
A ÁGUA E OS CONFLITOS
Josette Rome-Chastagnet
Federação Mundial do Trabalhadores Científicos
O mundo enfrenta um enorme desafio: o da urgente redefinição da relação da humanidade com o planeta.
Difundir a consciência desta situação através do conhecimento, permite desmontar ideias preconcebidas, respostas simplistas, e identificar obstáculos que impedem outras análises e soluções.
Aqui reside a meu ver a importância do nosso encontro.
Agradeço-vos, pois, a vossa curiosidade.
A água é o primeiro espelho do homem que pensa.
A água é uma questão social desde que existem grupos humanos: o poder de decisão no que respeita à propriedade, ao acesso e uso da água é uma questão fundamental. Quem detém e controla esse poder, domina a manutenção da vida sob todas as suas formas.
É por isso que a questão da água é uma questão estratégica planetária.
O planeta corre o risco iminente de ficar sem água doce. Mais de mil milhões de pessoas não têm acesso a água potável e este número deverá duplicar até 2025. Já hoje, em todo o mundo, morrem de sede num ano 15 milhões de pessoas.
A água doce, o clima, os sistemas biofísicos e socioeconómicos, estão de tal forma interligados que uma mudança de um dos factores arrasta mudanças em outros; a disponibilidade e a qualidade da água, o seu papel nos conflitos, são os principais constrangimentos exercidos sobre as sociedades e sobre o meio ambiente, que se acentuam com as mudanças climáticas.
Atrevamo-nos a romper com o senso comum confrontando algumas ideias vulgarmente aceites.
Primeira questão: A água não é escassa
1 – A quantidade de água é constante desde há 4400 milhões de anos em ¾ da superfície terrestre, mas o que é água doce mal chega a 3% daquela água total: 2,2% é gelo polar; cerca de 0,6%, são águas subterrâneas, cerca de 0,02%, águas superficiais (rios, lagos,).
2 – A água é um recurso renovável, o seu ciclo, determinado pelo sol, é imutável e dinâmico.
Move-se em um volume global que muda de forma. Este volume está agora em diminuição nas massas de gelo e na precipitação de neve, no subsolo e na biomassa mas cresce nos oceanos; a subida do nível do mar até 2100 poderá atingir 20 a 40 cm. Isto deve-se ao aquecimento global acelerado, agravado pela acção humana pela primeira vez na história do planeta,
Se a água doce é renovável, os seus recursos não são ilimitados e, sobretudo, estão mal repartidos.
Nove países concentram 60% dos recursos globais (Brasil, Rússia, EUA, Canadá, China, Indonésia, Índia, Colômbia e Peru).
O problema está em que reduzimos o acesso à água doce ao escolher opções de gestão, não sustentável e injusta. Envenenamo-la com mercúrio, nitratos, cortamos árvores, criamos desertos. Emitimos gases de efeito estufa em quantidades tais que os glaciares fundem a uma taxa alarmante, escoando-se principalmente para os mares.
Não respeitamos os direitos da água, que é ser livre, em primeiro lugar, e ser tratada após ser usada.
Só a água fóssil não é renovável à escala do tempo humano. A Líbia, a Arábia Saudita e a Argélia, exploram 80% da água fóssil do mundo! Ora essa exploração conduzirá à sua exaustão no prazo de algumas décadas. Mas como proibi-lo a populações que estão desesperadamente necessitadas de água? Mas quanta inconsequência também, para lá da satisfação de necessidades básicas! (A Líbia bombeia água pura retida há 40 000 anos para abastecer um enorme curso de água artificial que se estende por 4000 km numa tubagem de 4 m de diâmetro; no Saará é praticado o bombeamento abusivo de aquíferos cuja taxa de renovação média se estima em cerca de 0,001% da massa total de água por cada cem anos; o tempo necessário para uma renovação total seria próximo de 100 mil anos. Ao ritmo a que a água contida no aquífero subterrâneo é extraída actualmente este esgotar-se-ia em cerca de 500 anos.
A fábrica da IBM de Corbeil Essones bombeia água fóssil.
