
TRABALHADORES CIENTÍFICOS NUM MUNDO EM TRANSFORMAÇÃO
CERRANDO FILEIRAS NUMA LUTA PELO FUTURO
Frederico Carvalho
98º Conselho Executivo da Federação Mundial dos Trabalhadores Científicos
Paris, França, 9-13 Junho 2025
Intervenção no Simpósio
“Ciência pela Paz e a Igualdade: Promover a Diversidade, a Inclusão e o Respeito Mútuo”
Mesa-Redonda 2: “Reforçar a Solidariedade e Resiliência Científicas”
Não é fácil dar respostas animadoras à pergunta: como podem os trabalhadores científicos contribuir para afastar ou simplesmente atenuar os riscos de vária natureza que nos cercam. Riscos que põem em causa não apenas a vida de milhões de seres humanos, mas a vida em condições dignas de ser vivida. De várias formas e em vários graus todos sentimos certamente, e a grande maioria sofre directamente, as consequências do caminho de desastre que vamos percorrendo. O caminho é imposto sem olhar a meios por poderosos grupos de interesses detidos por uma ínfima minoria que olha o planeta como coisa sua e os seus habitantes como instrumento útil para atingir os objectivos que persegue.
Neste contexto, os trabalhadores científicos são uma fracção pequena, mas indispensável e extremamente valiosa desse instrumento.
Trata-se de trabalhadores assalariados na sua maioria descartáveis sempre que conveniente, quando cumprida a sua função ou se mostre possível e vantajoso substituí-los por outros com menores custos.
Não há outra forma de defesa que não seja a de construir uma união na luta tornando clara a convergência de interesses, próprios e da sociedade em geral. É um caminho difícil, mas sem alternativa credível. Estamos ainda longe disso apesar do muito que já se andou.
Sabemos da existência e acompanhamos na acção, um número significativo de associações de trabalhadores científicos que procuram contribuir para o esclarecimento da natureza, origem e consequências dos desafios que hoje se nos colocam. Devemos-lhes o trazer a público análises sérias, sustentadas em trabalho científico próprio ou alheio, úteis quando apresentadas de forma adequada, acessível não apenas aos seus membros, que naturalmente cultivam diferentes domínios do conhecimento, mas também a um conjunto de seguidores, leigos, em boa parte, que se manterão como seguidores se e só se lhes for possível assimilar e ser atraídos pela informação que recebem.
A origem e estatuto institucional dessas associações é diverso. As associações sindicais de trabalhadores científicos merecem particular atenção pelo seu número, capacidade de acção e impacto social e potencial influência junto dos poderes constituídos. As suas raízes históricas e a sua razão de ser principal prendem-se naturalmente com a defesa das condições de vida e trabalho dos seus associados e, em geral, do grupo profissional que representam. Nos dias de hoje, o combate à precariedade laboral nas suas múltiplas formas e, em geral, as limitações impostas pela legislação do trabalho, ocupa um lugar destacado nas preocupações e na acção desenvolvida pelas associações sindicais dos trabalhadores científicos como aliás na das suas congéneres em outras esferas do mundo laboral. Para disto dar uma imagem, permito-me citar uma passagem da intervenção de um colega de profissão com larga experiência sindical que interveio num recente debate promovido em Lisboa pela minha associação a Organização dos Trabalhadores Científicos em parceria com o Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais, uma unidade de investigação portuguesa. Passo a citar:
“No Reino Unido, quase metade dos docentes e perto de 70% dos investigadores tem contratos a termo certo, existindo milhares com contratos de zero horas (em Portugal tem-se adoptado a designação contratos a título gracioso); nos EUA, ¾ dos membros dos colégios universitários não têm possibilidade de alcançar o tenure; na Alemanha, mais de 90% dos docentes têm contratos a termo certo; na Dinamarca, estima-se em cerca de 50 a 70% da força de trabalho académica que corresponde a contratos temporários; em Itália, desde 2010, o número de posições permanentes reduziu-se em cerca de 25% e mais de metade do staff académico tem contratos a termo certo.”
Um tal panorama reflecte-se negativamente nas condições de vida pessoal e familiar dos atingidos, mas vai também condicionar liberdades académicas e programas de trabalho dos próprios e das instituições que os acolhem.
Nestas condições é compreensível que as grandes questões societais tal como estão enunciadas nos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável da Organização das Nações Unidas, tendam a ocupar um espaço limitado nas preocupações, reivindicações e, consequentemente, nas acções colectivas desenvolvidas pelas associações sindicais.
