![Tempos Difíceis](https://otc.pt/wp/wp-content/uploads/2024/12/IMAGEM-FEATURED-678x381.png)
NUM MUNDO ENVOLVIDO EM GUERRAS
O CAMINHO PARA UM FUTURO INCERTO
Frederico Carvalho* e Mehdi Lahlou**
96º Conselho Executivo da Federação Mundial dos Trabalhadores Científicos
Beijing, República Popular da China, 11-17 Agosto 2024
Contribuição para o debate no
Grupo de Trabalho 1: “Paz, Desenvolvimento e Cooperação”
Dan Smith, Director do SIPRI, o conhecido Instituto Internacional Sueco de Investigação para a Paz, salientou recentemente (cf. Anuário SIPRI 2024): “Encontramo-nos hoje num dos períodos mais perigosos da história da humanidade. Há inúmeras fontes de instabilidade – rivalidades políticas, desigualdades económicas, disrupção ecológica e uma acelerada corrida aos armamentos. O abismo espreita-nos e é tempo de as grandes potências darem um passo atrás e reflectirem. De preferência em conjunto”[i].
O risco de eventual eclosão de uma guerra nuclear total não pode ser excluído, com consequências terríveis para a sustentabilidade da vida na Terra, com possível excepção das formas de vida mais primitivas. Importa que os trabalhadores científicos, em particular, se envolvam livremente e com seriedade no debate sobre a probabilidade de uma tal catástrofe, que não é inevitável, poder vir a acontecer, procurando expor as origens da ameaça e contribuir para uma análise sólida das medidas que devem ser tomadas para a evitar.
Em 2023, viviam-se conflitos armados activos em várias partes do mundo. Uma estimativa do número de Estados envolvidos ultrapassa as cinco dezenas. Uma consequência particularmente grave dos conflitos violentos, que em alguns casos se prolongam há décadas, é a deslocação forçada de pessoas. No continente africano, em consequência das guerras no Sudão e na República Democrática do Congo, as deslocações forçadas acumuladas ao longo de duas décadas ultrapassaram os 14 milhões de pessoas[ii]. Em Gaza, aproximadamente 2 milhões de pessoas foram deslocadas à força nos últimos 9 meses (estimativa de 7 de Julho de 2024), várias dezenas de milhar foram mortas e feridas em muito maior número.
Quando se lida com ameaças iminentes, é obrigatório salientar que, nos nossos dias, as alterações climáticas, que se manifestam em diferentes cenários – aquecimento das massas terrestres, aquecimento dos oceanos, degelo dos glaciares, etc.— são fonte de conflitos, e, tal como os combates na guerra, causa de deslocações forçadas, de privação extrema e morte prematura. Importa referir que, a contribuição dos militares para as emissões de gases com efeito de estufa, mesmo na ausência de qualquer conflito, é uma fracção não desprezável do total. Ao avaliar a pegada de carbono dos militares, há que considerar, além das emissões resultantes da utilização directa de equipamento militar num teatro de guerra, as emissões associadas à manutenção e operações de rotina nas bases militares; as emissões de carbono da indústria de armamento que produz os equipamentos militares, bem como as ligadas à extracção das matérias-primas utilizadas por essa indústria. E, por último, mas não com menor importância, terminado um conflito, as emissões resultantes dos trabalhos de reconstrução de infra-estruturas, edifícios e instalações civis destruídos em grande número [iii].
A questão da incompatibilidade da guerra, nas suas diversas formas, com o sucesso dos esforços de mitigação das alterações climáticas, merece a nossa atenção. O sucesso depende de cooperação. Não pode ser o resultado de medidas isoladas tomadas por poderes individuais. O mesmo se aplica aos esforços de construção da Paz.
No actual quadro geopolítico, existe um sério perigo de os conflitos em curso evoluírem para confrontos fora de controlo.
Espera-se que os trabalhadores científicos sejam capazes de examinar, com espírito aberto e numa perspectiva apartidária, as raízes e as razões do agravamento das ameaças, ligadas entre si, que a humanidade enfrenta. Na nossa opinião, uma coisa é certa: seguir o caminho definido pela prossecução do “business as usual” – que inclui a guerra – traduz-se em si mesmo numa ameaça existencial para a humanidade. A sobrevivência dependerá de mudanças sociais radicais, da abolição da guerra e do estabelecimento da paz.