O ritmo da exploração da água fóssil dos aquíferos subterrâneos não é compatível com o nível de utilização a que são sujeitos para satisfazer necessidades criadas pela actividade humana. Assim essa água deve ser considerada como um recurso não renovável que há que utilizar com parcimónia e bom senso.
O limiar de escassez de água doce para as populações é estimado em 1000 m3 de água renovável por pessoa e por ano: 1300 milhões de pessoas estão já nesta situação. Na região do Mediterrâneo, vários países atingiram o nível de escassez absoluta fixado pela ONU em 500 m3 por habitante e por ano.
Segunda questão: a desigualdade no acesso à água doce não é uma fatalidade.
A escassez de água doce deve-se a utilizações abusivas e predatórias. Não é o número de seres humanos que ameaça os equilíbrios naturais mas os seus modelos de consumo. O volume de água doce disponível passou de um valor médio de cerca de 12 900 m3 per capita e por ano em 1970, para 6800 m3 em 2004. Ao ritmo actual de crescimento da população e de evolução do consumo, esse número cairia para 5.000 m3 em 2025.
Por que razão?
Nos últimos 100 anos, o consumo de água foi multiplicado por 7, o que corresponde a uma taxa de crescimento que é duas vezes superior à taxa de crescimento da população, e com grandes disparidades: em média, um ser humano dispõe em África de 20 litros de água por dia para beber, cozinhar e lavar-se; na Europa do Norte Europa esse valor é de 300 litros e é de 700 litros na América do Norte.
- As disparidades entre a cidade e o campo perduram: 84% dos seres humanos sem acesso a água potável vive em zonas rurais.
- A agricultura, tal como é actualmente praticada, consome 70% da água doce mundial, com uma perda média por evaporação de 40%!
- O desperdício de água estimado atinge 66% nos EUA, apenas 25% em África. Entretanto nas cidades, a tomar como exemplo, de Tóquio, Lausanne, Oslo ou Estocolmo, as perdas são mantidas a um nível de 3%.
- Um campo de golf de 18 buracos consome em média 5000 m3 de água por dia, volume equivalente às necessidades de consumo quotidianas de 12000 habitantes.
- A mercantilização da água levou à promoção do consumo global de água engarrafada, que aumentou 60% de há 12 anos a esta parte. Nos Estados Unidos as vendas triplicaram em 10 anos, alimentando um mercado de 11 mil milhões de dólares. A água engarrafada é 100 a 1000 vezes mais cara do que a água da torneira (200 vezes, em Paris).
Não há pois fatalidade, porque o engenho humano é capaz de repartir os recursos de forma equitativa.
Por muito que seja difícil dirigir o movimento das nuvens, está todavia ao nosso alcance orientar o movimento das águas no seu percurso terrestre levando-a a fluir de acordo com as curvas de nível.
Na implementação do acesso à água para todos, não somos capazes de estabelecer pontes entre o que é da filosofia e o que é da economia ou muito pouco temos isso em conta. Por falta de meios; por falta de coragem para pôr em causa as nossas escolhas actuais; por receio dos constrangimentos; ou … por falta de sentido de humanidade.
A UNESCO identificou a falta de vontade política como o obstáculo principal a vencer para garantir o acesso a água potável para todos, em qualquer lugar do mundo.
No entanto, há exemplos de progressos significativos: na China, 89% da população já tem acesso a água potável, contra 67% em 1990, na Índia, é 88% da população que tem agora acesso, contra 72%, então.
Terceira questão: será o século 21 o século das guerras pela água?
A água é objecto permanente de conflitos, desde o início do mundo.
Rivalidade, rival, têm origem no latim “rivalis” termo derivado de “rivus”, “rio”, curso de água.
Os riscos de violência estão em crescendo porque há uma competição cada vez mais forte para assegurar este recurso vital e servir-se dele como instrumento, de pressão.
No plano estratégico, bater-se por dispor de água é um absurdo: não se fazem crescer as suas reservas guerreando um vizinho, a menos que se tome conta de toda a sua bacia hidrográfica e se esvazie dos seus habitantes.
