
A OTC NO 31º CONGRESSO DO SNTRS-CGT
O 31º Congresso do SNTRS-Syndicat National des Travailleurs de la Recherche Scientifique, de França, filiado na Confédération Générale des Travailleurs (CGT), a organização francesa equivalente à CGTP, teve lugar em Dezembro último em Dunquerque, cidade portuária do norte de França. Os trabalhos decorreram entre 3 e 6 de Dezembro. A convite da Direcção daquele sindicato, a OTC marcou presença através de uma mensagem vídeo em que é abordada a questão das “liberdades académicas”, tema proposto pelos nossos parceiros franceses às organizações convidadas de outros países com as quais o SNTRS mantém relações. A colega Maria Elmina Lopes, membro da Direcção, foi a porta-voz da OTC. Devido às limitações de tempo, o vídeo, que pode ser visto em baixo e se apresenta legendado em francês, é uma versão curta do original em português que pode ser lido abaixo.
Tem interesse reproduzir aqui os termos do convite dirigido pelo SNTRS-CGT aos seus parceiros internacionais onde se vêem reflectidas preocupações — que partilhamos —no que toca a ameaças às liberdades académicas. Segue-se o original em francês e a tradução em português:
« Le thème choisi cette année sont les libertés académiques, dans leur acception la plus large : liberté d’enseignement, de recherche, financement de l’ESR, indépendance du politique, des lobbies etc., mais aussi liberté de se syndiquer, liberté de prendre position (notamment concernant les questions géopolitiques, éthiques, climatiques…) et libertés des académiques en tant que citoyens. Comme dans la conférence de l’IE à Mexico, nous pensons que ces libertés sont menacées non seulement par les régimes autoritaires ou dictatoriaux, mais aussi malheureusement dans les pays dits démocratiques.
Les invités internationaux diront ce qui se passe dans leur pays et ce que leurs organisations pensent sur le sujet. »
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“O tema escolhido este ano é a liberdade académica, no seu sentido mais lato: liberdade de ensino, investigação, financiamento do Ensino Superior e Investigação, independência da política, dos lobbies, etc., mas também liberdade de sindicalização, liberdade de tomada de posição (particularmente em matéria geopolítica, ética, questões climáticas, etc.) e as liberdades dos académicos como cidadãos. Tal como na conferência da Internacional da Educação, no México, acreditamos que estas liberdades estão ameaçadas não só por regimes autoritários ou ditatoriais, mas também, infelizmente, nos chamados países democráticos.
Os convidados internacionais falarão sobre o que está a acontecer nos seus países e o que as suas organizações pensam sobre o assunto.»
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TEXTO INTEGRAL DA INTERVENÇÃO DA OTC
Caras e caros colegas trabalhadores científicos do SNTRS-CGT,
Caros colegas de outras organizações aqui presentes,
Em nome da OTC (Organização dos Trabalhadores Científicos) quero em primeiro lugar agradecer o convite para participar no vosso Congresso através deste vídeo.
Em segundo lugar gostaria de vos apresentar toda a nossa solidariedade face à grave contrariedade que representou a inundação e o adiamento do congresso.[*]
As relações entre o SNTRS e a OTC têm já algumas décadas e, principalmente no seio da Federação Mundial dos Trabalhadores Científicos, temos trabalhado em conjunto em prol da Paz e do Progresso científico e civilizacional, numa perspectiva da construção de uma sociedade mais justa e um mundo mais livre e mais pacífico.
A OTC constitui-se numa Organização que, embora não seja do âmbito sindical, se ocupa das condições laborais dos trabalhadores científicos, num sentido lato, nelas incluindo não só o pessoal investigador e docente investigador, a OTC esteve na origem da elaboração do 1º estatuto de carreira de investigação em Portugal após 25 de Abril de 74, mas também o pessoal técnico e auxiliar de investigação que, em Portugal, ainda não tem qualquer estatuto profissional específico, que reivindicamos.
Foi-nos feito o desafio de falar sobre liberdade académica e tentaremos apresentar aqui alguns aspectos de como se pratica em Portugal, principalmente nas instituições de ensino superior, que conheço melhor.