A POSTURA OFICIAL DAS POTÊNCIAS NUCLEARES SOBRE O USO DE ARMAS NUCLEARES
Ao considerar a possibilidade de uma conflagração nuclear, merece atenção a questão da “doutrina nuclear” adoptada pelas potências que possuem e controlam armamentos nucleares — a chamada, em inglês, “nuclear posture”. Lembremos a declaração pela primeira vez feita pelos presidentes Ronald Reagan e Mikhail Gorbachev na sua cimeira de Genebra, em 1985: “Uma guerra nuclear não pode ser ganha e nunca deverá ser travada”. Embora as relações entre as principais superpotências se tenham deteriorado consideravelmente nas décadas seguintes, curiosamente, a mesma posição foi expressa em 2022 pelos líderes dos cinco Estados com armas nucleares, membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, numa declaração conjunta sobre a prevenção da guerra nuclear e da corrida aos armamentos. Obviamente, tal afirmação não deve ser tomada à letra.
Das cinco partes envolvidas, apenas a República Popular da China prometeu não ser nunca a primeira a utilizar armas nucleares e instou outros Estados com armas nucleares a assumir o mesmo compromisso, propondo-lhes que negociassem um tratado de não utilização em primeiro lugar, posição esta assumida desde que a RPC levou a cabo a sua primeira detonação nuclear em 1964 [iv]. O mesmo foi reafirmado em Março de 2023 numa reunião do Conselho de Segurança [v], pelo representante da República Popular da China numa declaração, em que apelou à eliminação gradual e completa das armas nucleares e à abolição dos acordos de “partilha nuclear”, bem como à retirada de todas essas armas posicionadas em países estrangeiros [vi].
A posição dos outros quatro membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU é a de recusa de uma política de não utilização em primeiro lugar (“no first use policy”, em inglês).
Na Revisão de 2022 da Doutrina Nuclear dos EUA [vii], recentemente divulgada, pode ler-se o seguinte sobre Política Declaratória (p. 9) (ênfase nosso): “Os Estados Unidos só considerariam a utilização de armas nucleares em circunstâncias extremas para defender interesses vitais dos Estados Unidos ou dos seus Aliados e parceiros. Os Estados Unidos não utilizarão nem ameaçarão utilizar armas nucleares contra estados não possuidores de armas nucleares que sejam signatários do Tratado de Não Proliferação (TNP) e que estejam em cumprimento das suas obrigações de não proliferação nuclear”. Acrescentando que: “Relativamente a todos os outros Estados, mantem-se um leque restrito de situações de contingência em que as armas nucleares dos EUA podem ainda desempenhar um papel dissuasor de ataques que tenham efeito estratégico sobre os Estados Unidos ou seus Aliados e parceiros. A política declaratória é informada pela natureza da ameaça, pela avaliação das percepções do adversário, pelas perspectivas de Aliados e parceiros e pelos nossos objectivos de contenção de riscos estratégicos”. Além disso, afirma que, após uma revisão minuciosa da opção de ambas as ‘políticas de Não Primeira Utilização e de Propósito Único’, concluiu-se “que estas abordagens resultariam num nível de risco inaceitável à luz da gama de capacidades não nucleares que estão a ser desenvolvidas e postas em prática por concorrentes que poderiam infligir danos de nível estratégico aos Estados Unidos e seus Aliados e parceiros”, referindo-se finalmente que: “Alguns Aliados e parceiros são particularmente vulneráveis a ataques com meios não nucleares que podem produzir efeitos devastadores”. Assim, a retaliação com recurso a armas nucleares não está excluída, mesmo no caso de um ataque não nuclear aos EUA, seus “aliados e parceiros”.
Defendendo a opção da “não utilização em primeiro lugar”, a Union of Concerned Scientists – uma conhecida organização americana sem fins lucrativos – escreve: “Na ausência da opção pela ‘não utilização em primeiro lugar’, o público dos EUA corre maior risco de um ataque devastador, seja porque outro país – receando a utilização de armas nucleares pelos EUA – decida avançar primeiro, ou os Estados Unidos optem por iniciar uma guerra nuclear, levando a uma retaliação cataclísmica”. Isto é simples senso comum.
No caso da Federação Russa, a utilização de armas nucleares em primeiro lugar não está excluída sempre que seja percebida uma ameaça existencial à mãe-pátria, independentemente da natureza do eventual ataque, seja ele nuclear ou não nuclear. A posição oficial é a seguinte:
“No âmbito da implementação de medidas estratégicas de dissuasão de natureza persuasiva, a Federação Russa prevê a utilização de armas de alta precisão.
A Federação Russa reserva-se o direito de utilizar armas nucleares em resposta à utilização de armas nucleares e outros tipos de armas de destruição maciça contra si e (ou) os seus aliados, bem como em caso de agressão contra a Federação Russa utilizando armas convencionais quando a própria existência do Estado esteja ameaçada.
A decisão de utilizar armas nucleares é tomada pelo Presidente da Federação Russa” [viii].
Assim, a tendência para a escalada bélica continua forte. Neste contexto, importa referir a decisão de instalar mísseis americanos de longo alcance na Alemanha, tomada a 10 de Junho de 2024 – em paralelo com as festividades organizadas em Washington, assinalando o 75º aniversário da criação da OTAN. A decisão rapidamente provocou uma reacção das autoridades russas, que estimaram que ela poderia tornar as capitais europeias alvo de mísseis russos e vítimas de um confronto entre Washington e Moscovo.
