
96º Conselho Executivo da Federação Mundial dos Trabalhadores Científicos
Pequim-Huzhou, 12-17 de Agosto de 2024
Exposição introdutória (parte 2)*
Elies Molins
O ADN da FMTC
A FMTC é, acima de tudo, uma organização pacifista de cientistas empenhados. Como disse Jean-Paul, a paz está no cerne do nosso ADN. O Projecto Manhattan e suas consequências, causaram profunda preocupação a figuras históricas marcantes como Joliot Curie ou John Bernal, levando-os a procurar uma conjugação de esforços de cientistas para usar as suas capacidades e influência em prol da Paz e da melhoria da humanidade. Todos sonhamos com um paraíso terrestre onde todos usufruam de uma qualidade de vida mínima, com riquezas equitativamente distribuídas, livres de extremismos sociais de classe, e onde vivamos em harmonia pacífica e sustentável com as maravilhas da natureza. O que pode surpreender um observador extraterrestre é que, pela primeira vez na história, a ciência e a tecnologia tornaram esta visão alcançável. O desafio reside agora na forma como nos organizamos.
Efeitos da violência a longo prazo
A violência e as guerras não têm qualquer sentido. Como referi noutra ocasião, os efeitos da guerra perduram durante pelo menos um século após o seu fim oficial. Na semana passada, assisti a um programa de TV sobre a Guerra Civil Espanhola, com o último republicano espanhol sobrevivente de Mauthausen[1]. Ainda hoje, estão a ser escavadas sepulturas da Guerra Civil Espanhola e feitas análises de ADN para identificar familiares. Os descendentes das Brigadas Internacionais, que defenderam a democracia contra o fascismo de Franco, visitam frequentemente os campos de batalha do rio Ebro. Muitos deles eram famosos e conhecidos, como George Orwell e Ernest Hemingway. Pessoalmente, prezo muito fotografias de meu pai com as forças republicanas nos Pirenéus, bem como as suas notas manuscritas da guerra. O fascista Serrano Súñer, cunhado de Franco, faleceu em 2003, mas alguns vestígios dessa época continuam a influenciar partes do sistema democrático – 85 anos após o fim da Guerra Civil de Espanha. Como disse, são precisas pelo menos três gerações para começar a esquecer uma guerra. Aqueles que contemplam o uso da violência devem ter em conta estas consequências ocultas de longo prazo que continuam a afectar a vida de populações inteiras.
Desigualdade
Hoje, lutar para manter privilégios faz ainda menos sentido, especialmente quando a riqueza mundial pode ser suficiente para todos. Um exemplo flagrante desta desigualdade são as vastas somas de dinheiro acumuladas em paraísos fiscais – provavelmente excedendo o montante que circula no comércio global.
Pensamento crítico
Os jovens, muitas vezes desconhecedores da história, são facilmente seduzidos por ideias populistas. Vejo frequentemente queixas sobre impostos elevados e as pessoas concordam sem grande pensamento crítico. É simples compreender que os impostos baixos beneficiam principalmente os ricos e, em locais onde os impostos são mais elevados, a qualidade de vida tende a ser melhor. Um raciocínio falso semelhante é aplicado à imigração. Os benefícios de novas energias e mão-de-obra trazidas pelos imigrantes são ofuscados pela propaganda que se foca em alguns casos criminais isolados. O pensamento crítico é mais essencial do que nunca, especialmente perante a manipulação dos meios de comunicação social e as notícias falsas.
A mudança climática como verdadeiro inimigo comum
Podemos considerar-nos animais inteligentes e, em alguns aspectos, isso é verdade – alcançámos coisas incríveis com as nossas mãos controladas pelo cérebro. O potencial da Inteligência Artificial vem contribuir para isso. Contudo, também precisamos de agir como comunidade inteligente, pois disso depende a nossa sobrevivência. Actualmente, estamos longe desse objectivo. E apesar disso, enquanto comunidade global, não estamos a comportar-nos de forma inteligente. Enfrentamos um inimigo formidável que nós próprios criámos: as alterações climáticas e as suas consequências. Entretanto, continuamos a desperdiçar recursos significativos em armas, guerras inúteis e debates fúteis. A verdadeira ameaça não é um asteróide vindo do céu – já está aqui, escondido nos nossos ar e água.
Parar as guerras
A riqueza que geramos deve agora ser dirigida para objectivos vitais e eminentes. Infelizmente, grande parte dela é desperdiçada na produção de armas e na sustentação de guerras e, em menor medida, em luxos desnecessários e extravagantes. Devemos exigir uma justificação legítima para cada guerra. Suspeito que as razões nunca serão convincentes, pois muitas vezes baseiam-se em agendas subjectivas e ocultas, como o enriquecimento de uma minoria privilegiada. Num conflito, a negociação seria mais benéfica para todas as partes envolvidas e para a comunidade global como um todo. A este respeito, creio que qualquer guerra nos torna a todos culpados por não termos conseguido preveni-la e impedi-la.