Sem me estender muito em termos históricos, a expressão “liberdade académica” apenas faz sentido em Portugal desde 25 de Abril de 1974.
Antes, Portugal tinha um sistema científico muito pequeno, atrasado, sem massa crítica, onde, em certas áreas científicas, os poucos que possuíam um Doutoramento o tinham adquirido no estrageiro. Em termos de liberdade académica, nem vale a pena falar, uma vez que esta pura e simplesmente não existia.
Antes de Abril de 1974 a realidade incluía afastamentos políticos de académicos, obrigados ao exílio, a presença de informadores e denunciantes da polícia política no interior das instituições, envio precoce de estudantes considerados suspeitos de subversão para o serviço militar e para a guerra em África.
Se trago aqui memórias desses tempos é porque as nossas democracias parecem caminhar em sentidos inquietantes.
A liberdade académica pode ser encarada sob vários ângulos:
A liberdade de ensinar e de aprender está prevista na Constituição portuguesa.
No entanto, recentemente, um professor de nacionalidade russa da Universidade de Coimbra (UC) foi afastado pelo facto de alguns estudantes de origem ucraniana denunciarem uma suposta divulgação de “propaganda pró-russa”.
Entretanto, a UC emitiu um comunicado no qual se assume como “uma instituição profundamente comprometida com os valores europeus e totalmente solidária com a Ucrânia no contexto da agressão russa“. Uma intervenção bizarra no contexto da autonomia académica.
Um debate promovido por estudantes de Relações Internacionais na Universidade da Beira Interior foi proibido nas instalações da Universidade por versar o tema do Sahara Ocidental, após a direcção da instituição receber uma carta da embaixada de Marrocos. A direcção da academia a sujeitar-se a pressões exteriores?
A liberdade de investigar, em princípio, existe. Quem tiver uma posição estável na carreira pode escolher livremente o objecto da sua pesquisa.
Mas, recentemente, um professor da Universidade do Minho, ao escrever uma tese na área económica onde analisava a interacção de determinada empresa com o Estado, defendendo que tinha sido pouco transparente, está agora sujeito a um processo por difamação.
De um outro prisma, a liberdade de investigar está fortemente condicionada pelo quase inexistente financiamento de base das instituições e pelos modelos de contratação de investigadores para as instituições.
Em primeiro lugar, o modelo de financiamento das instituições, que no âmbito da investigação se traduz quase exclusivamente no regime competitivo com uma taxa de aprovação de projectos da ordem de 5% ou menos, com calendários em que a previsibilidade de abertura não existe. A este regime acresce um financiamento de base de funcionamento regular que depende da avaliação de desempenho, o que impede os investigadores, bem como as instituições que os acolhem, por um lado, de almejar um melhor desempenho, por outro, de planear a longo prazo planos estratégicos de investigação, mantendo-se no planeamento de projectos de curta duração a dois-três anos.
Em Portugal uma parte significativa dos fundos para a investigação (40% no OE 2024) são provenientes de fundos europeus. Estão sujeitos a aprovação os que se enquadram nas prioridades definidas em Bruxelas. Quem disse que são as prioridades da economia portuguesa ou da sua necessidade de desenvolvimento?
Em segundo lugar, a precariedade laboral, que é uma realidade esmagadora para os investigadores em Portugal. Em Portugal, a esmagadora maioria dos investigadores têm um vínculo laboral precário (são cerca de 70%). Não é possível manter uma verdadeira liberdade académica se não houver segurança de emprego, estando-se ao sabor de um parecer de um coordenador de equipa, de um director de centro de investigação e em última análise, do Reitor ou do Director do Laboratório. Em algumas instituições a sua condição precária não lhes permite estar representados e ser eleitos para órgãos da instituição. Em muitos casos não se sentem em condições de se sindicalizar.
Mas também os mecanismos de exercício do poder e as hierarquias podem, de facto, condicionar fortemente a liberdade académica.