Assim, para o porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, numa declaração datada de 13 de Junho de 2024: “A Europa é um alvo para os nossos mísseis, o nosso país é um alvo para os mísseis americanos na Europa. Já passámos por isso antes [ix], já passámos por isso. Podemos conter estes mísseis, mas as potenciais vítimas são as capitais destes países europeus” [x].
A posição oficial do Reino Unido é de que a sua capacidade de dissuasão nuclear “é operacionalmente independente, e o Reino Unido não necessita de autorização dos EUA ou da NATO para a utilizar”, acrescentando, no entanto, que “apoia a segurança colectiva através da NATO para a área Euro-Atlântica”.
O Reino Unido (citação) “mantém deliberadamente alguma ambiguidade sobre quando, precisamente, como e em que escala (ele) contemplaria a utilização dos seus meios de dissuasão nuclear”[xi] , mantendo assim um potencial agressor a adivinhar em que circunstâncias o Reino Unido poderia considerar a utilização das suas capacidades nucleares. O Reino Unido não define o que considera serem os seus interesses vitais, pelo que (citação) “não descartará nem excluirá a utilização de armas nucleares em primeiro lugar”.
No que diz respeito ao recurso ao uso de armas nucleares, a posição da França é, no essencial, coincidente com a do Reino Unido.
Tem também interesse conhecer a doutrina nuclear potências nucleares que não são membros do Conselho de Segurança da ONU.
O caso da doutrina nuclear da Índia merece atenção porque tendo originalmente tomado como posição de princípio a não utilização em primeiro lugar da arma nuclear (1993), na versão de 2003, adopta um importante qualificativo segundo o qual “a Índia considerará a utilização de armas nucleares em resposta a um ‘grande ataque’ à Índia ou às forças indianas em qualquer lugar com armas químicas ou biológicas”. Tal postura significa que a Índia poderia utilizar armas nucleares não apenas contra Estados não nucleares, mas também — contrariamente ao princípio da não utilização em primeiro lugar — contra qualquer potência nuclear que decida utilizar armas químicas ou biológicas contra a Índia [xii].
O Paquistão, vizinho da Índia no Subcontinente Indiano, decidiu não apoiar uma política de não primeira utilização. A doutrina nuclear do país, oficialmente não declarada, tende a evoluir para responder aos desafios e restrições impostos pelas relações entre estados da região.
Embora o Paquistão e a Índia sejam potências nucleares menores, no caso de um conflito nuclear limitado envolvendo, digamos, 100 ogivas de 15kt-equivalente TNT, poderia resultar num número próximo de 30 milhões de mortes directas e desencadear um efeito de “inverno nuclear” que poderia levar a um número estimado de 225 milhões de mortes adicionais pela fome [xiii].
O caso de Israel, uma potência nuclear não declarada, também merece consideração. É um caso peculiar. Israel adoptou aquilo que aparentemente pode ser descrito como uma “opção suicida” no que diz respeito à eventual utilização das suas armas nucleares. Chama-se Opção Sansão: a estratégia de dissuasão de Israel de retaliação massiva com armas nucleares como “último recurso” contra um país cujas forças militares tenham invadido e/ou destruído grande parte de Israel (sublinhado nosso).
Na situação actual que se vive no Médio Oriente, um eventual recurso de Israel à Opção Sansão é bastante improvável [xiv]. Em sentido inverso, Amihai Eliyahu, um membro de direita do governo de coligação do primeiro-ministro Netanyahu, sugeriu, no início da guerra em Gaza, que “uma via” para eliminar o Hamas seria a opção nuclear.
Eliyahu foi suspenso, um acto que provavelmente teve mais a ver com o ter inadvertidamente trazido a público a posse por Israel de uma capacidade nuclear militar [xv].
A doutrina nuclear da República Popular Democrática da Coreia (Coreia do Norte), estabelecida numa lei de 2013, estipulava que a Coreia do Norte poderia utilizar armas nucleares para repelir invasões ou ataques de um estado nuclear hostil e realizar ataques retaliatórios. Uma revisão da lei em 2022 vai além disso, permitindo ataques nucleares preventivos no caso de a Coreia do Norte detectar um ataque iminente com armas de destruição maciça, de qualquer tipo, dirigidas à sua liderança e à estrutura de comando das suas forças nucleares. Entre os cenários que poderiam levar a desencadear um ataque nuclear estariam a ameaça de um ataque nuclear iminente; se a liderança, o povo ou a existência do país estivessem ameaçados; ou para levar a melhor em caso de guerra [xvi].
