, secreta ou abertamente, as alavancas do poder, parecem ignorar ou estimar incorrectamente as ameaças com que as sociedades humanas estão confrontadas. Um exemplo notável é o do lobby dos combustíveis fósseis. De vez em quando somos confrontados com a afirmação de que “as alterações climáticas são um engano”, por isso, como disse um aspirante à presidência dos Estados Unidos, particularmente desinibido, “Fure, rapaz, fure” — “Drill, baby, drill” — pois, como dizem, “temos um tesouro debaixo dos pés”.

Não é por esse tesouro, mas antes pelo tesouro de uma opinião pública esclarecida, que os trabalhadores científicos devem lutar.

15 de Agosto de 2024

………………………………………………..

Intervenção no Simpósio
“Scientific cooperation as driver for Green and Low-Carbon development”
organizado conjuntamente pela FMTC-Federação Mundial dos Trabalhadores Científicos e a CAST-Associação Chinesa para a Ciência e Tecnologia por ocasião da 96ª Reunião do Conselho Executivo da FMTC
11-17 Agosto, 2024, Beijing&Huzhou, República Popular da China

____________________________________________________________________

[1] Os países que operavam mais de 20 unidades eram, então, por ordem decrescente do número de unidades, EUA (92), França (56), China (54), Rússia (37), e Coreia do Sul (25) https://www-pub.iaea.org/MTCD/Publications/PDF/RDS-2-43_web.pdf
[2] https://www.iea.org/data-and-statistics/data-tools/energy-statistics-data-browser?country=WORLD&fuel=Electricity%20and%20heat&indicator=ElecGenByFuel
[3] Ver referência 1
[4] Ver referência 2
[5] O consumo de electricidade per capita nos EUA é actualmente cerca do dobro do correspondente valor para a China, enquanto o mesmo valor na Federação Russa é superior a este último em cerca de 20% (7,3 MWh) https://www.iea.org/world/electricity
[6] https://www.iea.org/regions/africa 
[7]A.I.’s Insatiable Appetite for Energy”, David Gelles, The New York Times, July 11, 2024
Ver também: https://www.statista.com/chart/32689/estimated-electricity-consumption-of-data-centers-compared-to-selected-countries/
[8] “Nuclear Power Finally Has its Moment at UN Climate Summit”, Jeffrey Donovan, Dec 6, 2023 https://www.iaea.org/newscenter/news/nuclear-power-finally-has-its-moment-at-un-climate-summit
[9] https://www.energy.gov/articles/cop28-countries-launch-declaration-triple-nuclear-energy-capacity-2050-recognizing-key .Ver também a referência anterior
[10] Em Julho de 2024 o número de unidades em construção na China era 25
[11] https://www.nytimes.com/2023/12/02/climate/cop28-nuclear-power.html
[12] Para um valor estimado de 10 000 milhões de dólares americanos por unidade
[13] https://www.iaea.org/newscenter/news/iaea-showcases-progress-in-nuclear-harmonization-and-standardization-initiative-to-facilitate-deployment-of-smrs
[14] Para os reactores nucleares ligados à rede em 2022, o tempo médio de construção foi de 89 meses, ou seja, cerca de 7,5 anos. https://www.statista.com/statistics/712841/median-construction-time-for-reactors-since-1981/
[15] https://world-nuclear.org/information-library/non-power-nuclear-applications/industry/nuclear-process-heat-for-industry
[16] Ver referência anterior
[17] https://en.wikipedia.org/wiki/Obninsk_Nuclear_Power_Plant
[18] https://www.iaea.org/newscenter/news/new-iaea-report-presents-global-overview-of-radioactive-waste-and-spent-fuel-management
[19] Um reactor de potência, comum (1 GWe), produz por ano, tipicamente, 25 a 30 toneladas de combustível usado
https://world-nuclear.org/information-library/nuclear-fuel-cycle/nuclear-waste/radioactive-wastes-myths-and-realities
[20] Ver referência 18
[21] https://group.vattenfall.com/press-and-media/newsroom/2023/finland-to-open-the-worlds-first-final-repository-for-spent-nuclear-fuel