Físicos do mundo, uni-vos!

Participantes na Primeira Conferência Pugwash sobre Ciência e Assuntos Mundiais em 1957. Em 1995, as Conferências Pugwash e o seu principal líder, o físico Joseph Rotblat, partilharam o Prémio Nobel da Paz “pelos seus esforços para diminuir o papel desempenhado pelas armas nucleares na política internacional e, a longo prazo, para eliminar estas armas.” (Crédito: Pugwash)

O perigo nuclear está a crescer.
Físicos do mundo, uni-vos!

 Curtis T. AsplundZia MianStewart PragerFrank von Hippel | 1 de Julho de  2024

O papel dos físicos foi fundamental na concepção, desenvolvimento, construção e aperfeiçoamento das armas nucleares desde que a ideia de uma reacção nuclear surgiu no espírito de Leo Szilard em 1933. Ao longo dos 90 anos subsequentes, os físicos têm sido também uma força importante nos esforços globais destinados a confrontar a ameaça nuclear que criaram, pela promoção do controlo das armas nucleares e o desarmamento. Desde o fim da Guerra Fria, contudo, a comunidade dos físicos tem estado relativamente ausente na análise, activismo e defesa da contestação das políticas de armas nucleares. Entretanto, o regime de controlo de armas nucleares da era da Guerra Fria entrou em colapso, uma corrida ao armamento nuclear liderada pelos Estados Unidos, Rússia e China está em curso, e todos os nove Estados com armas nucleares estão de novo a comprometer-se com a dissuasão nuclear no futuro previsível.

Em resposta, em Outubro de 2023, um grupo de 50 físicos de 20 nações reuniu-se para um seminário de três dias no Centro Internacional de Física Teórica (ICTP, na sigla em inglês) em Trieste, na Itália – “O crescente perigo das armas nucleares: como podem os Físicos ajudar a diminuir a ameaça.” O objectivo do seminário foi o debate de ideias sobre como mobilizar a comunidade física internacional para o envolvimento na defesa da contenção da ameaça nuclear. Da discussão resultou a formação de um grupo de trabalho internacional com o objectivo de ajudar a promover aquela mobilização.

Tal como foi descrito recentemente neste Boletim e retratado no filme “Oppenheimer”, físicos eminentes procuraram reflectir sobre os desafios colocados pelas então novas armas e ser uma voz da razão e de moderação a informar os debates sobre políticas de armas nucleares no decurso do Projecto Manhattan e depois dele. Entretanto, o debate e a introspecção iniciais, em Los Alamos e em outros locais, sobre as implicações das armas nucleares não ocorreram apenas entre americanos. O debate foi internacional, envolvendo físicos de vários países que participavam no Projecto Manhattan, incluindo refugiados da Europa que escaparam ao fascismo. Todos esses esforços foram de carácter privado e dirigidos aos decisores políticos dos EUA, e não à comunidade científica em geral ou ao público.

Após os bombardeamentos de Hiroshima e Nagasaki e o início da corrida aos armamentos nucleares entre os EUA e a União Soviética, o debate sobre as armas nucleares tornou-se mais público, deliberadamente, e mais internacional. Em Princeton, em 1946, Albert Einstein deu conta da constituição do Comité de Emergência de Cientistas Atómicos com vista a informar e mobilizar os cientistas e o público sobre os perigos das armas nucleares.

A expressão internacional mais clara do activismo científico teve início em 1957 com as Conferências Pugwash sobre Ciência e Assuntos Mundiais. O historiador Matthew Evangelista dá a Pugwash “um crédito considerável pelos avanços substanciais no controlo de armas entre os EUA e a União Soviética no final dos anos 60 e início dos anos 70”. Este esforço determinado de décadas acabou, em 1995, por valer um Prémio Nobel da Paz partilhado pelas Conferências Pugwash e a sua figura principal, o físico Joseph Rotblat, “pelos seus esforços para diminuir o papel desempenhado pelas armas nucleares na política internacional e, a longo prazo, para eliminar essas armas.”

Uma corrida aos armamentos renovada teve início da década de 1980 quando o Presidente Ronald Reagan, um crítico de longa data do controlo de armas, planeou um programa de modernização estratégica dos EUA que acrescentaria cerca de 10 000 ogivas nucleares adicionais de precisão e uma variedade de novos sistemas de lançamento para atacar as armas nucleares soviéticas. Isto desencadeou uma enorme luta, e com grande impacto, nos Estados Unidos e na Europa. Também aqui os cientistas agiram. Em 1986, um grupo de físicos e matemáticos reuniu-se em Hamburgo para um congresso internacional denominado “Caminhos para a saída da corrida aos armamentos”.

