Colóquio “Políticas Científicas 2019”

Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, 4 de Abril de 2019

SOBRE O SISTEMA CIENTÍFICO E TÉCNICO NACIONAL

Frederico Carvalho

Aspectos gerais

Por regra distinguem-se no SCTN quatro sectores de execução das actividades ditas de Investigação e Desenvolvimento Experimental (I&DE), conforme definição do Manual de Frascati. Trata-se dos sectores referidos abreviadamente por: “Empresas”, “Estado”, “Ensino Superior” e “Instituições Privadas sem Fins Lucrativos (IPs/FL)”. Os dados estatísticos relativos àquelas actividades, no nosso país, são divulgados pela Direcção-Geral de Estatísticas de Educação e Ciência (DGEEC) que publica os conhecidos Inquéritos ao Potencial Científico e Tecnológico Nacional.

As chamadas “Outras Actividades Científicas e Técnicas (OAC&T)”, definidas no já referido Manual, não são, ao que se sabe, objecto de inquérito sistemático, mau grado a sua grande importância social, económica e cultural. Recordo a referência que lhes é feita num relatório da OCDE sobre Políticas Nacionais de Ciência e Tecnologia, relativo a Portugal, que aponta como uma séria fraqueza do SCTN, o fraco peso entre nós dessas actividades, em comparação com a I&DE, quer no toca a investimento quer a recursos humanos.

Tem interesse assinalar que durante muitos anos a contribuição das IPs/FL para a despesa nacional com I&DE (a chamada DIDE, nacional) alcançava valores anormalmente altos quando comparados com os valores correspondentes de outros países da União Europeia disponíveis no Eurostat. A anomalia resultava de serem incluídos naquela categoria (IPs/FL) numerosos centros de investigação ligados a instituições de ensino superior, financiados por fundos públicos e delas estreitamente dependentes. A situação foi formalmente rectificada em 2012 o que levou a uma quebra de série reflectida nos dados de 2013, ano em que houve uma reafectação sectorial de várias IPs/FL ao sector Ensino Superior, não deixando por isso de manter um estatuto que lhes dá certas vantagens, por exemplo permitindo-lhes eximir-se a respeitar certas obrigações contratuais relativamente ao pessoal investigador ao seu serviço.

Distorções

No que respeita à distribuição entre sectores, quer da despesa, ou investimento, se preferirem, quer da força de trabalho científico, o SCTN apresenta um conjunto de distorções que o distinguem notoriamente do que acontece em outros países, designadamente, países membros da União Europeia. São distorções de algum modo impostas pelo perfil da estrutura produtiva nacional, ainda pouco exigente no que toca à integração de conhecimento tecnológico avançado, por um lado, e, por outro lado, à fragilidade ou mesmo inexistência na Administração Pública de infra-estruturas técnico-científicas de suporte ao desempenho das missões próprias dum Estado moderno, em domínios tão diversos como o ordenamento do território, a protecção civil, a segurança alimentar, a avaliação e controlo da exploração de recursos naturais, a manutenção ou a fiscalização da segurança de infra-estruturas vitais, energia, transportes e comunicações, e em muitos outros domínios. Nesta segunda vertente da questão que respeita à existência e operacionalidade de infra-estruturas técnico-científicas públicas, a de facto inexistência de uma política científica nacional tem pesadas responsabilidades.

O Quadro seguinte mostra dados estatísticos comparados relativos a despesa com I&DE e a recursos humanos afectos às actividades de investigação e desenvolvimento experimental, para Portugal, Espanha e para o conjunto dos países membros da União Europeia a 28. Os dados são os constantes dos quadros publicados pelo Eurostat. Interessa notar que os quadros estatísticos do Eurostat reproduzem os números comunicados pelas autoridades nacionais de cada país membro e têm por isso o mesmo grau de confiança que aqueles. Todos os valores são respeitantes a 2017 e, em alguns casos, designadamente Portugal, são provisórios.