Trégua de 50 anos
Uma população de 10 mil milhões de pessoas tem um impacto imenso no nosso planeta, relativamente pequeno. Como cientistas, temos o privilégio de observar a magnificência da natureza. Temos um grande prazer em explorar oceanos, investigar a estrutura atómica dos materiais, desenvolver novos modelos matemáticos e inventar novas máquinas – cada um de nós movido pelas nossas paixões únicas. Mas enfrentamos agora uma tarefa urgente e decisiva: promover o pensamento crítico e persuadir os decisores a dar prioridade ao que realmente importa. Proponho que cessemos a produção de armas e paremos todas as guerras e perseguições durante os próximos cinquenta anos. Durante este período, que todas as nações, sob a coordenação das Nações Unidas, dediquem todos os esforços para inverter as alterações climáticas e as suas consequências.
Risco de extinção de mamíferos num planeta inabitável
Devemos convencer-nos de que a violência nunca deve ser utilizada para resolver disputas, quer no seio das famílias, quer entre nações. Precisamos de reconhecer que produzir mesmo uma arma simples, como uma espingarda, é uma oportunidade perdida para salvar o futuro dos nossos netos. Quero que o meu neto continue a apreciar a beleza das árvores e dos pássaros, e espero que ele nunca nos acuse de não termos feito todo o possível para evitar que a nossa biosfera se torne tão hostil como aconteceu depois do meteorito de Chicxulub[2] ter exterminado os dinossauros. Após este acontecimento, apenas alguns pequenos mamíferos – os nossos antepassados – sobreviveram em grutas há 66 milhões de anos. Se não agirmos agora, dentro de alguns milhões de anos, um insecto inteligente poderá dizer: “Um asteróide matou os dinossauros, mas os mamíferos foram levados à extinção pela insensatez de uma espécie que acreditava ser a mais inteligente do Universo”.
Reinvestir a despesa com armas nos ODS da ONU
A FMTC foi fundada para prevenir a utilização de armas nucleares contra a humanidade – uma missão que, embora ainda não concluída, tem até agora sido bem-sucedida. No entanto, o desafio que enfrentamos hoje é ainda maior. A Federação deve aumentar a sua influência porque estamos convencidos da nobreza da nossa causa. Devemos eliminar a violência a todos os níveis, ensinando às gerações futuras que ela nunca é uma opção, e canalizar todo o poder da ciência e da tecnologia para salvar os ecossistemas da Terra e promover os Objectivos de Desenvolvimento Sustentável.
Eco FMTC e rede
No seio da FMTC, precisamos de trabalhar com maior eficiência e encontrar novas formas de atingir os nossos objectivos. As nossas discussões e documentos não devem limitar-se a intercâmbios entre representantes; devem chegar a todos os membros de cada organização filiada. Além disso, estas organizações devem comprometer-se a utilizar as suas redes para difundir a nossa visão. Há vinte anos, aumentar a consciência global sobre as alterações climáticas parecia uma tarefa impossível. Agora, temos de convencer todos de que é necessária uma acção colectiva urgente. A resposta global à COVID-19 demonstrou que esta unidade é possível e que os decisores só assumirão esta causa quando o público o exigir.
Devemos comunicar de forma mais eficaz e alargada, reunir mais recursos e construir relações com outras associações científicas, governos, ONG’s e grupos empenhados, como jornalistas científicos, redes internacionais de educação, ISCU, INWES-International Network of Women Scientists and Engineers e outros.
Mais recursos humanos e esforços dedicados alimentarão a árvore da FMTC. Uma árvore maior será mais alta, com mais folhas – e como sabemos, as folhas absorvem e sequestram dióxido de carbono, ajudando a manter a saúde do nosso planeta.
Pequim, 12 de Agosto de 2024
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* A exposição obedeceu ao plano seguinte:
– Preâmbulo —Jean-Paul Lainé
– Breve apresentação da FMTC — Jean-Paul Lainé
– Eixos prioritários e actividade — Jean-Paul Lainé
– O Mundo, hoje: ameaças existenciais — Elies Molins
– O futuro da FMTC, o roteiro — Elies Molins
(A intervenção de Jean-Paul Lainé pode ser lida aqui: https://otc.pt/wp/2024/12/30/jean-paul-laine-sobre-a-federacao-mundial-dos-trabalhadores-cientificos/)
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Este artigo encontra-se disponível na página institucional da FMTC na sua versão original em inglês: https://fmts-wfsw.org/2025/01/opening-of-the-96ec-wfsw-elies-molins/?lang=en
Tradução do inglês: Frederico Carvalho
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N.B. As notas abaixo são da responsabilidade da OTC
[1] Mauthausen-Gusen foi um complexo de campos de concentração construídos pela Alemanha nazi na Áustria, situado a cerca de 20 km da cidade de Linz, Inicialmente consistindo apenas num pequeno campo, transformou-se num dos maiores complexos de trabalho escravo da Europa ocupada pela Alemanha durante a II Guerra Mundial. Os prisioneiros destes campos eram usados para o esforço de guerra alemão, trabalhando em pedreiras e fabricando armas, munições, peças de aviões e minas, em regime de trabalho forçado que causou centenas de milhares de mortos.
[2] Em Março de 2010, no seguimento de extensa análise das provas existentes que consistem de dados obtidos ao longo de 20 anos abrangendo os campos da paleontologia, geoquímica, modelação climática, geofísica e sedimentologia, 41 peritos internacionais de 33 instituições reviram os dados disponíveis e concluíram que o impacto do meteoro de Chicxulub desencadeou as extinções em massa incluindo a dos dinossauros. (https://pt.wikipedia.org/wiki/Cratera_de_Chicxulub)