Esta é uma aparente referência à estratégia “Kill Chain” da Coreia do Sul, que postula um ataque preventivo à infra-estrutura nuclear e ao sistema de comando da Coreia do Norte no caso de suspeita de um ataque iminente [xvii].
A FALÊNCIA DOS ACORDOS DE ARMAMENTO E A RENOVADA CORRIDA AOS ARMAMENTOS
No período da “Guerra Fria”, foram possíveis entendimentos entre as duas maiores potências nucleares que conduziram a acordos bilaterais no domínio nuclear. Tais acordos deram substância à chamada política de “dissuasão nuclear” que tornou improvável a eclosão deliberada de um conflito nuclear.
No pós-Guerra Fria, a situação, ao contrário do que poderia esperar-se, evoluiu num sentido não favorável à Paz.
Após a reunificação da Alemanha e o fim da República Democrática Alemã em 1990, cuja aceitação pela liderança soviética se baseou na promessa dos EUA da não expansão da NATO para leste, a situação evoluiu exactamente na direcção oposta [i]. Desde então e até ao presente, a NATO duplicou o número de membros, passando de 16 para 32 (com a recente inclusão da Suécia e da Finlândia, até então países neutros).
Este século viu os EUA denunciarem dois importantes tratados bilaterais que tinham assinado e ratificado. Isso aconteceu com o Tratado sobre Mísseis Antibalísticos (ABM) de 1972, denunciado pelos EUA em 2002. Em 2020, os EUA retiraram-se do Tratado sobre Forças Nucleares de Alcance Intermédio (INF) assinado vinte anos antes pelos Presidentes Reagan e Gorbachev. Neste contexto, tem interesse referir o tratado internacional sobre a proibição total dos ensaios nucleares, que inclui a proibição de ensaios subterrâneos. O Tratado, aberto à assinatura em 1996, não entrou ainda em vigor. Apenas três dos Estados com armas nucleares – a Federação Russa, a França e o Reino Unido – ratificaram o tratado. Em 2023, com a guerra já em curso na Europa de Leste, a Rússia decidiu retirar a sua ratificação, alegando a não ratificação por parte dos EUA. No entanto, comprometeu-se a não realizar novos testes de explosivos nucleares se os americanos não o fizessem.
O número de explosivos nucleares em condições de utilização imediata ou armazenados nos arsenais das duas maiores potências nucleares atingiu valores verdadeiramente espantosos no último quartel do século XX, mesmo após a queda do Muro de Berlim e o fim da União Soviética. Falamos das chamadas “ogivas nucleares” a serem transportadas por mísseis, abrigados em silos subterrâneos, por submarinos ou aviões bombardeiros estratégicos. Os números são, de facto, surpreendentes, quando se sabe que uma fracção muito pequena destes explosivos, se utilizados, seria suficiente para pôr fim à vida na Terra. No total, em 1990, aqueles arsenais continham cerca de 50 mil ogivas nucleares operacionais. Nos anos que se seguiram à dissolução da URSS, verificou-se uma diminuição substancial destes números que, em meados da primeira década do nosso século, rondavam os 10 000.
Em 2010 (8 de Abril), foi assinado em Praga por Barack Obama e Dmitri Medvedev, o chamado “Novo Tratado de Redução de Armas Estratégicas” (NEW START ou START 3), que estabelece para cada uma das duas potências nucleares um número máximo de 1550 ogivas nucleares no chamado “alerta de disparo” (em inglês “trigger alert”) ou “situação de alerta para lançamento”. O cataclismo nuclear continua a ser possível, mas agora em condições muito mais “económicas” [ii]. Os custos de manutenção diminuem o que permite que os fundos sejam desviados para o investimento em melhores armas nucleares e também no desenvolvimento de outros tipos de armas.
É isto que está a acontecer: está em curso uma nova corrida às armas nucleares e aos armamentos em geral.
Embora em 2021 a vida do Tratado tenha sido prorrogada por 5 anos, até Fevereiro de 2026, o seu futuro na situação actual é duvidoso. A actual “guerra quente” que opõe, no terreno, a NATO liderada pelos EUA, à Federação Russa, não parece compatível com o respeito pelo acordo alcançado. Sinal disso é o anúncio pela Rússia, a 22 de Fevereiro de 2023, da suspensão da sua participação no tratado. O presidente Vladimir Putin afirmou, na altura, que isso não significava a denúncia daquele que é hoje o único acordo de controlo de armas com os Estados Unidos que subsiste, mas simplesmente a recusa de permitir inspecções in loco pelas partes, como previsto no tratado.