A reunião de Hamburgo lançou as bases para o Fórum Internacional de Cientistas sobre Reduções Drásticas de Armas Nucleares para um Mundo Livre de Armas Nucleares, de 1987, em Moscovo, que atraiu 250 cientistas, incluindo o notável físico soviético e activista dos direitos humanos Andrei Sakharov. Este foi um dos oito fóruns de Moscovo realizados na altura sobre controlo de armas nucleares, com uma sessão plenária conjunta de mais de 1500 participantes, incluindo Mikhail Gorbachev e outros altos funcionários soviéticos, dirigida por Frank von Hippel. Um segundo congresso “Caminhos para a saída da corrida aos armamentos”, em 1988, no Imperial College, em Londres, reuniu mais de 500 cientistas de cerca de 35 países. Estes encontros e outros esforços liderados por físicos encorajaram os decisores políticos e o público a abraçar as grandes reduções do armamento nuclear e convencional das décadas que se seguiram.

Hoje, são muito necessários novos esforços por parte da comunidade física internacional contra as ameaças representadas pelas armas nucleares.

Nove nações – todas no hemisfério norte – possuem actualmente armas nucleares, e muitas delas estão a desenvolver novos programas de armas ou a aumentar os seus arsenais – ou ambas as coisas. Muitos físicos estão envolvidos no empreendimento global de armas nucleares, trabalhando em investigação e desenvolvimento críticos para os chamados programas de “modernização” de armas nucleares em curso. Nos Estados Unidos, por exemplo, o Programa de Gestão de Stocks da Administração Nacional de Segurança Nuclear, que se destina a conceber, produzir, certificar, manter e modernizar as armas nucleares dos EUA, emprega cerca de 7500 cientistas.

O actual complexo de armas nucleares dos EUA é grande, cada vez mais ambicioso – e dispendioso. O complexo está empenhado em construir e implantar uma nova geração de sistemas de armas que se pretende que estejam operacionais algures na década de 2080. Esta realidade exige um envolvimento mais forte e mais contundente por parte dos físicos na contestação das políticas de armas nucleares e na proposta de alternativas.

Em 2019, é criada a “Coligação de Físicos para a Redução da Ameaça Nuclear”, uma rede nacional de físicos que advoga a contenção do perigo nuclear. A coligação foi criada no quadro do Programa de Ciência e Segurança Global da Universidade de Princeton com o apoio da American Physical Society e da Carnegie Corporation. Na declaração dos objectivos que persegue, reconhece que “a utilização da arma nuclear pode levar ao fim da   civilização” e reconhece a necessidade imperativa de “mudanças significativas nos arsenais nucleares, mudança nas doutrinas nucleares [i], políticas declarativas [ii] e no cumprimento da obrigação internacional, que vem de longe, de alcançar o desarmamento nuclear”.

Até meados de 2024, uma equipa da Coligação, de 14 físicos, animou mais de 150 colóquios em departamentos universitários de física e engenharia nos Estados Unidos, e também alguns em outros países. Uma fracção significativa dos mais de 1200 cientistas, físicos e engenheiros, que aderiram à Coligação – muitos deles em início de carreira – tiveram reuniões presenciais e virtuais com gabinetes de membros do Congresso.

O grupo promotor da Coligação de físicos, com colegas da Alemanha, promoveu um seminário de físicos no Centro Internacional de Física Teórica, em Trieste, para discutir como combater as renovadas pressões para o incremento do número e o desenvolvimento tecnológico de armas nucleares e defender a contenção da ameaça das armas nucleares a nível global. Debatemos como envolver e informar as nossas comunidades profissionais sobre as questões levantadas pelas armas nucleares – um pré-requisito para a defesa da causa. Discutimos também os novos desenvolvimentos técnicos com implicações para a política das armas nucleares e debatemos a ética dos físicos que dedicam os seus conhecimentos e talento ao trabalho em armas nucleares.

Nesse seminário internacional, físicos de outros países partilharam a forma como se envolvem nos debates sobre as políticas de armamento nuclear. Alguns, de países com armas nucleares, descreveram ter enfrentado hostilidade quando defenderam a contenção, indicando a necessidade de ter nesses países diferentes abordagens para promover o envolvimento nos debates.

Na maior parte dos Estados com armas nucleares, emitir opiniões sobre a política de armas nucleares acarreta riscos significativos. Isto foi evidente nos relatos de físicos da China, Rússia, Índia e Paquistão. Apenas três Estados com armas nucleares – França, Reino Unido e Estados Unidos – toleram um discurso público relativamente irrestrito sobre o tema. Nestes três países, porém, o debate entre especialistas limita-se no geral às opções políticas no quadro, não contestado, de dissuasão nuclear.

A Coreia do Norte e Israel não estiveram representados na reunião. Embora seja bem-sabido que a discussão pública crítica de qualquer política do regime, é suprimida na Coreia do Norte, é menos conhecido que a discussão pública sobre a política de armas nucleares está sujeita a censura em Israel. Nos Estados Unidos, uma ordem executiva secreta há muito que “proíbe os funcionários americanos de sequer reconhecerem que Israel tem armas nucleares” e “ameaça os actuais e antigos funcionários governamentais com medidas disciplinares, incluindo despedimento” se o fizerem.