O valor da DIDE nacional em percentagem do PIB, que é idêntico ao correspondente a 2013, mantem-se significativamente abaixo da média europeia mas está acima do valor estimado para Espanha. A singularidade mais notável do nosso país surge à vista quando se compara a despesa do sector Estado com a despesa do sector Ensino Superior. Assim, na UE, o sector Ensino Superior despende o dobro do sector Estado quando em Portugal aquela despesa é 8 vezes superior à daquele. Como entre nós o sector Estado se identifica no essencial com o conjunto dos laboratórios públicos ou Laboratórios do Estado, pode mostrar-se que esta singularidade corresponde a uma situação bem conhecida que é a da progressiva degradação dos Laboratórios ao longo das duas últimas décadas, quer no que respeita a financiamento quer no que toca a recursos humanos. Na verdade, se recuarmos até ao ano de 1999, a despesa em percentagem do PIB no sector Ensino Superior era apenas 1,4 vezes superior à despesa respectiva do sector Estado. A despesa com I&DE do sector Estado a preços correntes decresceu de 228 M€ em 1999 para 142M€ em 2017. No sector do Ensino Superior, a despesa cresceu de 314M€ para 1100M€, no mesmo intervalo de tempo[1].

QUADRO 1

P(ortugal) U(nião)E(uropeia a 28) E(spanha)

Interessa agora olhar para números respeitantes a recursos humanos, referidos, em todos os casos a “Equivalente a Tempo Integral” (ETI). De novo, no já referido Quadro, comparam-se valores relativos a Portugal e a Espanha, entre si e em relação a valores médios da UE a 28.

Assim, no que toca ao número de investigadores em percentagem da população activa, o nosso país está próximo, até um pouco acima, do mesmo rácio para a União Europeia. Quando comparado com Espanha aquele índice é cerca de 50% superior. Vejamos agora o que se passa com a distribuição dos efectivos de pessoal investigador ETI pelos diferentes sectores de actividade. Eis que de novo os números dão sinal da distorção, entre sectores, existente.

Assim, no sector do Estado aquele rácio é 3 vezes inferior ao valor correspondente quer para Espanha quer para a União Europeia. Por sua vez o rácio Investigadores ETI-população activa, no Ensino Superior, é quase duas vezes superior ao espanhol e cerca de 80% acima do valor do mesmo rácio para a União Europeia. No sector das Empresas a situação aparece mais equilibrada o que não deixa de ser surpreendente. No caso das Empresas, salvo melhor opinião, pode duvida-se do rigor com que são aplicados os critérios que devem definir como actividade de I&DE uma determinada actividade.

Também no que respeita a recursos humanos qualificados se vem degradando de forma sustentada a situação dos Laboratórios do Estado. Assim entre 2001 e 2017, o pessoal investigador ETI, activo nos Laboratórios, passou de 3600 para 1450, verificando-se uma aceleração na queda destes efectivos a partir de 2008 (Eurostat e DGEEC).

Uma outra faceta da situação do SCTN que, segundo as estatísticas oficiais, o distingue marcadamente da que se verifica na União Europeia diz respeito ao pessoal não-investigador activo no sistema. O pessoal não-investigador compreende todos os trabalhadores incluídos nas estatísticas internacionais como “Pessoal de I&DE” (em inglês, “Research& Development Personnel” que não é “Investigador” (“Researcher”). Na nomenclatura adoptada pela OTC este pessoal é designado por “Pessoal de Apoio à Investigação”.

No Quadro seguinte (Quadro 2), são apresentados os rácios “pessoal investigador/pessoal de apoio à investigação” no nosso país, em Espanha e na União Europeia a 28, para os vários sectores de actividade e o valor global para o conjunto dos sectores. Olhando os valores inscritos no quadro, é notória a escassez de pessoal de apoio em todos os sectores de actividade do SCTN. Destaca-se o sector do Ensino Superior em que, perdoe-se a formulação, cada elemento de apoio carrega 14 investigadores! Por comparação, em Espanha mas também no conjunto da União as situações são razoavelmente equilibradas em todos os sectores.