Entretanto, os EUA afirmam ter a intenção de gastar, nos próximos 30 anos, cerca de 2 milhões de milhões de dólares na “modernização” da sua “tríade nuclear” (mísseis balísticos intercontinentais terrestres (ICBMs), mísseis balísticos lançados a partir de submarinos (SLBMs), e bombardeiros estratégicos que transportam bombas nucleares e também mísseis). De forma mais geral: sabe-se que os estados que actualmente possuem armas nucleares estão a expandir e/ou a modernizar os seus respectivos arsenais, incluindo tanto ogivas como vectores de lançamento.
Isto envolve lucros fabulosos para as grandes corporações privadas da indústria do armamento. A despesa militar mundial, que tem vindo a crescer continuamente desde 2014, é hoje cerca do dobro do valor de 2001, atingindo em 2023 (a preços correntes), o valor de 2,4 milhões de milhões de dólares americanos [iii].
Alguns consideram que o caminho que tem vindo a ser seguido faz baixar significativamente o chamado “limiar nuclear” (em inglês, “nuclear threshold”) quer dizer, as circunstâncias em que é decidido o recurso à arma nuclear. Acreditamos, no entanto, que não é provável que uma guerra nuclear global venha a ter lugar. Na verdade, é possível considerar que uma certa “estabilidade estratégica” se mantem, mas apenas se e enquanto uma potência nuclear indirectamente envolvida num conflito com outra potência nuclear, por interposto estado cliente, acredite poder infligir uma derrota estratégica ao inimigo, esperando que este não se decida a usá-las.
No entanto, como sublinharam vários observadores qualificados, não se deve excluir a possibilidade de um eventual desastre nuclear de proporções catastróficas poder ser consequência de um disparo acidental e não deliberado, resultante de um erro na avaliação de sinais com origem num fenómeno natural ou do mau funcionamento de qualquer sistema que sugira que um ataque inimigo está iminente ou, simplesmente, de uma decisão errada, não informada ou injustificada da entidade que detém o poder de determinar o disparo.
A história regista inúmeros casos em que o mundo esteve, por uma ou outra razão, à beira do desastre. A situação é hoje mais grave devido ao silenciamento dos canais de comunicação dedicados entre os EUA e a Federação Russa [iv].
De qualquer modo, os especialistas militares entendem que a utilidade de qualquer tipo de armas nucleares para atingir objectivos militares num teatro de guerra, seja na Ucrânia ou em Gaza, por exemplo, é muito duvidosa.
AMEAÇAS DECORRENTES DO DESENVOLVIMENTO DE “TECNOLOGIAS DISRUPTIVAS”
Agressão e guerra, nas suas múltiplas formas, tiram hoje partido de meios tecnológicos sofisticados que os avanços do conhecimento científico tornaram possíveis. Ao nuclear militar, surgido há 80 anos, vieram juntar-se outras tecnologias ditas “disruptivas”, com rápido desenvolvimento neste século. São exemplo: no campo das ciências da vida, a chamada engenharia genética, envolvendo técnicas de edição genética; no domínio da informática e da cibernética, os sistemas de armas letais autónomas ou robôs militares, que incorporam aplicações da chamada “inteligência artificial”; e também armas de energia dirigida (AED ou DEW, na sigla inglesa) — lasers de alta energia ou sistemas de microondas de alta potência, muitas vezes designados por armas de radiofrequência. Algumas AED já foram implantadas no terreno, enquanto outras estão a ser ensaiadas. Na verdade, em muitos países, estão em curso pesquisas nesta área. De acordo com algumas fontes, o Departamento de Defesa dos EUA terá investido nos últimos anos mais de 1000 milhões de dólares por ano em tecnologias AED [v]. David C. Stoudt (ver ref. xx) salienta que “sistemas autónomos e sistemas apoiados por IA estão a tornar-se vulneráveis a armas de laser e microondas de energia dirigida, uma vez que dependem de sensores ópticos e de radiofrequência”. De acordo com a mesma fonte, “as actuais armas de microondas estão agora a ser utilizadas para combater enxames de drones armados, fazendo-os cair do céu, dominando e perturbando a sua electrónica interna” [vi].
Os rápidos avanços no domínio da Inteligência Artificial são também uma fonte de preocupação. Um número significativo de trabalhadores científicos altamente reputados chamou publicamente a atenção para os perigos de um desenvolvimento desregulado dos avanços da IA. Diferentemente do que, historicamente, se deu com os desenvolvimentos no campo nuclear, os activos de investigação, desenvolvimento e inovação em IA estão, no mundo ocidental, em mãos privadas e, portanto, totalmente dependentes dos interesses do grande capital. Este facto torna mais difícil fazer aprovar regulamentos e implementar mecanismos reguladores independentes e eficazes.
No que toca a aplicações militares da IA, em vários dos países científica e tecnicamente mais avançados do mundo está em curso uma corrida a armamentos que tiram partido dos progressos da IA. Nalguns locais onde ocorrem conflitos, sistemas ou dispositivos que fazem uso da IA já estão no terreno. Assim é, em particular, no caso dos trágicos conflitos em curso na Europa de Leste e no Médio Oriente, nomeadamente na Palestina.