Em Portugal, o enquadramento legislativo que condiciona o edifício de governo das Universidades, estabelecido em 2007 (RJIES – Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior) equaciona uma serie de regras que, em nome de uma pretensa maior eficácia na gestão, diminuiu a democraticidade do governo das instituições e abriu caminho à possibilidade de constituição de um regime fundacional que felizmente foi implementado apenas em algumas (poucas) instituições.
A pretensa eficácia de gestão do regime fundacional tem-se traduzido em relações laborais com os investigadores, piores, em mecanismos de contratação precária, que se tornam a regra e não a excepção.
Este quadro legislativo também tornou as instituições menos democráticas, no sentido em que centralizou poderes de decisão, reduziu o número de elementos dos órgãos colegiais, diminuindo a representatividade desses órgãos retirando poderes e competências a alguns e aumentando a capacidade de decisão de órgãos unipessoais, nomeadamente do Reitor.
A par disso vai-se instalando um clima autoritário do qual temos alguns sinais inquietantes, de que o entendimento de liberdade académica está a mudar dentro da Academia, como os três exemplos que apresentei anteriormente. Mas há mais.
Em Maio de 2024, na Universidade de Lisboa, na sequência de um protesto pacífico, de solidariedade com o povo da Palestina e pelo fim dos combustíveis fósseis, foi chamada a polícia pelas autoridades académicas para os expulsar. A intervenção policial resultou no uso da força física, com bastonadas, e na detenção de oito estudantes.
Desde Novembro de 2022, a PSP já executou quatro intervenções idênticas em Instituições de Ensino Superior em Lisboa: na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, na Reitoria da Universidade de Lisboa e na Faculdade de Psicologia e Instituto de Educação da Universidade de Lisboa. Em todos os casos a polícia actuou dentro das instalações da Instituição de Ensino Superior a pedido de um responsável da instituição, sem que qualquer perigo ou violência decorresse da acção dos estudantes, criando tais repetições um efeito de banalização de práticas necessariamente excepcionais e atentatórias dos princípios académicos e democráticos.
Em Portugal, após o trauma que representou a ditadura fascista, que não tinha pejo em colocar informadores dentro das Universidades, de entrar com a polícia política e prender professores ou estudantes que considerasse perigosos e subversivos, a Academia tornou-se uma zona “livre de polícia”. O entendimento sempre foi, desde 1974, que a polícia não podia actuar dentro das instalações universitárias. Este entendimento deixou de ser respeitado.
E, quando pensávamos que já tínhamos visto tudo, eis que o Reitor da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), numa conferência inaugural já neste ano lectivo de 2024/2025 (9 de Outubro de 2024) faz declarações absolutamente inacreditáveis. Diz ele: “Eu, quatro vezes por ano, fecho-me com a totalidade dos meus núcleos de curso […] e, à porta fechada com um confidential agreement em que o que lá se passa não é utilizado como fonte, eu sei tudo sobre os professores. Já agora, antes de ser reitor fiz uma amostra de 100% dos meus docentes do quadro da universidade. Sei exactamente o que cada um deles faz, como está quando faltam às aulas, quando fazem batota com as aulas, quando não põe lá os pés, sei tudo de cada um, com este cuidado. Conheço as debilidades da minha própria instituição, no sentido de a fortalecer.” Fim de citação.
Caras e caros colegas,
Há na academia e na sociedade uma inquietante tendência no sentido contrário ao aprofundamento da democracia.
Em Portugal, a principal marca do liberalismo económico, podemos dizê-lo assim, traduz-se na generalização da precariedade laboral dos trabalhadores da ciência.
A par disso, uma visão das instituições que desencoraja a participação dos indivíduos nas tomadas de decisão.
Actualmente a nossa principal tarefa deve ser contrariar fortemente estas duas tendências e é o que procuramos fazer.
Saudações fraternais da OTC e bom trabalho!
Maria Elmina Lopes
Direcção da OTC (Portugal)
3 de Dezembro de 2024
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[*] O Congresso que estivera marcado para 17 de Outubro no Centro CGT próximo de Paris, foi adiado por motivo de força maior, consequência de uma violenta intempérie que se abateu sobre a região causando sérios prejuízos materiais nas instalações daquele Centro.
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VÍDEO DA INTERVENÇÃO DA OTC (Francês)