Trabalhando com os factores de correcção estimados a partir dos dados estatísticos oficiais que permitem passar de trabalhadores ETI para número de pessoas, reconhece-se que para nos colocarmos na situação correspondente à média da União Europeia haveria que recrutar para o SCTN cerca de 20 000 unidades de “Pessoal de Apoio à Investigação”.

QUADRO 2

Rácio Investigador (ETI) / Pessoal de apoio à investigação (ETI)

P(ortugal), U(nião) E(uropeia) a 28, E(spanha)

Como é evidente, a despesa com as actividades de investigação e desenvolvimento em qualquer sistema nacional deve depender do número de investigadores activos no sistema. O valor do rácio DIDE/número de investigadores ETI é um termo de comparação útil entre sistemas.

O Quadro 3 apresenta os valores do referido rácio para Portugal, Espanha e União Europeia a 28.

QUADRO 3

DIDE intramuros, total, por sector (kM€) e per capita de Investigador (k€)

P(ortugal), U(nião) E(uropeia) a 28, E(spanha)

No cálculo dos valores inscritos no Quadro tomaram-se os dados estatísticos oficiais relativos a 2017, disponibilizados pelo Eurostat. Para o SCTN no seu conjunto a despesa per capita de investigador ETI é quase três vezes inferior à média da União Europeia, e cerca de 55% do correspondente valor para a vizinha Espanha. Um cálculo simples permite dizer que tendo em conta o número de investigadores ETI activos no nosso país a DIDE nacional deveria ser aumentada em cerca de 2000 milhões de Euros para que o rácio acima referido igualasse o espanhol ou em cerca de 4600 milhões para atingir o valor médio da União Europeia a 28.

Temos um sistema “barato” com uma produtividade científica que pode por isso mesmo surpreender. A questão está nas áreas de trabalho escolhidas e na distribuição do esforço desenvolvido pelos vários tipos de actividades compreendidas na designação Investigação e Desenvolvimento Experimental, a saber, a investigação fundamental, livre e orientada, a investigação aplicada, o desenvolvimento de processos e produtos. As exigências no que respeita a infra-estruturas e equipamentos, a materiais e consumíveis, apoio técnico especializado, em particular para a construção de protótipos, são muito diferentes em diferentes áreas de trabalho. Pode dizer-se que certas áreas estão vedadas a um sistema debilitado como o nosso, onde faltam, por exemplo, oficinas bem equipadas e operários especializados. Neste aspecto a situação era há duas décadas atrás consideravelmente melhor do que é hoje.

Qualquer alteração significativa da situação actual requere um considerável aumento dos recursos financeiros alocados às actividades de I&DE. A generalidade dos agentes empenhados nestas actividades têm perfeita consciência disso. Os órgãos de poder executivo e legislativo também têm disso noção mais ou menos exacta ou mais ou menos difusa. Entretanto repete-se a toda a hora que não há mais recursos disponíveis, que não há onde ir buscá-los. Entretanto, sabe-se que nos 4 anos de 2014 a 2017 o financiamento público das actividades de I&DE ascendeu a cerca de 4 mil e 700 milhões de euros. Nesse mesmo intervalo de tempo, foram transferidos de Portugal para “offshores e territórios com tributação privilegiada”, para utilizar a designação do Ministério das Finanças, ou seja, para territórios onde os impostos são quase nulos ou mesmo nulos, cerca de 23 mil e 200 milhões de euros de riqueza produzida em Portugal ou obtida pelo país devido a transacções, riqueza transferida para o estrangeiro, com prejuízo para o Estado e os cidadãos residentes que a geraram [2].

Ao dizer isto recordo uma passagem do breve discurso da jovem Greta Thunberg, em Katowice, na Polónia, onde disse: “(…) if the solutions within the system are so impossible to find then maybe we should change the system itself”.

Obrigado pela vossa atenção.

[1] A despesa com I&DE do ex-Instituto Tecnológico e Nuclear que transitou do sector Estado para o sector Ensino Superior em 2012, situava-se em média entre 10 e 15 M€ anuais.

[2] Dados da Autoridade Tributária, disponíveis na internet.