Para além das armas letais autónomas de diferentes tipos, as técnicas de vigilância de massa, incluindo sistemas de reconhecimento facial, merecem especial atenção. Um ramo especializado das Forças de Defesa de Israel (FDI) que dá pelo nome de “divisão de identificação de alvos” (designada em inglês como “target administration division”) foi constituída em 2019 no seio da direcção de espionagem das FDI. Dois sistemas baseados em IA designados por “o Evangelho” e “Lavanda” foram utilizados na guerra contra o Hamas para “gerar alvos a um ritmo rápido”. Os alvos tanto podem ser indivíduos como estruturas, inclusivamente habitações ou casas particulares [vii].
Nos nossos dias, a guerra assume múltiplas formas, envolvendo meios militares e não militares. Falamos de guerra híbrida. A guerra híbrida conduzida por blocos antagónicos utiliza uma variedade de instrumentos e segue novos caminhos abertos pela tecnologia. Ataques cibernéticos que paralisam infra-estruturas vitais, divulgação de notícias manifestamente falsas ou simplesmente enganosas, e sanções económicas, são alguns exemplos. A guerra é uma causa principal de desnutrição e morte pela fome, utlizadas por vezes como arma de guerra. São conhecidos casos antigos e também actuais de uma tal conduta desumana [viii], pois vemos o que está a acontecer a este respeito em Gaza desde o final de 2023.
O PAPEL DOS TRABALHADORES CIENTÍFICOS
Numa declaração do seu Secretariado Internacional, tornada pública em Janeiro de 2024, a Federação Mundial dos Trabalhadores Científicos renovou o apelo a “uma cooperação dinâmica dentro da comunidade global de investigadores científicos, a fim de decididamente fazer frente aos principais desafios que ameaçam a humanidade, incluindo desastres recorrentes causados pelas alterações climáticas, bem como a ameaça de guerra em muitas frentes”. Tirando partido da sua formação específica e competências multidisciplinares, os cientistas, a nível global, têm o dever — acrescentava a declaração — de “influenciar os decisores e alertar os (seus) concidadãos para a natureza e as implicações para o nosso futuro comum dos perigos de continuar a seguir o caminho traçado pelas potências dominantes de hoje”. Não é uma tarefa fácil. É uma tarefa que exige um esforço de organização para ganhar o apoio das associações de trabalhadores científicos e dos seus membros no interior de cada uma.
Tal não pode ser alcançado sem o aprofundamento do debate no seio das organizações sobre a importância relativa da natureza das ameaças no actual quadro geopolítico; sobre as suas raízes e as razões do seu agravamento, bem como o perigo dos conflitos em curso evoluírem para confrontos descontrolados.
Neste contexto, as alterações climáticas a nível global, com repercussões directas nos equilíbrios geopolíticos, centrais no dilema guerra-paz, podem ser consideradas por muitos como a mais grave ameaça existencial que a Humanidade enfrenta hoje: o aumento da frequência de fenómenos climáticos de intensidade anormal, atribuível às actividades humanas, com perda de vidas e grandes danos materiais. Eis o que merece ser objecto de um amplo debate.
Em nossa opinião, nem as guerras nem as alterações climáticas, que alguns procuram retratar como uma consequência inevitável do desenvolvimento científico e tecnológico, poderão ser combatidas com sucesso no quadro de uma globalização imperialista baseada na ditadura do grande capital.
Pequim, 12 de Agosto de 2024
____________________________________
*Frederico Carvalho, Doutor em Física pela Universidade de Lisboa e em Engenharia Nuclear pela Universidade de Karlsruhe, Alemanha, é Investigador-Coordenador (aposentado) do Dep. de Engenharia e Ciências Nucleares do Instituto Superior Técnico, Universidade de Lisboa. Presidente da Direcção da OTC-Organização dos Trabalhadores Científicos, é vice-Presidente do Conselho Executivo da Federação Mundial dos Trabalhadores Científicos e membro do seu Secretariado Internacional.
**Mehdi Lahlou é professor de Economia no Instituto Nacional de Estatística e Economia Aplicada (INSEA) em Rabat, Marrocos, e professor associado na Universidade Mohammed V (Rabat). É membro do Conselho Executivo e do Secretariado Internacional da Federação Mundial dos Trabalhadores Científicos.
