A ciência enquanto bem público
O ensino superior e ciência em Portugal tem sido palco de um crescimento continuado ao longo das últimas décadas. Este crescimento traduziu-se, por exemplo, num importante aumento dos recursos humanos ativos, com destaque para o crescente número de doutoramentos, no aumento muito notável da produção científica, traduzida em artigos publicados, e também na capacidade de captação de financiamento internacional. Contudo, este crescimento ocorreu num quadro de subfinanciamento crónico das instituições e de crescente precarização laboral. Entretanto, os indícios de afunilamento das áreas de investigação; de transferência parcial das responsabilidades de investimento em ensino superior e ciência para o setor privado; de insuficiências na democratização das instituições académicas e científicas; e de eternização de situações de precariedade deve ser objeto de reflexão e intervenção. Os/as docentes, investigadores/as e as organizações aqui reunidas não renunciam a participar no debate e numa intervenção responsável nos processos e decisões sobre política científica e sobre os seus impactos nas pessoas, instituições e no sistema científico como um todo.
Em primeiro lugar, cumpre afirmar que uma orientação das práticas científicas para a “excelência”[1] e para a “aplicação do conhecimento” não pode significar uma concentração de recursos que leve, a prazo, ao desaparecimento do trabalho desenvolvido por vastas áreas do conhecimento, um processo particularmente notório nas ciências sociais e humanas, mas transversal a todas as áreas do conhecimento, e à inexistência de retorno de uma parte substancial do investimento público realizado ao longo das últimas décadas em Portugal. Reconhecendo-se a importância de práticas científicas conducentes à aplicação do conhecimento na resolução, a mais curto prazo, de problemas concretos, reconhece-se também que esta importância não poderá aniquilar a produção, a mais longo prazo, de conhecimento fundamental, que constitui o cerne de um subsequente desenvolvimento de investigação aplicada. Reconhecendo-se as vantagens de um crescimento da relação entre as instituições científicas e empresas, nomeadamente no que diz respeito à translação de conhecimento em inovação, reconhece-se também que uma redução da política científica nacional a tal desiderato, esquecendo tanto a investigação fundamental, em todas as áreas do conhecimento, como o compromisso social, corrói, a prazo, a construção científica e de um pensamento crítico, assim como a sustentabilidade e coesão social e ambiental. É, por isso, central que a política de ciência em Portugal se afaste de visões redutoras do que é a ciência e garanta uma ciência com futuro através de um financiamento de projetos de investigação e das instituições executoras dessas atividades distribuído de acordo com uma estratégia global de longo prazo, não decorrente de potenciais impactos imediatos e envolvendo todas as áreas do conhecimento. Igualmente importante, é uma representação de todas as áreas científicas nos lugares de decisão da principal agência de avaliação e financiamento em Portugal, a Fundação para a Ciência e a Tecnologia. Finalmente, urge a aplicação de medidas de igualdade de género nos lugares de decisão, bem como o alargamento da representação das diversas partes interessadas, incluindo organizações sindicais e associações científicas.
Em segundo lugar, sublinha-se que a política científica requer estabilidade e previsibilidade dos mecanismos de financiamento para além dos ciclos políticos e o estabelecimento e aplicação de critérios e procedimentos de avaliação justos, desburocratizados e transparentes. Sublinha-se que taxas de sucesso em concursos públicos altamente competitivos a rondar os 10% por limitações orçamentais são impeditivas do cumprimento do anteriormente exposto. É, assim, urgente um crescimento do investimento público em pessoas, projetos e instituições, um crescimento que permita ultrapassar as condições de subfinanciamento crónico deste sector, que permita articular os diferentes tipos de investimento, promovendo a concretização de estratégias de médio e longo prazo. Esta concretização necessita, pois, de um reforço orçamental.
Reitera-se, ainda, que só existe política científica com pessoal científico integrado em carreiras estáveis, alicerçadas em princípios que assegurem a promoção da qualidade e a melhoria contínua das instituições. Assim, é urgente ultrapassar o atual modelo de eterna precarização do trabalho científico, dignificando a carreira docente e de investigação e integrando cientistas no sistema de ensino superior, com um corpo docente muito envelhecido, e no sistema científico, que permanece amputado de pessoas integradas nestas carreiras. O recente reforço do emprego científico para doutores/as, apontando para a alteração de um modelo baseado em sucessivos contratos de bolsa, por outro assente em contratos de trabalho a prazo, sendo meritório, é amplamente insuficiente. Este modelo eterniza a corrida de investigadores/as doutorados/as a concursos para contratos de trabalho sempre a prazo e condena todos/as os/as não doutores/as à inadequada posição de investigadores/as ou técnicos/as com bolsa, em clara desqualificação e desrespeito pelas funções desempenhadas. Paradoxalmente, os produtos do trabalho destes/as investigadores/as e técnicos/as com bolsa permanecem contabilizados nos índices de produtividade das suas instituições. Urgente é, assim, democratizar as instituições garantindo a participação de todos/as, uma participação amputada pelo RJIES e pela impossibilidade de representação dos investigadores/as com bolsa nos órgãos de gestão das suas instituições. Urgente é, também, delinear as carreiras científicas tendo em conta as especificidades das funções desempenhadas e promover a sua aplicação concreta. Esta aplicação poderá concretizar-se, por exemplo, através da atribuição de financiamento público estrutural (via Orçamento do Estado) para a contratação de trabalhadores/as científicos/as não docentes pelas instituições onde exercem funções, um processo cujo cumprimento poderia ser aferido superiormente e associado a sanções positivas e negativas. Uma outra solução seria a possível implementação de um modelo de contratação e gestão das carreiras científicas centralizado por um organismo estatal. Reconhece-se aqui que a estabilidade laboral é uma condição indispensável a um compromisso sério com a ciência, um compromisso que possibilite a consolidação de uma sociedade menos desigual e um atenuar das permanentes assimetrias internas e entre Portugal e a Europa do Centro e Norte.
Num mundo marcado por rápidas transformações e ameaçado por inúmeras desigualdades sociais e ambientais, o papel do conhecimento e o papel de um pensamento crítico são centrais. É, assim, imperioso o crescimento do investimento público em ciência e o cumprimento do investimento de 3% do PIB Português em I&D, em 2030. Igualmente inadiável é a concretização de uma aposta estratégica em instituições de ciência e ensino superior onde uma faixa considerável da população portuguesa passa importantes anos das suas vidas. Essencial é não só a participação ativa na vida e gestão das instituições do pessoal científico qualificado que nelas trabalha, mas também que as instituições científicas e de ensino superior não sejam meros recetáculos e agentes passivos de diretivas externas e que contribuam – em estreita auscultação dos seus investigadores e docentes – para a definição de novas agendas de investigação, conhecimento e epistemológicas. O ensino superior e a ciência têm de estar no cerne da agenda política para o país. Muito para além de se afirmar e voltar a afirmar a ciência enquanto bem público, urge capacitá-la enquanto tal.
Lisboa, 7 de junho de 2019
Signatários
Associação dos Bolseiros de Investigação Científica (ABIC)
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Associação Portuguesa de Economia Política (APEP)
Associação Portuguesa de Linguística (APL)
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Associação Portuguesa de Sociologia (APS)
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Sindicado Nacional do Ensino Superior (SNESup)
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Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação (SPCE)
Sociedade Portuguesa de Investigação em Música (SPIM)
Sociedade Portuguesa de Matemática (SPM)
Sociedade Portuguesa de Química (SPQ)
[1] Termo invocado pela tutela.