A situação é diferente no que respeita a outras associações que, como aquelas, são também organizações da sociedade civil — as chamadas ONGs — ainda que em muitos casos a sua acção possa ser de facto condicionada pelos poderes públicos, nomeadamente quando vivem na sombra de regimes ditos autoritários ou autocráticos, o que não quer dizer que nas chamadas democracias não existam condicionalismos impostos por outras vias.
Existe uma imensa variedade de organizações deste tipo (não sindicais) que congregam trabalhadores científicos como membros individuais ou associações de trabalhadores científicos.
Gostaria de referir a título de exemplo algumas dessas entidades de natureza e orgânica diversas.
A União de Cientistas Preocupados (Union of Concerned Scientists) é uma organização nacional norte-americana sem fins lucrativos fundada há mais de 50 anos por cientistas e estudantes do Instituto de Tecnologia de Massachusetts. Afirma ter como objectivo pôr a Ciência de forma rigorosa e independente, ao serviço do desenvolvimento de soluções que conduzam a um futuro saudável, seguro e justo para as sociedades humanas. É hoje integrada por um grupo de cerca de 250 cientistas, analistas, especialistas em ciência política, organizadores e comunicadores, dedicados àquele objectivo. Um outro exemplo notável é o do “Boletim dos Cientistas Atómicos” que introduziu em 1947 o conhecido “Relógio do Juízo Final”. O Boletim, amplamente divulgado on-line, é fruto do trabalho de uma equipa de cerca de 50 elementos que afirma ter como objectivo dar ao público em geral, aos decisores políticos e aos cientistas, informação necessária para contrariar as ameaças à nossa existência comum, decorrentes da acção humana. Num patamar em boa parte qualitativamente semelhante embora com menos meios, situa-se a OTC uma ONG independente portuguesa, com meio século de experiência, filiada na FMTC, cuja actividade assenta na contribuição pro bono, multiforme, de cerca de 6 dezenas de colaboradores ligados na sua maioria a universidades e centros de investigação públicos.
Já noutro plano situam-se associações ou federações de associações de trabalhadores científicos doutra dimensão humana e material e, nalguns casos, outro alcance geográfico, como o “International Science Council”[i] ou a União Vietnamita das Associações de Ciência e Tecnologia, esta com cerca de meio milhão de associados; ou a CAST-China Association for Science and Technology, neste caso com vários milhões de membros individuais associados em núcleos ou associações locais geograficamente dispersas por um vasto território.
O International Science Council promove periodicamente uma iniciativa designada por “Diálogo global do conhecimento” que discute questões chave que se situam na interface ciência-sociedade e ciência-política.
A União Vietnamita atrás referida aponta como um dos seus objectivos o de “persuadir e levar os cientistas a envolver-se na luta pela Paz, contra a guerra e pela amizade e compreensão mútua entre diferentes nações no mundo”.
O mundo do trabalho científico é complexo e multiforme e atravessado por querelas intestinas. Importa reconhecer que há interesses comuns que devem prevalecer. O associativismo é uma realidade que deve ser olhada como instrumento privilegiado na luta pela defesa desses interesses comuns. Importa trazer a essa luta muitos que por diversas razões estão alheados da sua necessidade e descrentes da sua capacidade de atingir os resultados desejados. Os que lutam por melhores condições de vida e trabalho no seu presente, mas também por um futuro da vida sustentável no planeta, devem ter consciência de que do outro lado da barricada encontram uma frente multinacional de interesses, promotora de conflitos e de guerra, voraz devoradora de recursos naturais que são bens comuns da humanidade. Mas devem igualmente estar preparados para resistir ao assalto de uma frente popular com uma consciência turva dos valores da ciência, moldada pelos omnipresentes e poderosos meios de comunicação social controlados por aqueles mesmos interesses.
Com o pensamento nas gerações que nos hão de suceder, entenderemos que importa resistir. A luta é difícil, mas é necessária.
Paris, 12 de Junho de 2025
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[i] O International Science Council reúne globalmente 250 uniões e associações científicas internacionais, organizações científicas nacionais e regionais, incluindo academias, agências governamentais e ministérios, conselhos de investigação e ciência, federações e sociedades científicas internacionais e organizações de jovens cientistas.
https://council.science/about-us/our-regions/