____________________________________
Artigo na página institucional da FMTS-WFSW:
EN: https://fmts-wfsw.org/2024/12/hard-times/?lang=en
FR: https://fmts-wfsw.org/2024/12/temps-difficiles/
____________________________________
[i] A este propósito, citamos uma passagem de um artigo de opinião publicado no Los Angeles Times em Maio de 2016, intitulado: “A Rússia tem razão: os EUA quebraram uma promessa da NATO”: “No início de Fevereiro de 1990, os líderes dos EUA fizeram uma oferta aos Soviéticos. De acordo com as transcrições das reuniões em Moscovo, a 9 de Fevereiro, o então Secretário de Estado James Baker sugeriu que, em troca de cooperação com a Alemanha, os EUA poderiam dar “garantias rígidas” de que a NATO não se expandiria “um centímetro para leste”. Menos de uma semana depois, o presidente soviético Mikhail Gorbachev aceitou iniciar negociações de reunificação. Não foi alcançado qualquer acordo formal, mas, segundo todas as evidências, o compromisso era claro: Gorbachev acedeu ao alinhamento ocidental da Alemanha e os EUA limitariam a expansão da NATO.
No entanto, as grandes potências raramente atam as suas próprias mãos. Em memorandos e notas internas, os decisores políticos dos EUA rapidamente perceberam que excluir a expansão da NATO poderia não ser do interesse dos Estados Unidos. No final de Fevereiro, Bush e os seus conselheiros decidiram deixar a porta aberta.”https://www.latimes.com/opinion/op-ed/la-oe-shifrinson-russia-us-nato-deal–20160530-snap-story.html
[ii] Na verdade, as ogivas nucleares têm uma vida útil limitada, o que requer uma avaliação periódica do seu estado, remoção atempada para armazenamento provisório e possível desmantelamento. São operações caras e tecnicamente exigentes.
[iii] Um valor que representa cerca de 10 vezes o PIB português em 2023.
[iv] Alguns recordarão o famoso “telefone vermelho” entre o Kremlin e a Casa Branca, dos tempos da guerra fria, uma linha directa que permitia a comunicação entre os dirigentes dos Estados Unidos e da antiga União Soviética (hoje, Federação Russa). Tecnicamente, a partir de 2008, a linha de emergência Moscovo-Washington é uma ligação de computador protegida através da qual as mensagens são trocadas por uma forma segura de e-mail.
[v] “The Emerging Artificial Intelligence Era Faces a Growing Threat from Directed Energy Weapons”, David C. Stoudt, Scientific American, May 23, 2024.
[vi] Há notícia de que enxames de drones armados foram utilizados na frente de guerra na Europa de Leste.
[vii] https://www.theguardian.com/world/2023/dec/01/the-gospel-how-israel-uses-ai-to-select-bombing-targets
https://www.theguardian.com/world/2024/apr/03/israel-gaza-ai-database-hamas-airstrikes
[viii] Ver referência ao “cerco de três anos à cidade de Leninegrado, que se destaca pelas cerca de 630 mil pessoas que os alemães mataram lenta e intencionalmente pela fome e causas relacionadas”, em “War and Famine, America’s War on Terror and the Wasting of Our Democracy”, Andrea Mazzarino, July 7, 2024 https://tomdispatch.com/war-and-famine/#more
[i] https://www.sipri.org/media/press-release/2024/role-nuclear-weapons-grows-geopolitical-relations-deteriorate-new-sipri-yearbook-out-now
[ii] Dan Smith, SIPRI Yearbook 2024, Introduction
[iii] Ver “How does war contribute to climate change?”, CEOBS-Conflict and Environment Observatory, June 14, 2021 Conflict and Environment Observatory (https://ceobs.org/how-does-war-contribute-to-climate-change/ ); “The carbon boot-print of the military”, Stuart Parkinson, Responsible Science Journal nº2, Jan. 8, 2020 (updated 2022) (https://www.sgr.org.uk/resources/carbon-boot-print-military-0 ); “Existential Risks: “The Case Of War-Climate Interactions”, Frederico Carvalho, 94th Executive Council Meeting of the WFSW, Évora (Portugal) July 2—7, 2023 (https://otc.pt/wp/wp-content/uploads/2023/07/EC94-12ENWG1EXISTENTIAL-RISKS-THE-CASE-OF-WAR-CLIMATE-INTERACTIONS.pdf ) . A produção global de cimento é responsável por cerca de 8% das emissões totais de CO2 do mundo.( https://www.weforum.org/agenda/2024/09/cement-production-sustainable-concrete-co2-emissions/)
[iv] https://www.fmprc.gov.cn/eng/ziliao_665539/3602_665543/3604_665547/200011/t20001117_697877.html
[v] https://press.un.org/en/2023/sc15250.doc.htm