A água é um recurso natural que se movimenta rapidamente, e por isso, ao contrário de muitos outros, está desacoplado da geografia política. A água ignora fronteiras e atravessa-as sem passaporte. É acima de tudo um recurso partilhado que requer uma gestão transfronteiriça comum. Países que partilham a água de uma mesma bacia hidrográfica estão “condenados” a cooperar se não querem bater-se pelo seu controlo. Água partilhada pode ser um trunfo de paz.
Há 265 bacias hidrográficas internacionais, rios, lagos e aquíferos subterrâneos partilhados por vários países. Em conjunto representam 60% das reservas de água e nas áreas respectivas vive 40% da população mundial. A sua gestão equitativa depende do relacionamento entre os países vizinhos. Um exemplo: a bacia do Danúbio envolve 18 países que cooperam num quadro geopolítico complexo.
A única verdadeira guerra de água deu-se na Mesopotâmia há 4500 anos, ao passo que em matéria de cooperação se conhecem 3600 tratados.
Nos últimos 50 anos, em 1830 desentendimentos recenseados, dois terços foram resolvidos num quadro de cooperação envolvendo consultadoria científica. Duzentos tratados foram assinados.
Uma base de dados mundial mostra que se os conflitos violentos sobre a água são raros, as interacções pacíficas abundam. A água, mais do que ser gerador de conflitos, é um recurso único de união das populações. Parece que o facto de ser algo de vital e simbólico, trava os impulsos que levariam a matar por ela.
A escassez não é uma fonte potencial de conflitos violentos na maior parte dos países desenvolvidos que dispõem de mecanismos de adaptação. Os riscos de confrontação estão muito mais presentes nos países em desenvolvimento, onde as capacidades técnicas, apoios sociais e recursos financeiros são mais limitados.
Alguns exemplos:
• A Espanha sofre de escassez de água: Catalunha e Aragão travam uma batalha política feroz pelo controlo das águas do rio Ebro, em total contradição com o “Plano Hidrológico Nacional” espanhol.
• O Médio Oriente é a região onde os riscos são maiores. O Líbano, Israel, a Jordânia, a Síria e a Palestina disputam entre si o controlo do Jordão, ao qual assenta bem o nome, em hebraico, de “rio de tristeza” A água é o coração do conflito palestino-israelita, e é uma questão de primeira importância na resolução do conflito. As águas dos territórios ocupados são consideradas como recurso estratégico sob controlo militar. A Turquia, que controla, a montante, as águas dos rios Tigre e Eufrates está em posição de poder usar a água como uma arma, que lhe permite secar as torneiras dos seus dois vizinhos ao sul, Síria e Iraque.
• As águas do rio Nilo devem ser partilhadas por 10 estados! Egipto, Sudão, Etiópia e Quénia vivem numa situação de “hidro-conflictualidade”. A Etiópia, onde o Nilo Azul tem a sua nascente, fornece 86% do caudal do rio de que utilizava apenas 0,3%! Para se desenvolver, este país constrói grandes barragens, causando preocupação no Egipto onde 95% da população vive nas margens do rio Nilo, e no Quénia que vê desaparecer o caudal que alimenta o Lago Turkana.
• “Fonte de vida”, o rio Colorado é causa de tensões entre os Estados Unidos e o México. O rio é a única fonte de água para 27 milhões de pessoas no Oeste americano. O grau de utilização das águas do rio, pelas grandes cidades e pelos agricultores do sudoeste dos Estados Unidos, é tal que impede que um caudal regular alcance a foz no golfo da Califórnia, em território mexicano. O México assinou com os Estados Unidos um tratado que garantiria que 9% do caudal do Colorado atingisse a foz do rio. Na realidade apenas 4% lá chega. A consequência desta situação é que o delta do rio praticamente desapareceu e deixou de haver peixe nessa região onde habitualmente pescavam os índios mexicanos Cucapás.
• Na China, atormentada pela escassez e poluição da água doce, o Tibete, verdadeiro “castelo de água da Ásia”, assume particular importância. A Índia inquieta-se por ver uma parte das águas das nascentes do Bramaputra e do Indo desviadas por Pequim.