Os participantes no seminário observaram também que muito poucos países têm organizações não governamentais ou organizações de cientistas que defendam o controlo das armas nucleares. Os Estados Unidos, com o seu pequeno, mas activo conjunto de organizações e iniciativas, emanadas da sociedade civil, de controlo de armas, têm a infra-estrutura mais desenvolvida (embora ainda lamentavelmente limitada) de contestação da política de armas nucleares. Como parte nova desta comunidade, a “Coligação de Físicos para a Redução da Ameaça Nuclear” propicia recursos, orientação e oportunidades para os físicos que desejam participar no trabalho colectivo de base, de defesa desta causa.

Os físicos nos Estados Unidos também gozam do privilégio de experimentar relativamente poucas restrições à sua liberdade de expressão e de ter o direito constitucional de apresentar petições ao seu governo. Estes privilégios, num país com um dos dois maiores arsenais nucleares do mundo, representam para os físicos dos EUA uma oportunidade e a responsabilidade de confrontar a política de armas nucleares dos EUA e de trazer a comunidade física internacional a juntar-se a acções para reduzir a ameaça nuclear global.

Um forte consenso emergiu do seminário de Trieste sobre a importância de catalisar o activismo dos físicos no plano internacional no sentido do controlo e da redução das armas nucleares. Os cientistas, especialmente em início de carreira, consideraram que o envolvimento com físicos de vários países com ideias semelhantes se traduzia numa confirmação forte da razão das suas preocupações relativamente aos perigos das armas nucleares e do fundamento do seu desejo de se envolver no activismo político.

Como próximo passo, os participantes da reunião do ICTP concordaram em formar um grupo de trabalho internacional para promover, entre e no seio das nações, o envolvimento e activismo de físicos e colegas das ciências da engenharia. Esta iniciativa pode complementar os esforços em curso por parte do Grupo Consultivo Científico do Tratado das Nações Unidas sobre a Proibição de Armas Nucleares para estabelecer uma ampla rede de instituições científicas e técnicas e de especialistas, para apoiar os objectivos do tratado.

“Hoje, a corrida aos armamentos está a exaurir enormes recursos da humanidade: materiais, morais e intelectuais. Infelizmente, a ciência e os cientistas contribuíram para esta perigosa situação. Como cientistas, como cidadãos do mundo, temos o dever de o reconhecer e de usar as nossas capacidades para explorar formas de sair da situação actual.” Isto está escrito na convocatória da reunião de Hamburgo, em 1986. Agora, em 2024, os físicos devem voltar a erguer-se e fazer jus a essa responsabilidade.

Nota do editor: Este artigo é um resultado de um seminário no Centro Internacional de Física Teórica (ICTP), organizado por uma comissão composta pelos autores e também por Jürgen Altmann e Götz Neuneck. O seminário teve o apoio do ICTP; da “Coligação de Físicos para a Redução da Ameaça Nuclear”; da Sociedade Alemã de Física; do Fórum Física e Sociedade da American Physical Society; da Associação de Investigação para a Ciência, Desarmamento e Segurança Internacional (Alemanha); e do Programa de Ciência e Segurança Global da Universidade de Princeton.

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O presente artigo foi originalmente publicado no Bulletin of the Atomic Scientists, em 1 de Julho de 2024 (https://thebulletin.org/2024/07/nuclear-danger-is-growing-physicists-of-the-world-unite/ ).A OTC agradece a amável autorização para esta republicação em português (tradução Frederico Carvalho).

The present article originally appeared in the Bulletin of the Atomic Scientists on July 1, 2024. Permission to republish the Portuguese translation graciously granted by the Bulletin of the Atomic Scientists (translation by Frederico Carvalho).
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[i] NOTA OTC: a chamada “nuclear posture”. Para  mais informação ver, no que toca aos EUA, https://www.defense.gov/Portals/1/Spotlight/2022/NDS/NUCLEAR%20STRATEGY%20AND%20POLICY%20-%20NPR%20Factsheet.pdf . A doutrina nuclear da Federação Russa é muito semelhante.
[ii]  NOTA OTC: “declaratory policy” envolve a comunicação pública por parte de dirigentes e governos das circunstâncias em que as armas nucleares podem ser usadas. Trata-se dar conhecimento a outros governos e ao público em geral, no próprio país e fora dele, do papel atribuído às armas nucleares no contexto da política de segurança nacional e está ligada à sua obtenção e à doutrina que rege o emprego das forças nucleares nacionais.
https://media.nti.org/documents/Declaratory_Policy_Advancing_Sole_Purpose_-_Andreasen_Excerpt.pdf