[vi] “Partilha nuclear” (em inglês, “nuclear sharing”) refere-se ao estacionamento de armas nucleares em países estrangeiros. Os acordos sobre “partilha nuclear” entre os EUA e vários países da NATO estão em vigor há várias décadas. Actualmente, os EUA mantêm cerca de 100 bombas termonucleares de gravidade B61 estacionadas em bases militares em quatro países membros da UE (Bélgica, Alemanha, Itália (2 bases) e Países Baixos) e na Turquia. As B61 são bombas reguláveis com um poder explosivo seleccionável entre 0,3, 5, 10 ou 80 quilotoneladas, equiv. TNT. Recentemente (Abril de 2024) a Polónia demonstrou interesse em acolher armas nucleares dos EUA ao abrigo de um acordo de partilha nuclear. As bombas B61 podem ser utilizadas como armas tácticas como armas estratégicas. Recentemente, a Federação Russa posicionou um certo número de armas nucleares tácticas na Bielorrússia, um movimento descrito por vários observadores como consequência do actual conflito na Europa de Leste, visto como uma guerra por procuração entre os EUA e a Rússia, travada em solo ucraniano. (https://en.wikipedia.org/wiki/Tactical_nuclear_weapon)
[vii] https://fas.org/wp-content/uploads/2023/07/2022-Nuclear-Posture-Review.pdf
[viii] “Military Doctrine of the Russian Federation” https://web.archive.org/web/20110504070127/http://www.scrf.gov.ru/documents/33.html
[ix] Esta declaração parece referir-se à chamada ‘Crise dos mísseis Pershing’, que surge quando uma reunião especial dos Ministros dos Negócios Estrangeiros e da Defesa da NATO, realizada em Bruxelas em 12 de Dezembro de 1979, decidiu a implantação na Europa – na República Federal da Alemanha , e em Itália, Reino Unido, Países Baixos e Bélgica – de sistemas americanos de lançamento do solo compreendendo 108 lançadores de mísseis Pershing II, que substituiriam os então existentes Pershing I-A dos EUA, e 464 mísseis de cruzeiro também de lançamento do solo (GLCM). German History, https://germanhistorydocs.org/en/two-germanies-1961-1989/nato-s-dual-track-decision-december-12-1979
[x] Ver LeMonde.fr, 14 Julho 2024. https://www.lemonde.fr/international/live/2024/07/13/en-direct-guerre-en-ukraine-la-russie-revendique-la-prise-du-village-d-ourojaine-qui-avait-ete-reconquis-par-kiev-en-aout-2023_6247419_3210.html[xi] https://www.gov.uk/government/publications/2010-to-2015-government-policy-uk-nuclear-deterrent/2010-to-2015-government-policy-uk-nuclear-deterrent
[xii] “India’s Nuclear Policy”, Rajesh Rajagopalan, https://www.nids.mod.go.jp/english/event/symposium/pdf/2009/e_06.pdf
[xiii] Frederico Carvalho, “RISCOS EXISTENCIAIS: O CASO DAS INTERACÇÕES GUERRA-CLIMA”, 94ª Reunião do Conselho Executivo da Federação Mundial dos Trabalhadores Científicos, Évora (Portugal) Julho 2—7, 2023 (https://otc.pt/wp/2023/09/14/guerra-e-clima/ )
[xiv] O nome é uma referência a Sansão, figura bíblica mencionada no Livro dos Juízes, no Antigo Testamento, último dos juízes dos antigos israelitas, que destruiu os pilares de um templo filisteu, derrubando o telhado e matando-se a si próprio e a milhares de filisteus que o haviam capturado.
[xv] Em Israel, a discussão pública sobre a política de armas nucleares está sujeita a censura. Nos Estados Unidos, uma ordem executiva secreta há muito que “proíbe os funcionários americanos de sequer reconhecerem que Israel tem armas nucleares” e “ameaça funcionários governamentais actuais e antigos com medidas disciplinares, incluindo despedimento”, se o fizerem. O reconhecimento oficial obrigaria, em princípio, a pôr fim ao apoio militar dos EUA a Israel nos termos do disposto no Tratado de Não Proliferação Nuclear ratificado pelos Estados Unidos.
https://thebulletin.org/2024/07/nuclear-danger-is-growing-physicists-of-the-world-unite/
[xvi] https://www.reuters.com/world/asia-pacific/nkorea-passes-law-declaring-itself-nuclear-weapons-state-kcna-2022-09-08/
[xvii] O objectivo da estratégia “Kill Chain” foi divulgado à comunicação social na Coreia do Sul por fontes militares anónimas, que provavelmente falavam com autorização, com detalhes suficientes para delinear o seu propósito estratégico: “Todos os distritos de Pyongyang, particularmente, onde a liderança norte-coreana está possivelmente escondida, será completamente destruído por mísseis balísticos e bombas altamente explosivas assim que o Norte apresentar quaisquer sinais de utilização de uma arma nuclear. Ou seja, a capital do Norte será reduzida a cinzas e desaparecerá do mapa”.
https://carnegieendowment.org/posts/2022/08/south-koreas-decapitation-strategy-against-north-korea-has-more-risks-than-benefits?lang=en