Onde quer que seja escassa, a água é susceptível de acentuar velhas rivalidades históricas. Assim, o Vietnam preocupa-se com os projectos de desenvolvimento do Mekong superior, por trás dos quais Hanói vê perfilar-se o espectro da hidro-potência chinesa.
Um exemplo positivo recente: três países, dois lagos, um mesmo futuro.
Apesar de velhas desavenças entre os três estados ribeirinhos – Albânia, Grécia e Macedónia – a assinatura do Acordo para o Desenvolvimento Sustentável da região dos lagos Prespa é o primeiro exemplo de uma área transfronteiriça protegida no Sueste da Europa.
É neste contexto que trabalhamos na UNESCO no programa ” do conflito potencial ao potencial de cooperação“.
Quarta questão: seremos impotentes para mudar a realidade?
Começarei por mencionar a votação histórica de 28 de Julho de 2010, nas Nações Unidas.
Após 15 anos de lutas e debates, a Assembleia Geral das Nações Unidas, declarou o direito à água potável, limpa e segura, como direito humano fundamental, indispensável ao pleno exercício do direito à vida e de todos os direitos do Homem.
O resultado, obtido com 122 votos favoráveis e 41 abstenções (incluindo Canadá, EUA, Turquia, Israel, Holanda. E outros), confere legitimidade ao exercício desse direito.
De acordo com as Nações Unidas, o desafio que agora está colocado, é o de garantir que os governos integrem a política da água na sua agenda política como prioritária, ao mesmo título que a economia, a energia ou a segurança.
Importância da solidariedade.
A água tem o poder de unir as pessoas através de mil e um projectos que ajudam todos e cada um a melhorar as suas vidas. Quem não conhece uma associação, uma colectividade, que ajude a ter acesso a água? Quem contribui para um projecto de perfuração e vê a alegria que explode quando a água jorra do solo, não mais o esquecerá.
Finalmente, o papel da educação.
Em todos os continentes há mulheres jovens e adultas que são forçadas a gastar entre 4 a 8 horas por dia em busca de água, e que não têm acesso à educação. Esta é uma das causas da persistente alta taxa de analfabetismo entre as mulheres.
A ciência tornou-se um elemento chave da cultura mundial, nomeadamente pela difusão do conhecimento acessível através da Internet. Como situarmo-nos neste espaço novo onde, simultaneamente, um em cada cinco adultos americanos diz que o Sol anda à volta da Terra!
É necessário lutar contra o analfabetismo científico que se expande. Desde logo porque mina a capacidade do ser humano de participar no processo democrático. Ao contrário, a alfabetização científica permite que os cidadãos se reapropriem dos assuntos do mundo. É então uma questão de democracia e de liberdade, seguir um caminho em que, pela ciência, há uma parcela de poder que a todos é transmitida.
É nesta perspectiva que devemos olhar a geopolítica da água na diversificação das ajudas e dos laços. E levar os nossos governantes a por em prática tudo aquilo a que repetidamente se comprometem, para que se torne exequível o que é desejável que seja feito.
E é URGENTE, se queremos caminhar no sentido de um avanço civilizacional e não para o desaparecimento da vida sobre a Terra. Terra que, ela, continuará a existir. A Terra que experimentou profundas transformações e terríveis cataclismos ao longo de cinco mil milhões de anos. E a vida sobre a Terra? E nós, seres humanos que ocupamos o planeta numa escala temporal que é uma pequeníssima fracção daquele passado, de não mais do que 0,004%?
A sociedade humana tem a responsabilidade de agir.
Creio que a utopia pode ser fonte de motivação, como escrevia Antoine de Saint-Exupéry “Se queres construir um barco, não juntes homens para trazer madeiras, preparar ferramentas, distribuir tarefas, facilitar o trabalho, antes ensina às gentes a nostalgia do mar infinito.”
Conferência de Josette Rome-Chastagnet, bióloga, proferida em 25 de Janeiro de 2012, na UNESCO, em representação da Federação Mundial do Trabalhadores Científicos